Opinião

Comentários sobre a ADC 49 e suas implicações

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21 de maio de 2022, 13h17

Em abril deste ano, o STF julgou improcedente a ADC 49, declarando a inconstitucionalidade do artigo 11, §3º, II (que estabelece a autonomia dos estabelecimentos), do artigo 12, I, no trecho "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular", e do artigo 13, §4º (que trata da base de cálculo do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular), da Lei Kandir.

Os embargos de declaração opostos pelo estado do Rio Grande do Norte, para modulação dos efeitos do julgamento, ainda estão pendentes de julgamento, que conta, até o momento, com maioria de votos para estabelecer efeitos prospectivos à decisão, a partir de 2023. Em seus votos, alguns ministros têm pontuado que, caso os Estados não disciplinem a transferência de créditos entre os estabelecimentos, fica reconhecida tal possibilidade.

Embora a tese já contasse com precedentes das cortes superiores, inclusive em caráter repetitivo, e a Súmula 166 do STJ, a decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade suscitou inquietação, em razão de possíveis consequências prejudiciais.

Analisemos alguns aspectos da decisão e as preocupações surgidas.

Primeiro, quais são os desdobramentos da declaração de inconstitucionalidade do artigo 11, §3º, II na ADC 49?

A autonomia do estabelecimento funciona como critério que define a sujeição passiva tributária e orienta a aplicação da lei no espaço (artigo 127, II, CTN). Sem dúvida, tal princípio opera grande simplificação da fiscalização tributária, em vista dos registros fiscais e do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, de forma individualizada.

A jurisprudência já oscilou quanto aos limites e o alcance dessa autonomia. No passado, o STJ estabeleceu a ilegitimidade ativa da matriz para demandar em nome das filiais (REsp 1.488.209/RS). Entendimento esse que, recentemente, foi alterado (AREsp 1273046/RJ; AREsp 731.625/RJ). Por outro lado, a Corte há tempos decide que todos os estabelecimentos devem responder pelas obrigações tributárias assumidas individualizadamente (exempli gratia REsp 1.355.812/RS; AREsp 1.286.122).

A autonomia dos estabelecimentos não aparenta ser nada além de um meio para imprimir praticidade administrativa e organizacional à empresa. Isso porque o estabelecimento não tem personalidade jurídica. Para o direito civil e comercial, estabelecimento é uma universalidade patrimonial, pertencente à pessoa jurídica, essa, sim, dotada de personalidade. Sobressai, assim, a unicidade da pessoa jurídica, ainda que detenha múltiplos estabelecimentos.

A declaração de inconstitucionalidade do artigo 11, §3º, II, da Lei Kandir, não alterou essa individualização contábil e administrativa. Não afasta o princípio, apenas o delimita, conformando o seu conteúdo e alcance e impedindo que se trate os estabelecimentos como pessoas distintas, circunstância em que haveria uma mudança de titularidade na movimentação de mercadorias, apta a ensejar a incidência do imposto.

Além da impossibilidade de cobrança do ICMS nessas movimentações, um dos possíveis efeitos da declaração de inconstitucionalidade desse dispositivo é a simplificação da transferência de créditos do imposto entre os diferentes estabelecimentos de um mesmo titular, mormente quando situados no mesmo Estado.

Outra preocupação que surgiu como possível desdobramento da ADC 49 diz respeito ao aproveitamento, manutenção e estorno de créditos.

A não-cumulatividade do ICMS se opera por meio de créditos das operações de entrada contra os débitos das saídas. Por expressa previsão constitucional, a isenção ou não-incidência não implica em crédito e acarreta a anulação daquele relativo às operações anteriores.

Assim, uma operação com isenção ou não-incidência do ICMS resulta na impossibilidade de utilização do crédito do imposto devido nas operações anteriores na cadeia mercantil, salvo se a lei autorizar de forma expressa o direito à sua apropriação e manutenção.

Diante da decisão de que não incide ICMS nas movimentações entre estabelecimentos, surge o questionamento sobre a manutenção ou não do crédito do imposto. Em razão dessa problemática, mesmo com a jurisprudência já antes pacífica sobre o tema, muitos contribuintes optaram por destacar o ICMS nessas transferências, como forma de assegurar o aproveitamento dos créditos.

A insegurança sobre esse ponto motivou grande preocupação de empresas com a ADC 49. Muitos passaram a temer autuações fiscais ou perdas bilionárias como consequência da impossibilidade do aproveitamento de crédito do imposto.

Todavia, a vedação à apropriação e a exigência de estorno dos créditos de ICMS nesses casos é inconstitucional, dado que não se trata de isenção, nem não-incidência. Nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não há sequer uma operação, pois esta ocorre, apenas, quando há alteração de titularidade do bem ou mercadoria. A transferência entre estabelecimentos de uma mesma empresa é uma mera circulação física, mudança na localização geográfica da coisa, sem qualquer materialidade para fins do ICMS. Assim, não tem cabimento a tese de que a movimentação de mercadoria para outro estabelecimento acarretaria a anulação do crédito relativo às operações anteriores. O contribuinte tem direito à apropriação e manutenção do crédito, seja nas transferências internas, seja nas interestaduais.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, tem-se notícia de ao menos um acórdão publicado depois do julgamento da ADC 49, em que a Corte estadual afastou a cobrança do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular e assegurou o direito à apropriação e manutenção do crédito, em prestígio à não-cumulatividade do imposto.

Assegurada a apropriação e a manutenção do crédito do imposto, cabe analisar a possibilidade e viabilidade de transferência para o estabelecimento destinatário.

A legislação vigente hoje não prevê a possibilidade de transferência de créditos na hipótese aqui discutida e não poderia ser diferente, dado que trata tais movimentações como operações tributadas. Por isso, naturalmente, os créditos apropriados e mantidos pelo estabelecimento remetente não se enquadram como créditos acumulados na legislação paulista, por exemplo.

A pergunta que surge é se a possibilidade de transferir esses créditos depende de autorização legal ou decorre da não-cumulatividade do imposto.

Considerando o desenho constitucional do ICMS, que estabelece sua não-cumulatividade, o impedimento à transferência de créditos nesse contexto seria inconstitucional, ainda que resultante de interpretação que atribuísse à inexistência de disciplina legal tal efeito.

Apesar disso, não se pode ignorar a dificuldade em operacionalizar tais transferências em vista da ausência de disciplina legal. Nas movimentações entre Estados, especialmente, dada existência de diferentes sujeitos ativos do imposto, que insere a problemática da repartição de receitas.

Outras camadas de complexidade são acrescidas, ainda, nas hipóteses de operações que contam com benefícios fiscais. Um exemplo é o diferimento (bastante comum nas cadeias de beneficiamento e comercialização de insumos da agroindústria, por exemplo), em que o ICMS da compra do insumo fica diferido para a saída a ser promovida pelo contribuinte adquirente, caso tal saída seja a transferência para outro estabelecimento localizado em outro Estado da federação, que não se trata de verdadeira operação.

É necessário admitir que tais circunstâncias acrescem complexidade à resolução do problema. Contudo, isso não pode interferir na não-cumulatividade do ICMS, tampouco pode alargar a materialidade do imposto, de modo a alcançar ocorrências que não correspondem à circulação efetiva de mercadoria.

Em vista de todas essas questões, há grande expectativa de que o STF, no julgamento dos embargos de declaração, profira uma decisão que assegure aos contribuintes meios de neutralizar ou mitigar os possíveis efeitos negativos da declaração de inconstitucionalidade. Todavia, ela talvez não seja atendida.

A análise desse ponto passa, necessariamente, pela compreensão de quais são as partes vinculantes de uma decisão do STF em controle de constitucionalidade e seu alcance.

Não há dúvida do efeito erga omnes da decisão de mérito dada em controle concentrado de constitucionalidade. Contudo, considerando justamente os limites da prestação jurisdicional em ações dessa natureza, não é possível ter a mesma clareza quanto às garantias que podem ser dadas pela Corte, em sede do julgamento dos embargos de declaração.

Nos termos da Lei 9.868/1999, em tais ações o STF proclama a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada. Coloca-se em dúvida, portanto, a possibilidade de que a Corte estabeleça medidas assecuratórias com o objetivo de mitigar os possíveis desdobramentos prejudiciais da decisão e o caráter vinculante de tal julgamento.

A autorização de que o STF opte pela modulação, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, tem como fim restringir os efeitos da decisão ou estabelecer outro momento para sua eficácia – dado que a regra, no Direito brasileiro, é a eficácia ex tunc.

Considerando os estreitos limites processuais da ação direta de constitucionalidade e da modulação de efeitos, surge incerteza sobre a validade ou a eficácia de uma decisão do STF que busque assegurar o direito dos contribuintes à manutenção dos créditos de ICMS e sua transferência para o estabelecimento destinatário da mercadoria. A rigor, não há espaço para que a Corte possa estabelecer tais garantias, não no âmbito da ADC, nem em sede de modulação de efeitos, em vista do princípio da congruência ou adstrição e dos limites estabelecidos pela própria natureza da ação.

Enquanto não se desenrola por completo o julgamento, os contribuintes ainda tentam traçar e encontrar estratégias para lidar com as dificuldades advindas da ADC 49, que vão desde ajuizar ação judicial para garantir seu direito à apropriação e manutenção de créditos do ICMS, até redesenhar suas operações se utilizando de depósitos ou armazéns gerais.

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