Direito Digital

Diretiva sobre comércio eletrônico na Europa: avaliações finais

Autores

  • Isadora de Cássia Fornari Chueire

    é advogada professora universitária de Direto Empresarial pesquisadora pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito SP) e membro de grupos de pesquisa de inovação mercados digitais e propriedade intelectual.

  • Ricardo Canavan Martins Junqueira

    é advogado mestre em Ciências Jurídicas — Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro da Comissão de Direito Digital Proteção de Dados e Propriedade Intelectual da OAB/MG subseção Juiz de Fora.

  • Maria Gabriela Grings

    é mestre e doutora em Direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) coordenadora do Legal Grounds Institute e advogada.

  • Tatiana Bhering Roxo

    é mestre em Direito do Trabalho pela Pontifício Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) sócia do Barra Barros e Roxo Advogados advogada nas áreas trabalhista e de privacidade e proteção de dados pessoais professora convidada nos cursos de pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho da Universidade Presbiteriana Mackenzie e em cursos de pós-graduação cursos in company e de curta duração e autora de artigos e livros.

  • Samuel Rodrigues de Oliveira

    é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) coordenador do Legal Grounds Institute e advogado.

18 de maio de 2022, 11h56

Influenciada pelas novas expectativas econômicas trazidas pela internet que começava a se espraiar, no dia 08 de junho de 2000 era aprovada e publicada a Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico europeia [1], na qual a União Europeia tinha a audaciosa intenção de explorar um território regulatório até então inexistente, e que dizia respeito a um ambiente virtual que reformulava as mais simples relações pessoais e contratuais cotidianas.

ConJur
Após 65 "considerandos" que serviriam de baliza para uma correta hermenêutica do texto, a norma adentra em seus artigos propriamente ditos, e sobre os quais alguns apontamentos serão feitos mais à frente. Até mesmo porque, um dos grandes pontos de discussão sobre a norma diz respeito às hipóteses de existência de responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços — algo que ainda se encontra no foco dos debates mundiais 20 anos depois.   

Nesse sentido e levando em consideração o atual contexto das discussões sobre as novas regulações digitais da União Europeia  que, tendo em vista a brevidade deste escrito, serão resumidas com referências aos chamados Digital Services Act (DSA) e Digital Markets Act (DMA) , o objetivo do presente artigo é revisitar os principais elementos fáticos e estruturantes da Diretiva, no intuito de se extrair algumas lições a partir da avaliação das mudanças dos paradigmas relativos ao ambiente virtual em virtude de seu contínuo e infindável processo de construção, e, além disso, esboçar uma breve avaliação final do marco legal que está saindo de cena.

Os principais aspectos da diretiva
O primeiro ponto de interesse a ser levado em consideração a respeito da Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico refere-se ao seu contexto de discussão e aprovação, pois, como nos mostra Pierpaolo Fratangelo, as fronteiras mundiais do comércio começavam a ser relativizadas em virtude da criação de um ambiente virtual no qual precisaríamos apenas de um pequeno computador e um modem para celebrar relações contratuais das mais variadas, sendo que, na frente de tal corrida desenvolvimentista, estavam Estados Unidos e alguns países integrantes do bloco europeu que passaram a vislumbrar  a necessidade de se criar um quadro normativo minimamente claro e enxuto, apenas no intuito de proteger os consumidores de abusos e garantir um grande mercado competitivo aos prestadores [2].

 É nesse contexto de percepção de uma grande inovação macroeconômica que surge a proposta de Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico, e do qual podemos retirar a primeira grande lição: em seus primórdios, a internet era vista apenas como uma grande ferramenta de desenvolvimento econômico, e, por conta desse espectro ainda limitado, não era possível vislumbrar as externalidades negativas que as plataformas porvir causariam  podendo citar a título de exemplo concentração de mercado, criação de ambientes que possibilitam a viralização de fake news, discursos de ódio e antidemocráticos.

Aliás, não por outro motivo, Fratangelo considera que o chamado Princípio do Mercado Interno insculpido no artigo 3º da Diretiva era o ponto que melhor retratava sua estrutura e objetivos [3], pois, segundo tal vetor principiológico, um prestador regularmente estabelecido em um Estado-Membro da União Europeia poderia prestar seus "serviços da sociedade da informação" no território de outro Estado-Membro sem a exigência de formalidades ou autorização prévia.

Por óbvio que, como se observa do item 4 de tal artigo, o chamado Mercado Interno poderia sofrer limitações de acordo com assuntos previamente estabelecidos (interesse público; escolha pelo prestador de estabelecimento de seus negócios em um Estado-Membro para escapar de determinada legislação de outro; direitos autorais; dinheiro eletrônico; seguros; liberdade das partes de escolher a lei aplicável ao seu contrato; obrigações relativas a contratos de consumo; validade formal de contratos relativos aos direitos sobre bens imóveis; permissibilidade de comunicações comerciais não solicitadas através de correio eletrônico), porém, naquele momento, a estrutura legislativa parecia atingir seus objetivos no sentido de criar e facilitar o acesso de todos a uma grande e competitiva teia de negócios. 

Já como segundo aspecto a ser tratado, estão as disposições dos artigos iniciais da Diretiva que determinam as informações mínimas que deverão ser prestadas pelos contratantes de uma relação comercial, para, dessa maneira, conferir proteção aos consumidores já na fase pré-contratual, uma vez que eles deverão ser informados de todas as caraterísticas da relação à qual se obrigarão (artigo 5º); trazem disposições sobre privacidade dos consumidores e o envio e recebimento de comunicações comerciais (artigos 6º a 8º); como regra geral, determina que os Estados-Membros autorizem a celebração de contratos eletrônicos (artigos 9º a 11).

Os artigos 12 a 15 tratam do tema mais pungente e polêmico da Diretiva, a delimitação de responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços. No intuito de enriquecermos tal discussão, os abordaremos no próximo item de maneira mais aprofundada e comparando com as atuais discussões para elaboração do Digital Service Act (DSA), o que demonstrará, inclusive, uma maior preocupação com o consumidor do que a debatida no parágrafo anterior.

Por fim, observa-se a preocupação do bloco europeu em determinar que os Estados-Membros incentivem a criação de Códigos de Conduta por parte das empresas que disponibilizem serviços virtuais (artigo 16)  o que talvez caracterize um dos primeiros incentivos a uma espécie de enforcement privado para proteção dos usuários no ambiente virtual , bem como a determinação para que os Estados-Membros criem meios para resolução de conflitos (artigos 17 e 18), que, muito provavelmente, aumentariam, tendo em vista a novidade e a amplitude do ambiente virtual.

A responsabilidade das plataformas digitais
Especificamente sobre a responsabilidade, a Diretiva 2000/31 estabelece regras de acordo com os níveis de controle e tipos de serviço exercidos na execução das atividades pelas plataformas digitais. Conforme destaca Teresziewics [4], o texto da Diretiva 2000/31 coloca as plataformas em uma posição de porto seguro, diante dos riscos de responsabilidade moderados, favorecendo aqueles que não exercem um monitoramento das atividades em seus servidores online.

Teresziewics [5] também aponta que o papel exercido pela provedora do serviço, pode ser dividido em duas frentes: a primeira, quando há a mera transmissão de informações, nesse caso a plataforma age como simples intermediadora. Já na segunda forma, quando a atuação da plataforma, ultrapassa a superficialidade da conexão entre pessoas e/ou agentes de serviços e oferece uma operação subjacente a sua atividade principal, envolvendo o armazenamento de dados, que pode ser temporário ou não.

Nos artigos da Diretiva, há na verdade um apontamento negativo de hipóteses. O texto aponta como não caracterizar a responsabilidade das plataformas, de acordo com o modelo de atividade oferecido aos usuários. No artigo 12º, por exemplo, que trata de redes que prestam serviços de facilitação a transmissão, a responsabilidade não pode ser invocada quando a plataforma não altera as mensagens ou escolhe os usuários, pois seu serviço é de mera conexão, mesmo que esta armazene temporariamente alguns dados.

Já nos artigos seguintes, sobressai a responsabilidade limitada, em caso de ilícitos cometidos na rede, caso a plataforma aja com diligência, a partir do momento que tenha conhecimento desse tipo de situação (artigo 14) e, a permissão de não vigilância (artigo 15) sobre as informações transmitidas. Eis aqui o porto seguro das plataformas, que evita a responsabilização dos serviços digitais.

Importa recordar que a Diretiva foi instaurada no início do desenvolvimento do e-commerce, nesse cenário destaca-se a empresa eBay pioneira no mercado online e que coleciona julgados em relação a sua responsabilidade, por atos ilícitos realizados na sua rede em especial aqueles envolvendo a infração de direitos autorais.

No caso LVMH vs eBay [6], a empresa detentora de diversas marcas de luxo e suas representantes, clamaram contra o fato de que a plataforma de comércio eletrônico não tomava medidas efetivas para impedir a venda de produtos falsificados, réplicas de suas mercadorias. O eBay, por sua vez apresentou defesa no sentido do artigo 14 da Diretiva, protestando pela responsabilidade limitada, uma vez que, conforme a Diretiva 2000/31, deve agir apenas quando for notificado de tais atos. O Tribunal de Justiça rejeitou a defesa da eBay, reforçando a segurança jurídica exigida pelas marcas. A decisão assevera que o serviço prestado pela empresa ia além da mera transmissão de informações e que há um serviço subjacente, visto que a plataforma oferecia leilão de produtos e outros serviços de assistência aos vendedores.

Em 2011, em caso semelhante, porém agora envolvendo L’oreal vs eBay [7], o Tribunal Europeu, em decisão paradigma, fortificou o entendimento de que a responsabilidade limitada da Diretiva 2000/31, diz respeito apenas a serviços de mera intermediação, que atuam de forma neutra e que nas situações nas quais a plataforma atue de forma ativa sobre os dados transmitidos, a responsabilização poderia ser configurada.

No entanto, nem sempre as decisões foram no sentido favorável à responsabilização, atravessando o oceano, verificamos que nos Estados Unidos o tratamento da responsabilidade das plataformas sob a ótica da Section 230 se dá de maneira semelhante a este último caso europeu, pois, no caso Tiffany vs eBay [8] de 2004, a corte americana se posicionou sem se aprofundar sobre a caracterização ou na responsabilidade da plataforma, visto que a Tiffany não conseguiu elaborar provas do conhecimento da plataforma sobre os ilícitos, ressaltando a ausência de um dever de cuidado, o que se assemelha ao artigo 15 da Diretiva europeia.

Novos caminhos sendo construídos
Diante do contexto de surgimento da Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico, bem como dos breves apontamentos sobre sua estrutura, percebemos que tal diploma normativo não é mais capaz de atender as necessidades regulatórias do ambiente virtual, o que já vem sendo percebido pelo bloco europeu há alguns anos.

A ideia de uma plataforma online de comércio neutra, fica cada vez mais distante com avanço da tecnologia, restando claro que é necessário superar os ditames da Diretiva no sentido de acompanhar as evoluções, mas sem barrar a competição e inovação; aliás, nessa toada, renovam-se as preocupações do início do século de modo a garantir um ambiente virtual competitivo, porém, agora, tais preocupações aprofundam-se no intuito de abarcar uma maior amplitude de direitos fundamentais dos usuários, muitos deles relacionados com o desenvolvimento da tecnologia em si, como a discriminação algorítmica – ou seja, abre-se uma perspectiva muito mais abrangente, na qual a Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico não é mais suficiente e precisar ser superada.

Essa nova perspectiva é muito bem retratada por artigo intitulado Futuro da regulação das redes sociais: olhar para o debate europeu, publicado em 30 de março de 2022 nesta mesma coluna pelos integrantes do Grupo de Estudos de Novas Regulações de Serviços Digitais no Direito Comparado do Legal Grounds Institute [9], no qual os ora autores demonstram que, em 15 de dezembro de 2020, houve a apresentação da proposta para regulamento dos serviços digitais denominada Digital Services Act (DSA) na Europa, através da qual "a Comissão Europeia busca estabelecer regras harmonizadoras sobre a prestação de serviços intermediários na União Europeia, visando a elevar o nível de proteção dos direitos fundamentais no ambiente digital, conferir maior segurança jurídica e aprimorar o funcionamento do mercado comum europeu, já que aborda os riscos sistêmicos que surgem com os serviços digitais, notadamente com as plataformas online". Já a preocupação com o estímulo à concorrência em ambiente virtual é observada atualmente no debate regulatório europeu através do Digital Markets Act (DMA), que, trazendo os conceitos de "serviço essencial de plataforma" e "gatekeeper" até então desconsiderados sob a ótica da Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico, busca minimizar externalidades negativas causadas pelas grandes plataformas digitais, e.g. concentração de mercado, imposição de barreiras à entrada de novos players, novas formas de desequilíbrio de poder e abusos de posição dominante.    

Por fim, é oportuno mencionar que essa percepção europeia de superação dos cenários que inspiraram a criação das legislações como a Diretiva Sobre o Comércio Eletrônico no início dos anos 2000 tem influenciado o mundo inteiro, pois, no Estados Unidos já existem mais de 20 propostas legislativas para alteração ou revogação da Seção 230, visto que seu tratamento sobre a responsabilidade das plataformas tem sido bastante criticado atualmente, e, no Brasil, discute-se no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 2.630/2020  popularmente conhecido como PL das Fake News , que é claramente influenciado pelo debate europeu, na medida em que se preocupa especificamente em estabelecer normas, diretrizes e mecanismos de transparência e responsabilidade para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e de serviços de mensageria instantânea através da internet, assim como diretrizes para seu uso.

*O texto foi produzido por integrantes do Grupo de Estudos de Novas Regulações de Serviços Digitais no Direito Comparado, iniciativa conjunta do Instituto Legal Grounds, do Grupo de Estudos em Proteção de Dados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Laboratório de Inovação e Direito da Universidade de São Paulo (USP)


[1] Texto integral disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX%3A32000L0031. Acesso em: 04/05/2022.

[2] FRATANGELO, 2002, p. 3-4. Necessidade de inserção da referência completa da obra citada.

[3] FRATANGELO, 2002, p. 6.

[4] Tereszkiewicz, Piotr, Digital Platforms: Regulation and Liability in the EU Law (August 1, 2018). European Review of Private Law 2018, issue 6, pp. 903-920, Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3480091, Acessoem: 11/05/2022

[5] Idem 7.

[7] L'Oréal SA e outros contra eBay International AG e outros, Processo C‑324/09.

[8] Tiffany (NJ) Inc. v. eBay, 600 F.3d 93 (2nd Cir. 2010)

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    é advogada, professora universitária de Direto Empresarial, pesquisadora, pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito SP) e membro de grupos de pesquisa de inovação, mercados digitais e propriedade intelectual.

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    é advogado, mestre em Ciências Jurídicas — Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro da Comissão de Direito Digital, Proteção de Dados e Propriedade Intelectual da OAB/MG subseção Juiz de Fora.

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    é mestre e doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Instituto Legal Grounds e advogada.

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    é mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, pesquisadora do Instituto Legal Grounds, professora convidada da pós-graduação da Universidade Mackenzie, professora da pós-graduação da Escola Superior da Advocacia da OAB-MG e sócia do Barra, Barros e Roxo Advogados.

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    é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, mestre em Direito e Inovação pela UFJF, especialista em relações internacionais, pesquisador do Instituto Legal Grounds e advogado.

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