Opinião

O STJ já examina fatos e provas, mas de modo aleatório

Autor

  • Fernando Mil Homens Moreira

    é advogado doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) pesquisador visitante na Harvard University e na Yale University pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Università degli Studi di Milano (Statale) graduado em Direito pela USP e ex-assessor de ministro do STJ de ministro do STF e da Presidência do STF.

    Ver todos os posts

20 de maio de 2022, 6h28

Em artigo intitulado "Fatos e recursos nos Tribunais Superiores — Uma combinação impossível?" [1], a estimada professora Teresa Arruda Alvim defendeu, em resumo, "que os Tribunais Superiores não podem se furtar a examinar fatos".

Todavia, essa pretendida análise de fatos pelo e. Superior Tribunal de Justiça já é feita há mais de duas décadas nos julgamentos de recursos cíveis naquela corte, conforme constatação empírica que faço ao longo de mais de 20 anos de experiência própria trabalhando especifica e quase que exclusivamente com recursos especiais.

Nesse sentido — de que no julgamento de recursos cíveis o e. Superior Tribunal de Justiça analisa fatos (tanto por meio do exame do conteúdo de provas juntadas aos respectivos autos, como, também, por meio do exame do teor de cláusulas contratuais em discussão, a despeito desses fatos e cláusulas não estarem transcritos nas decisões das instâncias ordinárias) —, posso citar alguns exemplos:

1) REsp 1.783.076/DF (3ª Turma, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 24/05/2019), no qual se analisou o teor da "cláusula da convenção em debate", juntada às "fl. 37 e-STJ", bem como do "Regimento Interno do Condomínio", juntado às "fls. 48-50 e-STJ".

2) REsp 1.704.204/SP (3ª Turma, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 3/9/2018), no qual se analisou o conteúdo de cláusulas de "contrato entabulado pelas partes", juntado às "fls. 122/123", bem como o teor da prova de "pagamento da indenização", juntada às "fls. 181/182".

3) REsp 1.324.482/SP (3ª Turma, rel. min. Moura Ribeiro, DJe 8/4/2016), no qual se analisou o conteúdo de documento "lançado à e-STJ, fl. 103", isto é, do documento juntado às fls. 103 dos autos daquele recurso especial, para se definir que "O documento, portanto, não pode ser tido como notificação prévia para o exercício do direito de preferência na operação de venda".

4) REsp 1.517.201/RJ (3ª Turma, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 15/5/2015), no qual se analisou o teor de "cláusula contratual", juntada às "fls. 101/102".

5) AgRg no AgRg no Ag 652.503/RJ (6ª Turma, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 8/10/2007), no qual se analisou o teor da "cláusula nº 7 do contrato de locação" [2].

6) REsp 268.701/MS (3ª Turma, rel. min. Ari Pargendler, DJ 3/6/2002), no qual se analisou "o teor do acordo formulado pelas partes", vale dizer, no qual foram "analisadas as cláusulas do acordo".

Além dos exemplos acima, trago à lembrança o REsp 702.365/SP (4ª Turma, rel. min. Fernando Gonçalves, rel. p/ acórdão min. Jorge Scartezzini, DJ 6/11/2006), no qual houve intenso debate sobre o cabimento de "denunciação da lide com base no artigo 70, III, do CPC [de 1973]", ou seja, sobre o cabimento de denunciação da lide por força de previsão contratual (cfr. artigo 125, inciso II, do CPC atual), tendo os votos vencidos (o placar foi 3 a 2 a favor da denunciação da lide) entendido, em síntese, que a denunciação da lide dependeria da "exegese de cláusulas contratuais", o que seria obstado pela "incidência dos verbetes ns. 5 e 7 da Súmula do STJ", mas tendo a eminente ministra Nancy Andrighi sido convocada para desempatar e divergido desse posicionamento, concluindo pelo cabimento da denunciação da lide, sob o fundamento, em resumo, que "a aplicação das [referidas] súmulas admite abrandamento diante de flagrante violação aos princípios da celeridade e da economia".

E na mesma linha do que defendeu agora a professora Teresa Arruda Alvim no artigo "Fatos e recursos nos Tribunais Superiores – Uma combinação impossível?", disse em 2006 a eminente ministra Nancy Andrighi, em síntese, em seu voto-desempate no REsp 702.365/SP que (1) "ante novos enfoques suscitados pelas partes, cabe aos juízes repensar as soluções que até então pareciam pacíficas em face do que, às vezes, significa uma pouco refletida tendência à mera reiteração, sob pena de impactos deletérios sobre os princípios processuais e, até mesmo, sobre garantias maiores"; (2) que "não se pode perder de vista que a aplicação das súmulas deve ser feita com temperamento, deixando-se de lado o excessivo formalismo ou tecnicismo puramente perfunctório, para, assim, buscar-se a efetividade do processo"; (3) "que não é inusitado ver a jurisprudência do STJ admitindo até mesmo o abrandamento de súmula do STF" e (4) que "não há súmula que possa valer diante de flagrante violação de direito".

Como se vê pelos exemplos acima, que certamente não são os únicos, há mais de duas décadas o e. Superior Tribunal de Justiça se não furta a examinar fatos, o problema é que essa análise de fatos e de provas é feita de forma aleatória; isto é, a despeito "dos verbetes ns. 5 e 7 da Súmula do STJ", em alguns processos é feita a referida análise para se julgar o mérito dos respectivos recursos especiais, como nos exemplos citados acima, mas na quase totalidade dos demais julgamentos sobre fatos e cláusulas contratuais essas súmulas são aplicadas para não se adentrar no mérito dos respectivos recursos especiais.

Portanto, creio que o que deva ser debatido não é se deveria o e. Superior Tribunal de Justiça analisar fatos e provas nos julgamento dos recursos especiais, porque isso ele já faz há décadas — como são prova disso os exemplos citados acima —, mas, sim, se já não passou do momento de serem canceladas as arcaicas Súmulas 5 e 7 daquela corte, a fim de que os jurisdicionados cujos recursos especiais não são conhecidos por "incidência dos verbetes ns. 5 e 7 da Súmula do STJ" não continuem a serem tratados de forma discriminatória em relação aos jurisdicionados dos exemplos citados acima, nos quais referidas súmulas foram afastadas, ou simplesmente ignoradas, com as análises explícitas sobre os conteúdos de provas e cláusulas contratuais não transcritas nas decisões das instâncias ordinárias.

De fato, o eminente ministro Luiz Fux, quando ainda integrante do e. Superior Tribunal de Justiça, ao assumir a relatoria do REsp n° 1.111.743/DF (Corte Especial, DJe 21/6/2010), consignou que "as soluções têm de ser necessariamente iguais", como consequência da "aplicação na prática do princípio da isonomia"; isto é, como corolário do princípio da isonomia jurisdicional.

No mesmo sentido, o eminente ministro Ricardo Lewandowski afirmou que, em atenção ao princípio contido no artigo 5°, caput, da Constituição Federal, "para a solução da espécie é importante recordar antigas regras de hermenêutica jurídica segundo as quais: ubi eadem ratio ibi idem jus (havendo o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito) e ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (havendo a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir)" (STF, RE n° 638.006/RS, DJe 12/3/2014, grifado e destacado).

Com efeito, como disse o ministro José Augusto Delgado, "A presença da não uniformidade das decisões judiciais […] gera intranquilidade, tornando-se causa aumentativa dos conflitos. Ofende, de modo fundamental, aos princípios do regime democrático e do respeito à dignidade humana, da valorização da cidadania e da estabilidade das instituições" [3].

Nessa linha de entendimento, aqui concluo este texto, mas não o debate sobre o tema, esperando, que incite mais discussões sobre a questão da análise de fatos e provas pelo Superior Tribunal de Justiça, especialmente sobre o cancelamento das Súmulas 5 e 7 daquela corte, ante a necessidade de respeito à garantia constitucional fundamental da isonomia jurisdicional.


[2] Embora no v. acórdão proferido no julgamento do AgRg no AgRg no Ag 652.503/RJ não conste a citação das folhas daqueles autos nas quais estava juntado o contrato de locação cuja cláusula está transcrita no referido v. acórdão, o teor da analisada "cláusula n. 7 do contrato de locação" não está transcrito no acórdão recorrido, proferido pelo TJRJ, conforme é possível se constatar isso em: http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000303DE8DB5FFEC92F9E8EF84D078B164067569C31D5806&USER=. Acesso em 10/5/2022.

[3] A Imprevisibilidade das Decisões Judiciárias e seus Reflexos na Segurança Jurídica. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/74120. Acesso em 10/5/2022.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador visitante na Harvard University e na Yale University, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Università degli Studi di Milano (Statale) e graduado em Direito pela USP. Foi assessor de ministro do STJ, de ministro do STF e da Presidência do STF.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!