Opinião

A cultura do cancelamento e o processo penal

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21 de maio de 2022, 15h23

Que relação podemos fazer entre a cultura do cancelamento e o processo judicial? Na verdade, poderíamos dizer que são dois movimentos antagônicos e que o primeiro é extremamente prejudicial, tanto a nível individual quanto a nível social, enquanto o segundo busca a garantia de direitos constitucionais.

Mas primeiro, o que é a cultura do cancelamento? Esse tem sido um comportamento muito difundido, principalmente nas redes sociais, no qual um grupo ou indivíduo é julgado e excluído devido a um posicionamento ou atitude considerado ilegal ou imoral por parcela da sociedade, que age como acusador, juiz e carrasco. Busca-se levar a pessoa "julgada" ao ostracismo social.

Nas últimas semanas um caso que voltou a ser amplamente discutido na mídia e nas redes sociais é a disputa Johnny Depp x Amber Heard. Atualmente os dois atores, que já foram um casal, encontram-se numa disputa judicial na qual o ator pleiteia indenização de US$ 50 milhões, sob a alegação de ter sido difamado por Heard, que o acusou de violência doméstica. A seu turno, a atriz pede indenização de US$ 100 milhões pelas falas de Depp.

Sem entrar no mérito de quem está certo ou errado nessa disputa, se os fatos ocorreram ou não, não se pode negar que quando Depp foi acusado de violência doméstica a mídia e o público avaliaram e condenaram-no como culpado, tendo o ator sofrido intenso "cancelamento", o que gerou, inclusive, a perda de papéis para os quais ele já havia sido contratado.

Obviamente surgiram vozes em seu favor, mas os movimentos para que ele fosse "cancelado" e para que não fizesse mais parte do elenco de grandes produções foi notável, tendo a sociedade agido como legislativo e judiciário, na medida em que decidiu pela culpa do ator, de maneira sumária, e também entendeu pela aplicação de penas de caráter social (busca de sua retirada de filmes ou boicote a produções já finalizadas).

No direito penal existem dois princípios fundamentais que regem o processo, quais sejam, o princípio da presunção de inocência ou não culpa e o "in dubio pro reo", que significa "na dúvida, a favor do réu". O primeiro, previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal [1], deve ser observado durante todo o processo, atuando tanto como regra de tratamento, ou seja, o acusado deve ser tratado como inocente dentro e fora do processo, quando como regra probatória, que, quando da sentença, deve observar também o segundo princípio citado, ou seja, na dúvida, o acusado deverá ser absolvido. Apenas a certeza é hábil a gerar condenação, mormente porque estamos lidando com o direito à liberdade do ser humano.

A cultura do cancelamento é o exato oposto, a pessoa se transforma em culpada, devido à opinião pública, até que prove sua inocência. Ademais, essa decisão é tomada de forma sumária, ou seja, com pouco ou nenhum elemento que corrobore sua ocorrência, no momento em que surge a alegação do cometimento de qualquer ilegalidade (ou imoralidade) por parte daquele indivíduo.

Evidentemente que não se está defendendo a impunidade e, caso alguém cometa um delito, essa pessoa deve ser responsabilizada por aquilo, mas essa responsabilidade incumbe ao judiciário, que deverá proporcionar um processo justo, que se desenvolva observando todos os direitos daquele que é julgado. Ademais, o poder punitivo compete ao Estado, após, como mencionado, o devido processo legal.

Não se está aqui para fazer uma análise das penas e da sua história evolutiva, porém é necessário lembrar que o modelo que existe atualmente, com a necessidade de um processo e o poder de execução das penas nas mãos do Estado, surgiu pela necessidade de se estabelecer ordem e também para evitarem-se injustiças ou desproporções na aplicação das penas.

Dito isso, fica evidente que o cancelamento social simplesmente desrespeitar qualquer direito que a pessoa que está a ser "cancelada" possua.

Vamos novamente pegar como exemplo o caso de Johnny Depp. O delito pelo qual ele foi acusado seria de lesão corporal no contexto de violência doméstica, que, no Brasil, possui pena de três meses a três anos de detenção (artigo 129, §9º, Código Penal [2]). Verifica-se que inexiste condenação na esfera profissional do réu, ou seja, que gere, por exemplo, sua demissão por justa causa. Muito pelo contrário, quando analisamos a legislação penal como um todo, de forma sistêmica, observamos que o trabalho desempenha um importante papel, inclusive durante o cumprimento de pena. Na Lei da Execução Penal (Lei nº 7.210 de 1984 [3]), os artigos 39, inciso V, e 41, inciso II, apontam que o trabalho é um dever e um direito do apenado, além de constituir uma obrigação para o livramento condicional, conforme artigo 132, §1º, "a", do mencionado diploma legal.

Ademais, quando finalizada a pena, a reinserção de ex-detentos no mercado de trabalho é um assunto sempre em voga, na medida em que se aponta a necessidade de que isso ocorra, para a reintegração social e também como meio para evitar reincidência. Ou seja, a sociedade aponta a necessidade de reinserir pessoas que foram condenadas, e cumpriram pena, no mercado de trabalho, mas essa mesma sociedade, de forma sumária, sem qualquer processo ou direito observado em benefício do acusado, busca sua responsabilidade por meio do ostracismo social.

Essa busca da sociedade por substituir-se aos Poderes Legislativo e Judiciário, o que fica evidente quando tratamos do movimento do cancelamento social, pode gerar um verdadeiro retrocesso, pois retira do indivíduo a própria liberdade de manifestar-se (visto que um comportamento, ainda que não seja crime, também pode não ser bem aceito por uma parcela da sociedade, se essa não concordar com aquele posicionamento), fomentando uma cultura de medo, além de poder ocasionar sérios prejuízos à vida daqueles "condenados" pelo movimento.

A sociedade não é obrigada a concordar com o modo como o processo judicial se desenvolve, com as penas que são aplicadas, nem como elas são executadas, mas o caminho adequado certamente não é "fazer justiça com as próprias mãos". Existem mecanismos legais que possibilitam essa mudança, e é a busca pela evolução das leis e dos processos que deve pautar os movimentos sociais.


[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: maio de 2022.

[2] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: maio de 2022.

[3] BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: maio de 2022.

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