Processo Tributário

Ainda o peculiar sincretismo na cobrança do crédito tributário

Autor

  • Luis Claudio Ferreira Cantanhêde

    é procurador do estado de São Paulo doutor e mestre em Direito pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e em Direito do Estado pela Espge-SP professor no curso de pós-graduação de Direito Tributário e de Extensão do Processo Tributário Analítico no Ibet professor de Direito Tributário na Espge-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

22 de maio de 2022, 8h03

Em dois artigos publicados nesta coluna [1] [2], tratamos do peculiar sincretismo caracterizado pela prestação da tutela jurisdicional executiva no âmbito de uma ação antiexacional improcedente, sem, portanto, cogitar-se do ajuizamento de execução fiscal.

Neles foram apresentados os pressupostos que viabilizam esse especial modo de "cobrança" do crédito tributário, que são: (1) processo antiexacional preventivo ou repressivo, (2) garantia do crédito tributário discutido por meio de depósito do montante integral da obrigação tributária, apresentação de fiança bancária ou seguro garantia e (3) improcedência da demanda, quando então os valores depositados serão convertidos em renda do ente tributante ou executadas as garantias fidejussórias com a consequente extinção da obrigação.

O fenômeno, ao cabo, caracteriza-se pela solução, em uma única relação processual, dos conflitos atinentes à legitimidade do crédito tributário e à sua inadimplência, com o que se obtém notória eficiência: uma mesma relação processual aparelha-se para a solução de dois conflitos de interesse.

Na ocasião realçou-se que o modelo apresenta ganhos de efetividade para as partes (fisco e sujeito passivo da obrigação tributária), além de outros que transcendem os lindes subjetivos da relação jurídico-tributária conflituosa, espraiando-se por todo o ordenamento, haja vista que sua ampliação atua em prol da política de redução de litigiosidade e da melhoria da qualidade da prestação jurisdicional na exata medida em que contribui para a diminuição do ajuizamento de execuções fiscais.

Àqueles benefícios já elencados, mister trazer à baila mais um atinente à possibilidade do sujeito passivo da obrigação tributária derrotado na demanda antiexacional lançar mão da impugnação rescisória, prevista no artigo 525, §§1º, inciso III, e 12 do Código de Processo Civil, quando se vir diante do cumprimento de sentença para conversão em renda do depósito ou execução da garantia fidejussória [3].

É cediço que esta mesma previsão consta do artigo 535 daquele Código, que trata do cumprimento de sentença que reconhece obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública, de modo que o princípio da isonomia, ao preconizar tratamento equitativo entre as pessoas sempre que não houver fator razoável de discriminação, por si sustenta o reconhecimento da legitimidade de sua utilização também pelo sujeito passivo na execução sincrética.

Mas não é só isso, o próprio fundamento teleológico do sincretismo processual sustenta essa aplicação, pois o entendimento contrário à possibilidade aventada imporia o ajuizamento de uma ação rescisória pelo sujeito passivo da obrigação tributária, ainda que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecendo a inconstitucionalidade do tributo tenha sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão que julgou improcedente a ação anulatória (cujo objeto coincide com aquele tratado no julgamento do STF que afeta a resolução dada no caso individual).

Mister, ainda, ter em conta que se não fosse a possibilidade da execução imediata da garantia no âmbito do processo antiexacional preventivo ou repressivo, o Fisco deveria prosseguir o iter de cobrança por meio da inscrição do crédito tributário em dívida ativa, extração da competente certidão, ajuizamento de execução fiscal, oportunidade em que ao devedor, agora executado, poderia alegar a inconstitucionalidade da cobrança pela via dos embargos à execução fiscal, ou, ainda, em exceção de pré-executividade [4].

Derradeiramente, pode-se levantar contra a tese aqui aventada a impossibilidade de se cogitar de cumprimento de uma decisão de improcedência, o que inviabilizaria o uso, pelo devedor (contribuinte), da impugnação rescisória, cabível apenas neste específico contexto.

Ocorre que, contra este argumento, convoca-se orientação adotada no Superior Tribunal de Justiça que já reconheceu a viabilidade de cumprimento de decisões de improcedência, conforme se vê no julgamento do recurso especial nº 1.481.117/PR, em cujo voto foi afirmado, naquilo que interessa para o objeto do presente artigo:

"Nos termos do art. 475-N, I, do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei nº 11.232/2005, considera-se título executivo judicial "a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia". Assim, as sentenças que, mesmo não qualificadas como condenatórias, ao declararem um direito, atestem, de forma exauriente, a existência de obrigação certa, líquida e exigível, são dotadas de força executiva. (…) Referido dispositivo processual aplica-se também às sentenças declaratórias que, julgando improcedente o pedido do demandante, reconhecem a existência de obrigação do autor em relação ao réu da demanda, independentemente de constar na contestação pedido de satisfação de crédito, legitimando o réu a propor o cumprimento de sentença (…)" [5].

A despeito de aludir ao contexto do Código de Processo Civil revogado, exsurge evidente que o vigente traz previsão em tudo similar àquela, pois no artigo 515, inciso I do CPC/2015 está expresso que configuram títulos executivos judiciais "as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa", não constituindo, portanto, qualquer aberração ver no procedimento de conversão do depósito em renda ou da execução de garantia fidejussória nos processos antiexacionais improcedentes um verdadeiro cumprimento de sentença que reconhece a exigibilidade do crédito tributário.

Sendo assim, por qualquer ângulo que se veja a questão, apresenta-se desarrazoada qualquer interpretação que não admita ao sujeito passivo, no cumprimento de sentença instaurado no contexto do peculiar sincretismo aqui tratado, lançar mão do instituto da impugnação rescisória sempre que houver decisão do STF prolatada antes do trânsito em julgado da decisão de improcedência da ação antiexacional, isso porque, no caso em que a decisão da Suprema Corte for posterior, há ser ajuizada ação rescisória, tudo por força do disposto nos §§14 e 15 do artigo 525 do Código de Processo Civil [6].

 


[3] Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.

§ 1º Na impugnação, o executado poderá alegar:

(…)

III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;

(…)

§ 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

[4] Danilo Monteiro de Castro, com mestria, defende essa possibilidade, admitindo os embargos à execução fiscal e/ou a exceção de pré-executividade com efeitos rescisórios ainda que a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha sido proferida após o trânsito em julgado da ação antiexacional improcedente. Vide: CASTRO. Danilo Monteiro de. Coisa julgada e a desnecessidade de ação rescisória proposta pelo contribuinte quando o crédito tributário ainda estiver em cobrança (Execução fiscal). In: Processo Tributário Analítico, Coisa julgada. CONRADO, Paulo Cesar; ARAÚJO, Juliana Furtado Costa, Coord., 1ª edição, volume IV. São Paulo: Noeses, 2019.

[5] REsp 1481117/PR, rel. ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 3ª TURMA, julgado em 3/3/2015, DJe 10/3/2015.

[6] Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.

(…)

§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.

§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pela PUC/SP e em Direito do Estado pela ESPGE-SP, professor de Direito Tributário e Processo Tributário no Ibet-SP e na ESPGE-SP, procurador do Estado de São Paulo e pesquisador do Grupo de Estudos em Processo Tributário Analítico do IBET-SP.

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