Opinião

Ilegalidade da fixação de 10% das vagas para ingresso de mulheres na polícia

Autor

17 de maio de 2022, 13h12

O debate sobre relações de gênero nas instituições se tornou caloroso e ganhou grande imponência ao longo dos tempos. No entanto, no que concerne na esfera da segurança pública no Brasil o assunto é recente e precisa ganhar espaço para o diálogo, pois exemplo disso é ilegalidade que estamos vivendo na Polícia Militar do Distrito Federal, uma vez que, os últimos editais têm restringindo vagas para mulheres sem nenhuma previsão legal.

Não se nega que isso decorre de um processo histórico, de uma aplicação da Lei nº 9713/98 que fixava o percentual de apenas 10% das vagas destinadas para mulheres na PM-DF, porém a mesma já foi revogada pela Lei 12.086/2009 que não menciona nenhuma porcentagem ou diferenciação, apenas dispondo sobre a quantidade de efetivos distribuídos por quadros.

A Lei nº 9713/98, a época da sua publicação e sancionamento fez sentido, pois objetivou unificar os quadros feminino e masculino e, assim, acabar com o tratamento restritivo que ocorria, uma vez que, não autorizava que as mulheres alcançassem os mesmos postos que os homens com a justificativa de terem atribuições diferentes, além de trazer uma representação da polícia mais humanizada e democrática após a promulgação da Constituição de 1988. Porém, ao mesmo tempo concretizaram o contrário, limitando de fato o ingresso da mulher na PM-DF com o percentual de 10%. 

Como já mencionado anteriormente a mesma já foi revogada, sanando a inconstitucionalidade que existia pós a CF/88 que proíbe toda e qualquer discriminação e, em especial em relação ao gênero. No entanto, está não é a realidade, o número de mulheres nas policias é irrisório e os editais da PM-DF vêm trazendo restrições sem nenhuma previsão legal. O edital nº35/DGP [1] comprova essa realidade e demonstra como estamos longe de alcançar o princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição de 1988, "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações".

Em uma análise histórica, a inserção da mulher nas polícias militares foi desempenhada após o processo de redemocratização. O Estado de São Pulo em 1955 no governo de Jânio Quadros instalou o primeiro Corpo de Policiamento Especial Feminino sendo chefiado por Hilda Macedo, que se tornou a primeira comandante mulher da polícia militar. Apesar da compreensão do dever de garantir a eficácia do princípio da igualdade que a Constituição Federal preceitua, esta foi realizada de forma deturpada. Pois, as funções que foram destinadas às mulheres são atividades-meio, aquelas consideradas como mais leves, sensíveis e menos perigosas, enquanto as atividades-fim que é a “verdadeira” missão da PM com o policiamento ostensivo era exercido com afinco pelos homens da corporação.

No Distrito Federal, a inserção da mulher na Polícia Militar ocorreu em 1983, depois de seis anos da autorização concedida pelo Ministério do Exército com a criação da Companhia de Polícia Militar Feminina (Cia PM Fem). Em 1990 ocorre a primeira turma de formação mista e em 1996 ocorre a extinção da Cia PM Fem e em 1998 é promulgado a Lei Federal nº 9.713 de 1988 que unificou os quadros com o objetivo de não limitar as vagas para promoções entre homens e mulheres, porém ao mesmo tempo fixou o percentual máximo de dez por cento para mulheres nos cargos de carreira efetiva. (DOROTEU, 2021)

Em 2009 essa lei é alterada pela Lei 12.086/2009 que não dispõe nenhuma porcentagem, porém os editais já publicados pela PM-DF não exerceram qualquer alteração, restringindo de fato as mulheres na corporação sem qualquer previsão legal ou constitucional.

É necessário observar que além de direitos fundamentais que estão sendo violados há também uma quebra na aplicação do sistema normativo, pois violam princípios direitos da Constituição de 1988 que prevê o Princípio da Igualdade no artigo 5º. "Todos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção". Assim, fica proibido qualquer discriminação, ou seja, limitar o percentual de ingresso de mulheres na PM-DF viola o preceito fundamental de uma igualdade formal e toda ordem jurídica.

De acordo com os dados publicados em 2019 pelo Perfil Nacional das Instituições de Segurança Pública (Senasp), as mulheres representam 11,24% na Polícia Militar do Brasil e no DF representam 10,5% na corporação. Assim, é evidente o que Pierre Bourdie disserta na sua filosofia sobre a violência simbólica, uma vez que, é utilizado de mecanismos sutis, no caso, "a normalidade da polícia não ser lugar de mulher" como forma de dominação e exclusão social e utilizada pela instituição de segurança pública.

Nesse cenário as justificativas que são levantadas é o fato da mulher, no geral, não ter a mesma força física do homem. No entanto, "características masculinas e femininas não devem ser vistas como exclusivas de um gênero ou de outro" (CUNHA, 2021 p. 122). Ademais, há de ser ponderado que nos concursos públicos destinados para carreiras na segurança pública é exigido a aprovação no Teste de Aptidão Física (TAF), assim é inadmissível utilizar argumentos pautados em características físicas, como força para limitar o ingresso de mulheres nas carreiras policiais.

Como discorrido ao longo do texto, a Lei nº 9713/98 foi necessária para a transformação da polícia e para o trabalho da policial feminino, no entanto, nos dias atuais é utilizada como maneira de fomentar o estigma da fragilidade, apesar da sua revogação. Além do mais, o tema já foi abordado pelo MP em uma recomendação à retificação do edital do concurso da PM-DF, afirmando que "negar o direito da mulher de concorrer à totalidade das vagas previstas no edital constitui flagrante vício de inconstitucionalidade material, pois a Carta Magna permite apenas discriminação positiva, para garantir e efetivar direitos".

Hoje, com todas as lutas travadas, a mulher policial é mais que uma realidade. Aos poucos, ela foi alcançando o seu espaço e mostrando que sua presença nas forças policiais não é apenas uma vontade pessoal, é uma necessidade de Estado. (HERBELLA, 2021).

O objetivo do texto foi mostrar as barreiras que existem para as mulheres conseguirem entrar nas carreiras polícias, no caso específico na PM-DF. Mas, há de ser analisado outras vertentes que violam os direitos das mulheres nessas carreiras, como a desigualdade de gênero, diferenciação hierárquica entre postos, maternidade, a falta de equipamentos de proteção individual (EPI) adequados a características femininas, diferenças de papéis e funções em decorrência do gênero etc.

Depois de aprofundarmos sobre as barreiras enfrentadas para o ingresso de mulheres nas carreiras policiais é necessário ser analisado "o que é ser mulher na polícia?". Apesar do número de mulheres ser irrisório na corporação, elas se fazem presente e estão travando uma luta diária, pois apesar desse ingresso ainda se deparam em um universo de significações que são classificados e reconhecidos socialmente como pertencente ao masculino.

Diante deste quadro, restaria às mulheres duas possibilidades: ou ingresso em um espaço masculino tendo que masculinizar-se para adentrar na instituição; ou assumem uma essência feminina de que as mulheres podem imprimir um novo fazer policial, não vinculado ao usa da força e da repressão. (SANTOS, FACHIETTO, TEIXEIRA, RUDNICKI, 2012).

Ser mulher na polícia é travar lutas diárias para adequação na nomenclatura de cargos, respeitando a diferenciação de gênero; combater classificações e interpretações hierarquizada; lutar por equipamentos de segurança e uniformes adaptados ao corpo feminino, exemplo o colete balístico; dupla jornada de trabalho; veiculação da mídia quando falam das mulheres polícias, ex.: quando ocorre ascensão de cargo a mídia retratar a motivação como algo pessoal e não por merecimento [2] ou quando retratam o empoderamento feminino como meramente "policiais influenciadoras exibem metralhadora, distintivo e farda nas redes" [3]; auxílio creche e locais adequados para servidoras amamentares e regulamentação do afastamento das servidores gestantes das atividades que exponham perigo ou condições insalubres, entre outros.

Além de todos esses fatores, há um terceiro debate sobre as violências e constrangimentos sofridos por mulheres policiais dentro da instituição. Em uma pesquisa realizada pelo juiz Rodrigo Foureaux e pela juíza federal da Justiça Militar Mariana Aquino para saber quantas mulheres já tinham sofrido assédio sexual. Foram ouvidas 1.897 mulheres das instituições de segurança pública e Forças Armadas, 74% afirmaram que já sofreram assédio sexual, desse número 83% não denunciaram o assédio [4].

Em uma outra pesquisa: "As mulheres nas instituições policiais" realizada pela Fundação Getúlio Vargas ouviram cerca de 13 mil agentes de segurança de ambos os sexos de todo o Brasil, entre policiais militares, policiais civis, guardas-civis e peritos criminais. De acordo com o estudo 39,2% das mulheres dizem já ter sofrido assédio sexual ou moral na corporação, desse número apenas 11,8% das mulheres denunciaram o assédio sofrido.

É evidente que não estamos falando de casos isolados, nem de algo restrito as carreias de segurança pública, pois os assédios sexuais e morais contra as mulheres ocorrem em todas as esferas. Porém, esta adquire um contorno peculiar, uma vez que não há uma política efetiva de combate ao assédio, não há mecanismos para denúncias e, principalmente, diante da falta de legislação própria para punir esse tipo de conduta nas corporações militares abre margem para mais abusos.

Referência
BORDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. O poder simbólico. Rio de Janeiro. 1998. p. 209-254.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 mai. 2022.
BRASIL. Lei nº 12.086, de 6 de novembro de 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12086.htm. Acesso em: 04 mai. 2022.
BRASIL. Lei nº 9.713, de novembro de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9713.htm. Acesso em: 04 mai. 2022.
BUENO, Samira; TONELLI, Maria José; SANTOS, Thandara; RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes; SILVEIRA, Rafael Alcadipani da; LIMA, Renato Sérgio de. As mulheres nas instituições policiais. Fundação Getúlio Vargas (FGV). Brasília. 2015.
CUNHA, Flávia Caputo Espíndola da. A atuação da policial civil feminina no trabalho investigativo e operacional. Mulheres nas carreiras policiais. São Paulo: Saraiva Educação. 2022. p. 122-139.
DOROTEU, Leandro Rodrigues. A ilegalidade da restrição de vagas para mulheres nos concursos da PMDF, ante a falta de previsão legal. Revista da Advocacia Pública Federal. Brasília. 2021. p. 63-75.
HERBELA, Fernanda. A presença da mulher na polícia civil do Estado de São Paulo: seus números em perspectiva. Mulheres nas carreiras policiais. São Paulo: Saraiva Educação. 2022. p. 104-122.
SANTOS, José Vicente Tavares dos; FACHINETTO, Rochele Fellini; TEIXEIRA, Alex Niche; RUDNICKI, Dani. Configurações e obstáculos: as mulheres na segurança pública. Revista Brasileira Segurança Pública. São Paulo. 2012. v. 6. n. 2. p. 312-335.
SENASP. Perfil Nacional das Instituições de Segurança Pública. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Brasília. 2019.

[1] a) sexo masculino: 45 candidatos para admissão no 1º (primeiro) ano do CFOPM e 135 candidatos para a formação de cadastro de reserva; e b) sexo feminino: cinco candidatas para admissão no 1º (primeiro) ano do CFOPM e 15 candidatas para a formação de cadastro de reserva. Acesso em: https://www.iades.com.br/inscricao/upload/166/20161118104011904.pdf

[2] "Ex-bailarina do É o Tchan tem ascensão meteórica na Polícia Rodoviária Federal e incomoda colegas". Reportagem realizada pelo TNH1, portal do R7 em 01/11/2021. Disponível em: https://www.tnh1.com.br/noticia/nid/ex-bailarina-do-e-o-tchan-tem-ascensao-meteorica-na-policia-rodoviaria-federal-e-incomoda-colegas/

[3] Reportagem produzida pela Folha São Paulo em 27/12/2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/12/policiais-influencers-exibem-metralhadora-distintivo-e-farda-nas-redes-sociais.shtml

[4] https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/13591-em-pauta-74-das-mulheres-das-instituicoes-de-seguranca-publica-e-forcas-armadas-ouvidas-em-pesquisa-ja-sofreram-assedio-sexual-mostra-debate-no-programa

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!