Questão de Gênero

A medida protetiva de urgência concedida pela autoridade policial

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20 de maio de 2022, 8h03

Como já tivemos diversas oportunidades de afirmar nesta coluna, a Lei Maria da Penha instituiu entre nós um microssistema de proteção às mulheres. Uma de suas inovações foi a previsão das medidas protetivas de urgência (artigos 22 a 24). Com natureza jurídica de medidas cautelares, as medidas protetivas de urgência, como o próprio nome indica, se prestam a proteger as mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Demandam pedido da mulher ou manifestação do Ministério Público e indícios de que houve a violência e risco à mulher ou a seus familiares.

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As medidas protetivas podem consistir em:

I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação;

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio

VIII – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

IX – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

X – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

XI – determinar a separação de corpos.

XII – determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga.

XIII – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

XIV – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

XV – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

XVI – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

A medida protetiva mais comumente aplicada é a determinação de afastamento da pessoa agressora da vítima e de seus familiares, sendo possível que mais de uma medida seja concedida a depender das circunstâncias do caso concreto. Além disso, é admissível que outras medidas (que não estas enumeradas pela lei) sejam aplicadas, na medida em que se mostrem necessárias na situação fática.

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Na redação original da Lei Maria da Penha, as medidas protetivas de urgência somente poderiam ser concedidas por juízas e juízes de Direito. A Lei nº 13.827/2019 alterou esse sistema, admitindo que a autoridade policial determine que a pessoa agressora seja imediatamente afastada do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida quando o município não for sede de comarca. Admite-se, ainda, que quando o município não for sede de comarca e não houver autoridade policial no momento do registro da ocorrência, que a determinação de afastamento seja feita pelo policial disponível no momento.

A Associação dos Magistrados do Brasil ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.138) questionando essa novidade legislativa, afirmando que, sem que haja situação de flagrante delito, a entrada de um policial sem autorização judicial em um domicílio seria ilegítima. O procurador-geral da República manifestou-se pela inconstitucionalidade da norma, que feriria a necessária reserva de Jurisdição.

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal não vislumbrou a inconstitucionalidade. Pelo contrário: considerou válida a atuação supletiva e excepcional da autoridade policial e de policiais a fim de afastar o agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida quando houver risco atual ou iminente à vida ou à integridade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou a seus dependentes (julgamento realizado pelo Plenário do STF, no dia 23/3/2022, tendo por relator o ministro Alexandre de Moraes).

Afirmou-se que a concessão de medida protetiva pela autoridade policial ou por policiais, nos termos da lei, seria razoável, proporcional e adequada, na medida em que retiraria imediatamente a pessoa agressora do convívio com a mulher ofendida e seus familiares. Evidentemente, a medida é excepcional e precisa ser submetida ao Poder Judiciário. A lei determina que a autoridade judiciária responsável pela localidade seja comunicada no prazo máximo de 24 horas, devendo então decidir sobre a manutenção ou revogação da medida protetiva concedida pela autoridade policial ou pelo policial.

A norma traz inegáveis vantagens para a tão necessária proteção às mulheres. A Constituição Federal trata como prioritário o enfrentamento à violência contra as mulheres. Também o sistema internacional de proteção dos direitos humanos dá particular enfoque aos direitos das mulheres em situação de violência.

Além disso, a lei prevê mecanismo de controle jurisdicional subsequente à concessão da medida de afastamento pela autoridade policial ou pelo policial, de modo que a previsão atual seria compatível com a Constituição Federal, ou seja, seria constitucional. Com esse entendimento, o Supremo julgou a ação improcedente.

Mas aqui se impõe um sério questionamento. A Lei Maria da Penha, quando disciplina o processamento das medidas protetivas de urgência, estabelece que o pedido da ofendida será encaminhado à Autoridade Judiciária que deverá apreciá-lo em 48 horas (artigo 18). Nos parece que a previsão de que a autoridade policial possa determinar o afastamento da pessoa agressora somente nas cidades que não forem sede de comarca gera uma discriminação incompreensível.

Se a situação é urgente a ponto de se admitir como razoável e proporcional que a medida seja deferida ad referendum da autoridade judiciária, o que justifica que a mulher ofendida que reside em um grande centro possa ficar esperando 48 horas pela apreciação da sua medida protetiva? O ideal seria que a autoridade policial sempre pudesse determinar o afastamento da pessoa agressora.

Como delegadas de polícia que somos, podemos testemunhar a angústia que nos causa a situação de ver a pessoa agressora saindo do flagrante sem a determinação de que não se aproxime da ofendida e de seus familiares. Seria de extrema prudência que, já por ordem da autoridade policial, a pessoa ofensora ficasse impedida de procurar a ofendida e seus familiares. Sempre, evidentemente, devendo ser provocada a autoridade judiciária para referendar ou rever a determinação.

Um outro aspecto preocupante relaciona-se à não configuração do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência quando não cumprida a determinação da autoridade policial ou do policial. Dita o artigo 24-A que configura crime "descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência".

O direito penal não admite analogias que possam prejudicar a pessoa contra quem ele se levanta. Não se pode, portanto, ampliar os termos da lei, para cogitar da configuração do crime de descumprimento de medida protetiva quando o afastamento for determinado pela autoridade policial ou pelo policial.

Também não se pode cogitar de crime de desobediência, considerando a previsão de prisão preventiva caso haja descumprimento das medidas protetivas (seguindo o precedente do Superior Tribunal de Justiça segundo o qual, para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista previsão de sanção específica — 5ª Turma. AgRg no REsp 1.528.271/DF, relator ministro Jorge Mussi, julgado em 13/10/2015).

A alteração legislativa que permitiu que a autoridade policial ou o policial da localidade concedam a medida de afastamento é bastante relevante, mas poderia ter sido mais audaciosa, admitindo a possibilidade em todos os casos, com a consequente configuração do crime de descumprimento de medida protetiva. Assim, todas as mulheres estariam amparadas por uma proteção imediata.

Por fim, há que se ressaltar que, a despeito da decisão emanada da instância superior, com relação à concessão das medidas protetivas pela autoridade policial (que se personifica no delegado ou delegada de polícia), não há objeção, vez que se trata de servidor integrante dos quadros de carreira jurídica do estado e que teria aptidão técnica e jurídica para tal decisão.

O que causa espécie, é a concessão feita pelo policial não integrante de carreira jurídica. Como designar uma atribuição a pessoa que não tem formação técnica jurídica para apreciar pedido que verse sobre limitações a direitos e garantias individuais?

Resta claro que a mens legis é de proteção integral à vítima de violência doméstica e familiar, no entanto, tal proteção também encontra barreiras em direitos e garantias individuais. Restringir direitos constitucionais deveria ocorrer apenas em situações excepcionais e por pessoas que tenham formação técnico acadêmica para tanto, ou seja, por integrantes das chamadas carreiras jurídicas de estado.

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