Opinião

Solidariedade como expressão da dignidade e instrumento de transformação

Autores

  • Clivanir Cassiano de Oliveira

    é advogada especialista em Direito Público membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-RN e assessora técnica na Secretaria de Estado da Administração do Rio Grande do Norte.

  • Maria Virgínia Ferreira Lopes

    é secretária de estado da Administração do Rio Grande do Norte economista e especialista em Planejamento e Orçamento e na área de Projetos Econômicos e Sociais e funcionária de carreira da administração indireta do Estado do RN.

16 de maio de 2022, 18h05

A base ideológica da boa prática de política pública cooperativa, de forma simples, pode ser explicada com a mensagem contida na música "Wave", do ilustre Antônio Carlos Jobim (Tom Jobim), e com a crença registrada na música "Todos juntos", de Chico Buarque de Holanda, pois é "[…] impossível ser feliz sozinho […]", e, "[…] Todos juntos somos fortes, somos flecha e somos arco, todos nós no mesmo barco, não há nada pra temer […]".

Como tudo neste mundo está conectado, as mensagens musicais acima, no âmbito penal, foram externizadas pelo Governo do Rio Grande do Norte, ao firmar diversos convênios, para colocar em prática a previsão do artigo 1º da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984), o qual prevê, como objetivo a viabilização da condições para integrar, socialmente, o condenado. É que só penalizar, não é suficiente.

Quando o estado penaliza o cidadão delinquente, ele tira sua liberdade, e traz, consequentemente, um alívio temporário para as vítimas dos crimes — mesmo provisoriamente —, porém não soluciona o problema, de forma definitiva. Uma vez que, ao sair do sistema penitenciário, consoante registrou a senhora Maurício Kuehne, diretor do Depen, tem-se um aumento de que essas pessoas voltam a cometer os mesmos crimes, ou quiçá, delitos mais graves:

"Os dados apresentados pelo Depen sobre a reincidência de presos não permitem que se afirme, com certeza, o percentual de recidiva no sistema carcerário brasileiro. Inexistem estatísticas oficiais sobre a taxa de reincidência. Segundo apontou o sr. Maurício Kuehne, diretor do Depen, enquanto se observa uma taxa de reincidência de 60% a 65% nos países do primeiro mundo, a taxa de recidiva penal no Brasil oscila de 70% a 85%. No caso das penas e medidas alternativas, a taxa de reincidência não ultrapassa 12%" (BRASIL, 2009, p. 280) [1].

Esta dura realidade do Brasil chegou a ser objeto da declaração do estado de coisas inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, e no Recurso Extraordinário nº 580.252) [2], entre agosto e setembro de 2015, publicizando para o mundo a total ineficiência do nosso sistema penitenciário falido. O ensinamento deixado pela Suprema Corte do Brasil foi que todos os poderes e instituições estavam envolvidas como responsáveis pelo tamanho caos que tornou-se o sistema carcerário [3]. Assim, registrou Carlos José Santos da Silva e José Victor Pallis da Silva, em artigo "suprema incoerências":

"Nos termos do voto do relator, ministro Marco Aurélio, a situação 'vexaminosa' do sistema penitenciário brasileiro, ao ocasionar 'a violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica', configuraria tratamento 'degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia'. A falência de políticas públicas voltadas ao tema e a falta de coordenação institucional entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, somadas a essa violação massiva e persistente de direitos fundamentais, ensejariam o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional de nosso sistema penitenciário e a adoção de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária" [4].

Diante deste contexto e considerando que o povo brasileiro elegeu um presidente da República, com discurso de que "bandido bom é bandido morto" [5], é necessário compreender que o cidadão infrator sai da coletividade. Ou seja, faz parte de nós! Não é um ser criado em um ambiente a parte do nosso — com exceção de grande parte da elite do Brasil, que acreditam serem humanos de outro mundo. Por isso, a resolução deste problema não se dá individualmente, e sim, coletivamente.

Não perdemos a esperança. De forma exemplar, o governo do Rio Grande do Norte, por meio da Secretaria de Estado da Administração (SeadRN), da Secretaria de Estado da Administração Penitenciáriado (SeaPRN), da Secretaria de Saúde Pública (SesaPRN), da Fundação José Augusto (FJA), do Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte (Igarn), da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico (Sedec) e da Fundação de Apoio à Pesquisa (Fapern), realizam boas práticas de política públicas, por intermédio de projetos sobre a reintegração do social e econômica, de pessoas em cumprimento de pena, inseridas no sistema penitenciário do estado.

Os projetos iniciaram em 2020 e continuam vigentes até os dias atuais, maio de 2022. A boa prática pública cooperativa, é constatada com a promoção da inovação, da eficiência da máquina pública, do capital humano, da sustentabilidade social e ambiental, por meio de atividades laborais relacionadas com serviços públicos.

Simultaneamente, dentre outros, destaca-se a execução, pelas pessoas privadas de liberdade, de manutenção e conservação dos imóveis públicos; a realização de serviços de capina, de poda, de asseio, de limpeza de resíduos sólidos; a manutenção predial, hidráulica, elétrica, mobiliário e de limpeza em hospitais públicos; a oferta serviço público de auxiliar de serviços gerais junto ao Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte; e gera atividade pública de copa, de recepção, de digitalização de documentos e arquivos, na Fundação de Apoio à Pesquisa.

Deve-se ainda lembrar que a política é uma arte, imprescindível à qualquer sociedade. E que é o campo de atuação daqueles que melhor sabem gerir conflitos. Isto porque, os conflitos são as condições para existência da política, consequentemente, para atuação daqueles que tem ciência da autonomia relativa das regras do campo político [6].

A autonomia relativa supracitada, descrita por Clóvis de Barros Filho, é demonstrada quando políticas públicas vão de encontro com as crenças éticas [7]. Deve-se considerar e refletir sobre este aspecto, uma vez que o povo brasileiro elegeu para a direção federal do país, um Presidente com discurso de que a polícia deve matar mais [8].

Se a política pode se chocar com o entendimento do eticamente justo, de que forma o direito pode auxiliar o gestor, na atuação do campo político e social, o qual representa? Essa pergunta foi respondida pelo projeto aqui mencionado, desenvolvido pelo Governo do Estado.

A ressocialização desenvolvida pelo governo do RN, externa a filosofia de Hegel, que afirma que o trabalho é o local onde pode-se criar consciência social e pessoal, uma vez que os indivíduos saem dos círculos fechados de si para socializar com outras pessoas. Além de possibilitar o desenvolvimento da profissionalização de pessoas privadas de liberdade, a inovação e a eficiência da máquina pública, diminuir os índices de criminalidade, a promoção do capital humano, e a sustentabilidade social e ambiental.

Dessa forma, além da transformação ontológica do indivíduo, percebe-se que as atividade laborais, para as pessoas privadas de liberdade por crimes ou infrações cometidas, resulta em diminuição dos índices de reincidência penal, além de alcançar a função social da pena, que tem base na constituição da república federativa do Brasil, de 1988, bem como na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) e na teoria da prevenção especial positiva, adotado no ordenamento brasileiro [9].

Noutro passo, na esfera econômica, as atividades laborais possuem retorno remuneratório às pessoas em cumprimento de pena, gerando circulação de capital e contribuindo para promover a dignidade da pessoa, na medida que o apenado passa a ter valor que pode servir à moradia, vestuário e alimentação dele e sua respectiva família.

Concomitantemente, no âmbito administrativo, por meio das atividades laborais dos apenados, é possível a conquista de maior eficiência à máquina pública, pois foi possível a reforma dos hospitais João Machado, Maria Alice Fernandes e Giselda Trigueiro, em Natal. Foi efetivado trabalho na capinagem e limpeza da Escola Estadual José Fernandes Machado, em Ponta Negra, e na restauração de carteiras escolares, limpeza e manutenção de escolas, todos no estado do RN; na área agrícola, com a produção inicial de dez mil mudas de cajueiro na Penitenciária Mário Negócio, em Mossoró (RN); e na Fundação de Pesquisa do RN (Fapern), em atividades de serviços gerais, dentre outros serviços públicos contidos nos convênios firmados pelo Governo do Estado [10].

Dessa forma, as atividades supracitadas combatem a continuidade do estado de coisas inconstitucional, declarada pelo Supremo Tribunal Federal (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, e no Recurso Extraordinário nº 580.252), promovem os direitos fundamentais, sociais e econômicos, todos estabelecidos pela Constituição da República Federativa, servem de exemplo para demais entes federativos, demonstram a base cooperativa existente em uma democracia e federalismo, e por fim, desafiam o âmbito ético promovido por uma crença de que bandido bom é bandido morto.

Afinal, como já disse Chico Buarque "Já foi provado… Quem espera nunca alcança". A renovação como instrumento de mudança do valor social e econômico, não pode ficar no mundo da expectativa. É preciso agir para transformar a sociedade. É necessário atuar para aproximar o povo da humanização, pois a solidariedade é o elemento que melhor expressa a dignidade da pessoa humana.


[1] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Infopen, Junho/2016. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen acesso em 20/6/2020.BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830 – Código Criminal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm acesso em abril/2020.

[2] BRASIL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Distrito Federal. Relator(a): min. Marco Aurélio. Julgamento: 9/9/2015. Publicação: 19/2/2016. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur339101/false. Acesso em 1/5/2022.

[3] Ibidem.

[4] SILVA, Carlos José Santos da. SILVA, José Victor Pallis da. Supremas incoerências. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/supremas-incoerencias.pdf. Acesso em 1/5/2022.

[5] No cargo de deputado federal, em uma entrevista sobre o relatório de anistia internacional, o Sr. Jair disse que: "a polícia militar do Brasil tinha que matar mais. Quase a totalidade dessas mortes são em combate, em missão. Então a anistia internacional tá na contramão do que realmente precisa a segurança pública do nosso país. Violência se combate com violência […] O que nós queremos é diminuir o número de mortes dos inocentes, e se for o caso, aumentar o número de mortes de bandidos […]". Disponível em https://exame.com/brasil/bolsonaro-defende-que-a-pm-mate-mais-no-brasil/; https://www.youtube.com/watch?v=rmN9tOukuNA&t=44s; https://pedromaganem.jusbrasil.com.br/noticias/328582636/bolsonaro-defende-que-a-pm-mate-mais-no-brasil.

[6] FILHO, Clóvis de Barros. JUNIOR, Oswaldo Giacoia. MOSÉ, Viviane. ROQUE, Eduarda La. Política: nós também sabemos fazer. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2018.

[7] Para Clóvis de Barros Filho: […] a autonomia relativa das regras do campo político muitas vezes se chocam com a representações coletivas, sobre o agir ético, o politicamente correto, o entendimento do justo consolidado com outros campos sociais. FILHO, Clóvis de Barros. JUNIOR, Oswaldo Giacoia. MOSÉ, Viviane. ROQUE, Eduarda La. Política: nós também sabemos fazer. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2018. Pg. 38.

[8] Revista Exame. Publicado em 05 de outubro de 2015. Bolsonaro defende que a PM mate mais no Brasil. Disponível em: https://exame.com/brasil/bolsonaro-defende-que-a-pm-mate-mais-no-brasil/. Acesso em: 1/5/2022. Youtube. Publicado em 2019. Bolsonaro defende policiais – Bandido bom é bandido morto!. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rmN9tOukuNA&t=44s. Acesso em: 1/5/2022; e GANEM. Pedro Magalhães. Bolsonaro defende que a PM mate mais no Brasil. Disponível em: https://pedromaganem.jusbrasil.com.br/noticias/328582636/bolsonaro-defende-que-a-pm-mate-mais-no-brasil. Acesso em: 1/5/2022.

[9] MOURÃO, Maria Fernanda Oliveira. RAVNJAK, Leandro Luciano Silva. Os sentidos do trabalho para a ressocialização do apenado no Brasil. Revista Latinoamericana de Antropología del trabajo, nº 12 septiembre-diciembre 2021. Disponível em http://id.caicyt.gov.ar/ark:/s25912755/yfk9jftvu. Acesso em 1/5/2022.

[10] BRASIL. ASSECOM. Rio Grande do Norte. Mão de obra prisional realiza limpeza e manutenção no Forte dos Reis Magos. Publicado em 20 dezembro de 2021. Disponível em: http://www.pm.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=277183&ACT=&PAGE=&PARM=&LBL=Materia. Acesso em 1/5/2022.

Mossoró Hoje. Parceria entre a SEAP e SESAP garante reforma do hospital regional de Macaíba por apenados. Publicado em abril de 2022. Disponível em: https://mossorohoje.com.br/noticias/40647-parceria-entre-seap-e-sesap-garante-reforma-do-hospital-regional-de-macaiba-por-apenados. Acesso em 1/5/2022.

Sou mais RN. Sistema Penitenciário do RN produz mudas para a agricultura familiar. Publicado em fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.soumaisrn.com.br/2021/02/01/sistema-penitenciario-do-rn-produz-mudas-para-a-agricultura-familiar/. Acesso em 1/5/2022.

Tribuna do Norte. Informe Publicitário. Presos do Regime fechado reformam hospitais do Estado. Publicado em 9 de abril de 2022. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/presos-do-regime-fechado-reformam-hospitais-do-estado/536098. Acesso em 1/5/2022.

Tribuna de Notícias. Presos revitalizam a Escola e restauram carteiras da Rede Estadual de Educação no RN. Publicado em agosto de 2021. Disponível em https://www.tribunadenoticias.com.br/2021/08/presos-revitalizam-escola-e-restauram.html. Acesso em 1/5/2022.

Autores

  • é advogada, especialista em Direito Público, membro da comissão de Direito Tributário da OAB/RN e assessora técnica na Secretaria de Estado da Administração do Rio Grande do Norte.

  • é secretária de estado da Administração do Rio Grande do Norte, economista e especialista em Planejamento e Orçamento e na área de Projetos Econômicos e Sociais e funcionária de carreira da administração indireta do Estado do RN.

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