Opinião

É hora de criar um centro de soluções para a água

Autores

  • Rubens Naves

    é presidente do conselho deliberativo do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria).

  • Flavio Lobo

    é jornalista mestre em comunicação e semiótica e pesquisador-bolsista do Centro de Pesquisa em Ciência Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CTS/Ipea).

17 de maio de 2022, 11h01

Cuidar dos recursos hídricos é uma prioridade nacional. Os cidadãos sabem disso — tanto pelo que leem, ouvem e assistem nas mídias, quanto por experiência direta, uma vez que secas e escassez de água são mazelas cada vez mais frequentes país afora. É amplamente sabido, também, que o problema é grave, por seus impactos imediatos em diversas áreas da atividade econômica, na saúde e qualidade de vida da população. O cenário se mostra dramático diante das tendências de agravamento das mudanças climáticas e de desequilíbrio ambiental, com destaque para o desmatamento da Amazônia, que fazem prever redução contínua de chuvas.

De acordo com um artigo publicado na revista científica Nature, em dezembro de 2021, intitulado "Brazil is in water crisis — it needs a drought plan" (O Brasil está numa crise hídrica e precisa de um plano contra seca), dependendo do que fizer nos próximos anos, o Brasil tanto pode se tornar o grande exemplo global de resiliência hídrica e desenvolvimento sustentável movido a água, quanto de desperdício do maior manancial hídrico do planeta e catastrófica desertificação.

Para citar outro exemplo entre muitos estudos recentes sobre o tema, dois trabalhos publicados neste ano pelo Ipea — "Inovação tecnológica e sustentabilidade da cadeia de produção: um exercício para a água no Brasil" e "Uso da água no Brasil: O papel do efeito tecnológico" — reforçam, com evidências, a constatação de que o potencial de redução de demanda e de desperdício de água por meio do desenvolvimento e adoção de novas tecnologias não vem se realizando em ritmo e escala suficientes para reduzir os volumes captados, que se mantêm crescentes, apesar do aumento da ocorrência de secas.

Se o problema não for rapidamente identificado e tratado como prioridade, as possibilidades de desenvolvimento nacional sustentável para os próximos anos e décadas ficarão decisivamente comprometidas, com grandes riscos de retrocessos de difícil reversão. O Brasil está diante de um desafio fácil de enxergar e entender: preservar e garantir os recursos hídricos necessários à sustentabilidade socioambiental e ao desenvolvimento socioeconômico do país.

Como enfrentar esse desafio?

A missão e como cumpri-la
A resposta completa para essa pergunta simples e vital é enciclopédica. O desafio de cuidar da água requer mobilização, articulação e financiamento de um universo de instituições, programas e iniciativas, um diversificado conjunto de agentes estatais, privados e da sociedade civil, fomento à pesquisa, desenvolvimento e inovação, revisão, reforma e criação de novas leis, regulamentos e dispositivos de fiscalização e controle, avanços na gestão de entidades e projetos que favoreçam sinergias entre todos esses fatores, interesses a atores. Tarefas a cargo de múltiplos centros de comando — governos, ministérios, conselhos, grupos de trabalho —, em meio às incertezas orçamentárias e políticas que assolam governos, ministérios, empresas e instituições públicas, repletas de outras metas e responsabilidades, quase sempre desprovidas de vocação e mandato para abordar o desafio da água em suas mais abrangentes dimensões sistêmicas.

A descrição da complexidade do problema evidencia o que falta para um encaminhamento promissor de soluções. A centralidade do problema da água e a fragmentação dos agentes e fatores que precisam participar das soluções apontam para a necessidade de criação de uma instância permanente, com dedicação exclusiva ao tema. Uma entidade que adotaria perspectiva sistêmica, desenhada não para operar ações ou sistemas, mas para pensar soluções com foco na inovação e na geração de sinergias abrangentes.

Trata-se de uma concepção afinada com as diretrizes propostas por estudiosos de dinâmicas e processos de desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação que assinalam a importância de priorizar políticas "orientadas por missão" (mission-oriented policies). Em estudo intitulado "O sistema brasileiro de inovação: uma proposta para políticas orientadas por missões", Mariana Mazzucato e Caetano Penna dizem:

"Políticas orientadas por missões podem ser definidas como políticas públicas sistêmicas que se baseiam em conhecimento de ponta para atingir metas específicas ou na aplicação de grande esforço científico para o enfrentamento de grandes problemas. O engajamento em missões que requerem inovação — seja viajar à lua ou enfrentar mudanças climáticas — requer investimentos dos setores público e privado. O papel do setor público é particularmente importante nas fases iniciais, em áreas que requerem aporte intensivo de capital e implicam alto risco, que não costumam atrair o capital privado. Em termos mais genéricos, há um papel catalisador que deve ser desempenhado pelo poder público em criar e formatar mercados por meio do estabelecimento de dinâmicas parcerias público-privadas."

Não estamos de modo algum nos esquecendo de que já existe um sistema nacional para tratar da água. Não propomos a substituição do atual sistema — que inclui o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), agências descentralizadas e a participação da sociedade civil — nem, necessariamente, mudanças na sua arquitetura e funcionamento. Nossa compreensão é que a gravidade, premência, abrangência, complexidade e ineditismo do desafio nacional em relação à água requer a entrada em cena de um tipo muito específico de ator institucional.

Precisamos de um cérebro dedicado à água. Um núcleo de inteligência "orientado por missão" que, ao assumi-la, enxergue as redes interativas capazes de, se bem orquestradas, preservar, gerar e regenerar as condições para a disponibilidade sustentável de recursos hídricos num futuro extremamente desafiador. Uma entidade que combine a capacidade estatal de traçar um objetivo nacional a salvo das oscilações e interesses mercadológicos com a leveza institucional e a flexibilidade necessárias à perseguição de resultados ambiciosos, transformadores, movidos à inovação e à abertura para repensar e corrigir rumos, para buscar, incluir e articular coautores e parceiros diversos. Instituição que, livre das responsabilidades e rotinas de regulação, operação, mediação, fiscalização e controle, dedique-se exclusivamente à formulação e viabilização de soluções inovadoras articulando parcerias e redes.

Modelo pronto e testado
Já temos, no Brasil um modelo institucional que permite a constituição e a gestão de entidades com essas características. O modelo é o das organizações sociais (OS) de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), e as instituições que já demonstram o potencial desse modelo para o cumprimento de missões de grande interesse público com eficiência e eficácia incomuns no ambiente institucional brasileiro são as OS federais de CT&I.

Hoje existem cinco instituições federais desse tipo — Embrapii, Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), CNPEM, CGEE e Instituto Mamirauá. Todas têm características, atuação e resultados que sustentam a proposta de adoção do modelo para uma abordagem permanente e eficaz do "desafio da água", mas, dadas as limitações deste artigo, apresentaremos brevemente o exemplo da RNP.

A missão da RNP é promover o uso inovador de redes avançadas. Especificando um pouco, a entidade tem como objetivo central disponibilizar internet segura e de alta capacidade, prover serviços especializados e promover projetos de inovação no âmbito do universo brasileiro de ensino e pesquisa. Tem, portanto, um mandato claro, focado, cujo cumprimento requer vocação para acompanhar tecnologias e saberes em acelerada evolução, e para realizar inovações nesse contexto dinâmico, de múltiplos agentes e demandas, por meio de constante articulação de parcerias.

Enxuta e flexível, a RNP conta ao todo com cerca de 400 colaboradores, a grande maioria empregados da instituição pelo regime da CLT. Para exemplificar o tipo de "arranjo à serviço da missão" que uma entidade desse tipo é vocacionada para produzir, vejamos, como exemplo, três programas atuais nos quais a RNP atua como cérebro inovador, desenvolvedor e articulador.

Programas exemplares
Em resposta à necessidade emergencial, decorrente da pandemia do Covid-19, de prover internet para que estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica pudessem prosseguir ou iniciar seus cursos em instituições federais de ensino Brasil afora, a RNP desenhou e orquestrou rapidamente parcerias com provedores privados e, um ano após o início da pandemia, havia distribuído chips de acesso gratuito para mais de 150 mil alunos.

O sucesso dessa fórmula inovadora, que permitiu a rápida distribuição de chips durante a pandemia, pelo projeto Aluno Conectado, do MEC, motivou o desenvolvimento, no âmbito do programa Internet Brasil, do Ministério das Comunicações, iniciativa para o provimento de acesso em banda larga móvel para estudantes da rede pública de educação básica. Trata-se de iniciativa inovadora, inclusive pela superação de limites mercadológicos: os chips serão "sem marca" para se conectarem indistintamente às redes de diversos provedores, de modo que os estudantes e suas famílias terão uma acessibilidade móvel abrangente, incluindo localidades cobertas por diferentes operadoras. Se as próximas fases — de concorrência, contratação, testes e implementação — correrem como esperado, até 700 mil chips poderão 2022.

Uma das primeiras regiões que deverão ser atendidas pelo programa Internet Brasil, a Amazônia, será também, em breve, beneficiada por outro projeto articulado pela RNP. O programa Norte Conectado fornecerá, em breve, conexão em banda larga por meio de cabos de fibra ótica instalados ao longo de cerca de 10 mil quilômetros, nos leitos dos rios Negro, Solimões, Madeira, Purus, Juruá e Rio Branco, interligando 59 municípios, cuja população total supera 9 milhões de habitantes. Cerca de 12 mil instituições serão conectadas, incluindo escolas, instituições de pesquisa, unidades de saúde e segurança pública. A iniciativa, marcada também pela articulação de parcerias entre agentes públicos e privados, que deverá ter importante impacto para o desenvolvimento socioeconômico da região. Associada a outras políticas públicas, poderá favorecer, além disso, arranjos produtivos e de geração de renda sustentáveis.

Um cérebro para a água
País provido da maior quantidade de água doce, o Brasil sofre com falta de água em grande parte do seu território, situação que vem se agravando sobretudo na região mais populosa, do centro-sul. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, o artigo publicado na revista Nature que já mencionamos informa que, entre março e maio de 2021, registrou-se, nessa região, uma redução de 267 km3 no volume total de água existente em rios, lagos, solo e aquíferos, em relação à média dos últimos 20 anos.

Diante dessa realidade e da presença de fortes fatores de agravamento contínuo da situação — especialmente desmatamento e mudanças climáticas —, o artigo recomenda rápida implementação de uma série de ações. Focando a área de pesquisa e aplicação de tecnologia para orientação de políticas públicas, os autores do estudo destacam a necessidade urgente de: aperfeiçoar e ampliar o monitoramento de fatores climáticos, incluindo desmatamento e queimadas; criar uma rede nacional de monitoramento de umidade do solo associada a sistemas de controle de águas subterrâneas; desenvolver modelos de redução de riscos e prejuízos em casos de seca extrema e ondas de calor; investir em pesquisas sobre impactos populacionais e migratórios das mudanças climáticas; e diversificar a matriz energética com maior emprego de tecnologias solares e eólicas.

Para avançar com rapidez, eficiência, consistência, visão sistêmica e capacidade inovadora em relação aos desafios da água e dos recursos hídricos, o Brasil precisa de um centro de inteligência exclusivamente dedicado ao desenho e articulação de soluções. Um núcleo capaz desenvolver soluções baseadas em arquiteturas dinâmicas de cooperação, parcerias, geração e manutenção de círculos virtuosos de oportunidades, benefícios e desenvolvimento.

Uma abordagem mais inteligente, inovadora e articulada dos grandes desafios relacionados à água necessariamente impactará positivamente em outra prioridade nacional: a preservação de biomas. Especialmente a floresta amazônica, que neste momento, mais do que nunca — depois de anos seguidos de retrocesso, com enfraquecimento de sistemas de proteção e aumento de desmatamento —, requer rápida recomposição, aperfeiçoamento e implementação de políticas e ações eficazes de preservação, e será naturalmente contemplada como fator decisivo na construção de soluções para a água.

A criação da nova entidade aqui proposta deve ser concebida e promovida com a participação de atores e comunidades que são chave para o cumprimento da missão nacional, multigeracional da conquista da sustentabilidade. Os próprios participantes do sistema nacional de gestão dos recursos hídricos, as associações científicas brasileiras (como a SBPC e a ABC), especialistas, pesquisadores, universidades, centros de pesquisa e entidades da sociedade civil vinculados ao tema da água devem se engajar nessa missão.

Neste ano de disputa entre propostas para o futuro do país, é hora de priorizar os recursos indispensáveis para a vida, o equilíbrio ambiental e o desenvolvimento humano. A criação, nos moldes aqui descritos, de um "cérebro para a água" poderá ser um passo decisivo nessa direção.

Autores

  • é advogado, ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP, autor do livro "Água, crise e conflito em São Paulo" e sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados.

  • é jornalista, mestre em comunicação e semiótica e pesquisador-bolsista do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CTS/Ipea).

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