Opinião

O Reintegra e o princípio da não exportação de tributos

Autores

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

  • Paulo Roberto Coimbra Silva

    é sócio do Coimbra Chaves & Batista Advogados professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.

18 de maio de 2022, 6h07

O Direito recebe valores econômicos, artísticos, religiosos etc. e os sujeita às suas próprias estruturas e fins, tornando-os jurídicos, na medida e enquanto os integra em seu ordenamento. Tal como Midas, o Direito, não por castigo, mas por destinação ética, converte em jurídico tudo aquilo que toca [1].

A CRFB/88 estabelece a garantia do desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3º, II) e, no campo das exportações, este é um desiderato que deve/pode ser perseguido por meio de uma estratégia de tributação no destino, política fiscal recomendada pela ONU e pela OCDE. A competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional depende dessa desoneração tributária das exportações.

O princípio do destino do comércio internacional ingressa no ordenamento jurídico brasileiro e se revela por meio das imunidades das operações que destinem mercadorias e serviços ao exterior, em relação aos impostos IPI, ICMS e ISS (artigo 153, § 3º, III; artigo 155, § 2º, X, a; artigo 156, § 3º, II), assim como em relação às contribuições (sociais e de intervenção no domínio econômico) sobre as receitas de exportação (artigo 149, § 2º, I), e por meio da determinação constitucional para cobrança dos mesmos tributos sobre a importação de mercadorias ou de serviços (artigo 149, § 2º, II; e artigo 155, § 2º, IX, "a").

Enfim, o princípio da tributação no destino adotado no comércio internacional foi juridicizada pela CRFB/88, sob a forma de um princípio jurídico da não exportação de tributos, como reconhecido pelo STF em julgados como o RE nº 474.132 e o RE nº 606.107.

Entretanto, como ressabido, nem toda a carga tributária consegue ser expurgada das mercadorias e serviços exportados. Foi por isso que, em 2011, o governo federal, no intuito de não prejudicar a exportação dos produtos nacionais com a tributação e, sobretudo, em estrito cumprimento da imunidade constitucional das exportações, criou o Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras (Reintegra).

Densificando o mandamento constitucional, o artigo 1º da Lei 12.546/2011 firmou que o objetivo do Reintegra era "reintegrar valores referentes a custos tributários federais residuais existentes nas suas cadeias de produção". Nesse mesmo compasso, a Lei nº 13.043/2014, reinstituindo e perenizando o Reintegra, em seu artigo 21, estabelece que o objetivo é "devolver parcial ou integralmente o resíduo tributário remanescente na cadeia de produção de bens exportados".

Em tese, as cadeias produtivas de exportação podem ser desoneradas por meio da aplicação da técnica da "não cumulatividade", a partir da qual é possível identificar qual tributo foi pago em cada etapa da produção e fazê-lo repercutir para o contribuinte de fato. Imunizando a exportação e garantindo o direito de crédito dos insumos, como determina o artigo 155, § 2º, X, a, da CRFB/88, restaria desonerada a exportação. Entretanto, como consabido, sequer para o ICMS o sistema é perfeito e o preço do produto destinado a exportação acaba sendo "contaminado" pelos chamados resíduos tributários.

A deficiente "não cumulatividade" do PIS/Cofins, como brilhantemente deixou evidenciado o ministro Gilmar Mendes (no RE 607.109, afetado ao Tema 304 da Repercussão Geral), não é benefício e não é absoluta. Trata-se de uma "técnica" que deve ser densificada por regras legais infraconstitucionais. Como bem explicou o ministro, o creditamento do PIS/Cofins não garante a neutralidade da tributação e nem a repercussão do tributo, mas apenas se presta para reduzir a tributação total na cadeia produtiva. Ao contrário de um sistema (perfeito) de créditos "imposto x imposto", em que se abate o tributo anteriormente pago, repercutindo a tributação, no caso do PIS/Cofins, a sistemática de creditamento promove, singelamente, tão somente a redução da carga tributária total ao longo da cadeia produtiva. Pela própria estrutura do sistema de creditamento das contribuições é impossível pretender neutralizar a tributação em cascata que ocorre ao longo da cadeia de produção/serviços.

O Reintegra, nessa toada, é mero procedimento complementar à técnica constitucional da não cumulatividade, que a complementa e integra, para dar aplicação e densificar o princípio constitucional da não exportação de tributos. Não se trata de "benefício", mas de um direito do exportador de repor custos tributários ocorridos nos elos da cadeia produtiva e que oneram as exportações. O mecanismo complementar, assim, serve para corrigir as deficiências da técnica da não cumulatividade e propiciar a efetiva imunidade das exportações, bem como para desonerar resíduos causados por tributos cumulativos.

Como bem afirma Flávia Gaeta (Reintegra, do verbo ao crédito), o Reintegra não é um tributo, nem está vinculado a uma espécie tributária. Trata-se de um mecanismo complementar da técnica da não cumulatividade para permitir o ressarcimento de resíduos tributários que não conseguiram ser devidamente afastados pela aplicação da regra da imunidade.

O Reintegra visa, portanto, restituir o contribuinte exportador dos valores que este pagou por esses resíduos, concedendo créditos tributários previstos em lei, que podem variar de 0,1% até 3%, admissível chegar até 5% em caso de laudo técnico comprobatório da carga tributária da cadeia produtiva em questão.

No presente momento, há duas ações pendentes de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, ADIs n° 6.040 e 6.055, que discutem o tratamento despendido pelo governo federal ao Reintegra. Nas referidas ações, é questionada a livre manipulação dos percentuais de créditos a serem restituídos aos contribuintes, não raro fixados no menor valor possível (0,1%).

Com base no artigo 22 da Lei n. 13.043/2014, o governo federal já modificou por três vezes o artigo 2º, §7º do Decreto n. 8.415/2015, que trata deste percentual. Em todas as ocasiões, a (arbitrária) alteração efetuada foi uma redução do percentual ao qual o contribuinte faz jus. Como bem exposto pelo contribuinte nas ADIs em questão, estas repetidas alterações efetuadas pela União, sempre de modo desfavorável ao exportador brasileiro, frustram a devida aplicação da sistemática do Reintegra e, com isso, desrespeitam o princípio constitucional da não tributação das exportações.

Em respeito ao princípio da legalidade, é forçoso admitir que o dispositivo não abre margem de discricionariedade para o Executivo, à luz de um juízo de conveniência e oportunidade, estabelecer os percentuais de apuração dos créditos garantidos que entender politicamente adequados.

A lei não outorga poderes ao Executivo de definir os valores que devem ser devolvidos ao seu alvedrio. O Reintegra tem uma finalidade expressa, que é a de "devolver" resíduos tributários que ficaram cumulados na cadeia de produção de bens exportados. O poder não é outorgado no vácuo, mas é para atender à finalidade da lei que o "poder/dever" é concedido. Usar dessa faculdade com finalidade arrecadatória ou distinta é incorrer em um "ilícito atípico", em uma espécie de "desvio de finalidade" [2].

Da mesma forma, nos termos do § 2º, do artigo 22 da Lei 13.043/2014, o percentual a ser aplicado sobre a receita auferida com a exportação desses bens pode ser majorado em 2%, em caso de exportação de bens em cuja cadeia de produção se verifique a ocorrência de resíduo tributário que justifique a devolução adicional. E para tanto, tudo precisa ser comprovado por estudo ou levantamento realizado conforme critérios e parâmetros técnicos que vierem a ser estabelecidos em regulamento.

A toda evidência, o dispositivo abre margem de "discricionariedade técnica" (falsa discricionariedade), ou seja, o que a lei abre é margem de verificação técnica para que o Executivo apure o resíduo tributário que remanesce na cadeia produtiva. Não se trata de outorga de poderes discricionários, mas de margem de apuração técnica para que possa a Administração estabelecer a dosimetria (percentual a ser aplicado sobre a receita das exportações) do crédito a que o exportador faz jus. Cabe ao Executivo apurar o resíduo e verificar o quantum de devolução deve ser permitido em PER/DComp.

Apenas verificando tecnicamente o resíduo e, consequentemente, modulando a alíquota e procedendo à devolução precisa é que o Executivo pode atender à finalidade posta pela lei e, assim, favorecer o desenvolvimento nacional. Essa é a razão (extrafiscal) que embala o mecanismo. Com a devida vênia que se pede ao sempre i. Relator e aos ministros que o seguiram, o posicionamento divergente do ministro Fachin é o que traz a melhor interpretação.

O Reintegra não é um benefício fiscal, mas um mecanismo que complementa a técnica da não cumulatividade para que se possa desonerar a cadeia de exportação e, assim, dar maior efetividade à norma constitucional de imunidade. Esse é o entendimento que assegura um maior nível de eficácia às normas constitucionais que exoneram as exportações e, assim, buscam favorecer a competitividade da indústria nacional.

As imunidades das exportações brasileiras decorrem de normas constitucionais, a um só tempo, programáticas e indutoras, que não devem, enquanto política pública de Estado, ficar à mercê da conveniência ou necessidades arrecadatórias de governos, sejam de direita ou de esquerda.

O Reintegra, a exemplo do que expôs o ministro Fachin, não constitui mera subvenção econômica, mas sim direito subjetivo do exportador, com estribo, na imunidade concedida pela Lex Mater às exportações.

Como direito do contribuinte, o percentual do crédito sobre a receita de exportações garantido pelo Reintegra não está a sujeito à definição arbitrária pelo Executivo. Pelo contrário, uma vez preenchidos seus requisitos, a autoridade tributária se vincula à sua concessão no percentual que equivaler aos resíduos tributários presentes na cadeia produtiva da empresa.

A lei não dá um cheque em branco para o Estado determinar o percentual ao seu bel-prazer, mas determina o dever/poder de a Administração averiguar, de forma técnica, qual o valor destes resíduos que se objetiva eliminar, fixando, com base nesta verificação, o percentual de crédito ao qual o titular deste direito subjetivo fará jus.

Os prejuízos à economia nacional decorrentes da perda de competitividade dos produtos nacionais no mercado externo são incalculáveis e, a toda evidência, acintosamente contrários aos objetivos albergados pela Constituição brasileira.


[1] Na expressão de REALE JÚNIOR, Miguel. Lições preliminares de direito. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 22.

[2] Nesse sentido, vale conferir ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Ilícitos atípicos. 2ª ed. Madrid: Trotta, 2006, p. 91-114.

Autores

  • é sócio do Coimbra, Chaves & Batista Advogados, professor associado de Direito Público da Graduação e Pós-graduação da UFMG, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

  • é sócio fundador do Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG, doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.

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