Diário de Classe

Direito de resposta e decisionismo eleitoral: o caso do candidato 'denunciado'

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21 de maio de 2022, 12h31

Democracia, palavra cujo sentido escapa cotidianamente de nossas bocas, é sem dúvidas o regime político que melhor se adequa às pluralidades sociais. Talvez por isso, seus postulados são igualmente atacados cotidianamente, seja pela subtração de liberdades, seja pela ausência de limites ao exercício do poder. Na esfera judicial, o fenômeno do decisionismo é senão um dos principais focos de atentado à democracia, porquanto seus efeitos, mais que nocivos a direitos e garantias fundamentais, estão intrinsecamente ligados à ausência de limites ao poder de "dizer o Direito". Sem a observância de limites ao poder jurisdicional, cuja legalidade exige fundamentação normativa, as decisões judiciais, a exemplo das exaradas no âmbito da Justiça Eleitoral, representam greve violação às aspirações do Estado democrático de Direito.

Sabe-se que o decisionismo judicial e os demais fenômenos que dele decorrem (posturas subjetivistas relacionadas à interpretação e aplicação de leis) se estendem ao longo de séculos, constituindo-se objeto de análise de inúmeras correntes jusfilosóficas, a exemplo da moldura kelseniana oferecida pela Teoria Pura do Direito, publicada em 1934, e a contemporânea Crítica da Hermenêutica do Direito (CHD) streckiana. Guardadas as devidas singularidades e divergências teóricas, observa-se um possível ponto de intersecção entre a maioria das teorias a partir da seguinte questão: como o juiz deve decidir?        

Apesar do notável avanço no campo da hermenêutica jurídica, sobretudo a partir do linguistturn, viabilizando a superação da compreensão a partir da relação sujeito-objeto e estabelecendo protagonismo à linguagem intersubjetiva, a aparente ausência de coerência entre decisões judiciais, especificamente no âmbito da Justiça Eleitoral, demonstra estarmos distantes de bases sólidas para a implementação de uma teoria da decisão, como também revela seus efeitos nocivos à democracia, sobretudo pela potencialidade de interferência nos rumos políticos de um determinado grupo social ou mesmo da própria sociedade.

As eleições se avizinham e com elas ressurgem antigos problemas relacionados ao decisionismo judicial. A fim de melhor situar o tema, descreverei o desfecho de um pedido de direito de resposta [1] formulado durante o segundo turno da eleição majoritária da "cidade maravilhosa", ano 2020. Pois bem.

Entre centenas de representações eleitorais e pedidos de direito de resposta, um candidato ao cargo de prefeito questionou a veracidade de afirmação veiculada na propaganda eleitoral do candidato adversário, que, por sua vez, o atribuía envolvimento em esquemas de corrupção. A propaganda eleitoral em questão afirmava que o referido candidato teria sido denunciado (guardem essa palavra, por favor) em vários esquemas de corrupção [2], veiculando, aliás, trechos audiovisuais de um acordo de delação premiada em que um aliado político o acusava, circunstância essa que asseguraria a veracidade da informação.

Em defesa, o candidato representado alegou não haver adequação entre a pretensão do candidato adversário e o artigo 58 [3] da Lei das Eleições, que disciplina as hipóteses de concessão de direito de resposta, uma vez que as informações veiculadas por meio da propaganda eleitoral eram verídicas e, portanto, alinhadas à legislação eleitoral.

Apesar do esforço defensivo, bem como de parecer do Ministério Público Eleitoral desfavorável à pretensão autoral, o direito de resposta foi concedido, repercutindo, significativamente, no curso da campanha eleitoral, uma vez que acarretou a subtração de aproximadamente sete minutos de propaganda eleitoral televisiva de um dos candidatos, às vésperas do dia de votação, provocando desiquilíbrio à disputa.

Segue um trecho da decisão:

"Na propaganda impugnada o fato sabiamente inverídico é a afirmação de que o candidato XXXXX foi denunciado em vários esquemas de corrupção, veiculando vídeo de uma parte da audiência realizada na Justiça Federal presidida pelo Juiz Federal XXXXX. Dessa forma, o termo "denunciado" no contexto em que foi utilizado na propaganda eleitoral, refere-se tecnicamente a denúncia, ação penal pública oferecida em juízo pelo Ministério Público em razão da existência de indícios de autoria e materialidade pela prática de um crime previsto em lei".

Percebe-se que a trampa hermenêutica decorreu do valor semântico atribuído pelo magistrado ao vocábulo "denunciado". Aliás, sequer a petição inicial questionou o sentido de "denunciado". É difícil crer que, apesar de os objetivos de comunicação em massa exigirem da propaganda eleitoral a utilização de linguagem apta a ser compreendida pela maioria da população, o magistrado pudesse sustentar o argumento de que o substantivo "denunciado" se referia ao conceito técnico de denúncia, o que configuraria a veiculação de afirmação sabidamente inverídica (elemento normativo), uma vez que não havia notícias de que o indivíduo citado na referida propaganda eleitoral teria sido efetivamente "denunciado" pelo Ministério Público.

É mais absurdo, ainda, crer que publicitários e demais responsáveis pela produção daquela propaganda eleitoral a elaborassem a partir de um conceito técnico de denúncia, seja pela ausência de familiaridade daqueles profissionais com determinados conceitos jurídicos, seja pela própria impertinência de inserção do conceito técnico de "denunciado" à mensagem a ser transmitida à população.

Não obstante o Tribunal Regional Eleitoral (RJ), que disponibiliza aos cidadãos o aplicativo E-Denúncia, certamente sem a intenção de usurpar as atribuições do Ministério Público se me permitem a ironia , ter reformado a decisão, os debates se restringiram a aferir e confirmar se o referido candidato teria sido efetivamente denunciado conforme a previsão do artigo 41 do Código Processo Penal. É epistemologicamente perturbador observar que os limites da interpretação judicial, tema central para a racionalização da decisão judicial, sequer foram objeto de debate entre os julgadores. Talvez seja uma espécie de fobia a limites.

Guardadas as devidas proporções, o caso ora descrito também revela os problemas inerentes à literalidade. Paulo Barros de Carvalho, citado por Lenio Streck, apresenta um exemplo que indica a impossibilidade, na hipótese de uma lei fazer referência à disputa de três pessoas por uma cadeira no Senado, de pensarmos em um móvel (cadeira), uma vez que a literalidade, conclui Streck, não é o único elemento que influencia na interpretação de um texto/evento [4]. Sabe-se que a literalidade, por não abarcar o caráter contingencial do mundo, deve ser observada com reservas.

Reduzir a interpretação à literalidade, viabilizaria outras decisões absurdas, por exemplo, nas hipóteses de utilização do verbo "roubar". Isso porque, na mesma disputa eleitoral, havia propaganda que afirmava que uma determinada circunstância "era um roubo ao cidadão". Poderíamos, então, a partir do "sentido técnico" do verbo roubar, sustentar a hipótese de referência à locução do artigo 157 do Código Penal? Evidente que não. O mesmo critério de figuração de linguagem, cujo compreensão de sentido só é possível a partir da linguagem intersubjetiva, deveria ser aplicado ao vocábulo "denunciado". Certamente, quando alguém diz que irá denunciar alguém, não o diz em razão do conceito formal de denúncia.

Ao longo de três eleições majoritárias atuando como advogado pude perceber que os critérios utilizados pelos magistrado mudam de acordo com a mudança da formação do Tribunal Eleitoral e da substituição dos juízes designados à jurisdição de primeiro grau. Em tempo, é preciso esclarecer que não defendemos algo que alguns denominam de "engessamento da jurisdição". Claro que não. Evidentemente, espera-se, sempre, o aperfeiçoamento da jurisdição a cada eleição. Mas não a partir de critérios pessoais do juiz. As decisões devem ostentar integridade e coerência. É preciso critérios. Decisões, a exemplo do caso de "denunciado", não podem simplesmente serem retirados da cartola.  

Por fim, cito o alerta Streck, para quem a decisão é um ato de responsabilidade política. Sendo assim, a possibilidade de escolha, orientações partidárias ou quaisquer preferências pessoais do julgador não podem mediar o direito de alguém. Isso é antidemocrático.

 


[1] Direito de Resposta n.º 0600331-83.2020.6.19.0004.

[2] Transcrição: "Ele mente para você. Já foi denunciado em vários esquemas de corrupção e sempre nega. É um cara de pau!".

[3] Lei n.º 9504/97. Do Direito de Resposta. Art. 58. "A partir da escolha de candidatos em convenção, é assegurado o direito de resposta a candidato, partido ou coligação atingidos, ainda que de forma indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica, difundidos por qualquer veículo de comunicação social".

[4] STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito, 2.ª edição, Belo Horizonte, Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 184.

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