Direito da insolvência

Constrição sobre bens de capital essenciais e exigência de taxa de ocupação

Autores

  • Marcelo Sacramone

    é doutor e mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo; advogado e parecerista; ex-juiz de Direito da 2ª Vara de Recuperações e Falências de São Paulo; professor de Direito Empresarial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Insper e Ibmec-SP.

  • Fernando Lima Gurgel do Amaral

    é doutorando e mestre em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; advogado em São Paulo.

16 de maio de 2022, 9h31

A Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei 11.101/05) determinou que o credor fiduciário não se submeteria, pela propriedade do bem fiduciário, aos efeitos da recuperação judicial.

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A exclusão da referida garantia pretendeu reduzir os custos do crédito do Brasil. Ao permitir que o credor cujo crédito fosse garantido pela propriedade fiduciária retomasse sua propriedade diante de um inadimplemento do devedor, ainda que estivesse em recuperação judicial, reduzia-se o risco geral do credor na concessão do crédito em benefício de todo o sistema econômico. 

A recuperação judicial, entretanto, é instituto que procura proteger o interesse de todos os afetados pelo desenvolvimento da atividade empresarial. Ao permitir, pela negociação coletiva com os credores, preservar as atividades econômicas conduzidas eficientemente por um empresário e que sofreu um revés ou um insucesso, assegura-se maior concorrência, menores preços aos consumidores, maior oferta de trabalho, circulação de riqueza, em benefício de todos. 

De modo a que ambos os objetivos fossem alcançados, tanto a redução do custo do crédito, como a preservação da empresa viável sob a condução do devedor se eficiente, conferiu-se a possibilidade de a recuperanda conservar consigo os bens imprescindíveis à produção de bens ou a circulação dos seus serviços no mercado.

Essa restrição ao direito de propriedade do credor sobre o bem é absolutamente excepcional. A suspensão das constrições promovidas pelo credor não satisfeito apenas pode ocorrer se o bem alienado fiduciariamente for um bem de capital, considerado como tal aquele que é utilizado no processo produtivo para gerar outros produtos ou serviços. Não são considerados como tal os bens consumíveis ou os destinados à alienação pela atividade empresarial, como o estoque ou os recursos financeiros, notadamente porque a suspensão deverá ocorrer apenas durante o período de negociação com os credores. 

Findo o período conhecido por stay period, em que as execuções sobre os créditos sujeitos à recuperação judicial são suspensas justamente para que o devedor possa negociar o plano de recuperação judicial com os referidos credores, o bem de capital fiduciariamente entregue em garantia poderá ter a posse retomada pelo credor. O consumo, a alienação, exaurimento ou manutenção por período indeterminado do referido bem na atividade empresarial pelo devedor impediria a satisfação do crédito inadimplido e, ao final, majoraria o próprio risco de crédito cujo objetivo da lei era expressamente contrário.

Essa suspensão das constrições em benefício da negociação coletiva, todavia, não pode revelar-se como estratégia do devedor e dos credores sujeitos à recuperação judicial em detrimento do credor proprietário. Ainda que o período de suspensão possa se estender por 540 dias após a alteração da Lei 14.112/20, se respeitados os prazos legais em muito jurisprudencialmente ampliados antes da referida reforma legislativa de 2020, essa proteção judicial não poderá ocorrer com o enriquecimento sem justa causa do devedor e dos credores sujeitos sob o patrimônio do credor proprietário.

Pela Lei 9.514/97, o credor proprietário fiduciário de bem imóvel, em cuja posse não conseguiu se imitir, deverá receber do devedor o montante de 1% sobre o valor do bem mensamente, desde a consolidação da propriedade fiduciária. A obrigação decorre de Lei e é independente de qualquer culpa, má-fé ou resistência do devedor. Trata-se de obrigação imposta para evitar enriquecimento sem causa do devedor pela utilização do bem e impedimento ao proprietário de exercer todos os poderes que esse direito real lhe confere. 

A despeito de o art. 1.361 do Código Civil, aplicável à propriedade fiduciária de bens móveis infungíveis, e o art. 66-B da Lei 4.728/65, aplicável sobre a propriedade fiduciária de bens móveis fungíveis, nada disporem sobre a taxa de ocupação, há regra geral no Código Civil sobre a proibição do enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil).

Para sua caracterização, o enriquecimento sem causa exige o enriquecimento de uma parte, às custas da outra e sem fundada razão. Todos estes elementos estão presentes na suspensão das constrições sobre o bem de capital essencial da recuperanda durante o período de negociação do plano de recuperação judicial.

O enriquecimento do devedor é caracterizado pela não devolução do bem objeto de alienação fiduciária ao credor, às custas do credor impedido de retomá-lo e de fruir de sua propriedade e sem fundada razão contratual. Nesse particular, não figura como requisito qualquer necessidade de demonstração da culpa do devedor, haja vista que o instituto não tem a finalidade de penalização, mas apenas de remuneração ou compensação pela limitação imposta.

O credor fiduciário não poderá ser alijado do exercício pleno de sua propriedade pelo devedor fiduciante sem qualquer ressalva contratual e por simples vontade do devedor, a quem compete exclusivamente o direito potestativo de requerer o processamento de sua recuperação judicial sem que haja a devida compensação. 

A decisão de processamento da recuperação judicial e de suspensão da retirada do bem de capital essencial procura evitar a interrupção abrupta da atividade empresarial durante a equalização do passivo sujeito à recuperação judicial. Não pretende conferir benefício absoluto à recuperanda com a possibilidade de utilização de bem alheio, sem qualquer retribuição e às custas do credor fiduciário.

Desta forma, como meio de se evitar comportamento estratégico não apenas do devedor como também dos credores sujeitos à recuperação judicial de dilatarem as negociações coletivas sobre o plano de recuperação judicial justamente para se beneficiarem de ativos fiduciariamente alienados cujos créditos procurou a lei especificamente proteger, a suspensão das constrições sobre os bens de capital essenciais deve ficar adstritas ao período de negociação, como prevê expressamente a Lei 11.101/05. Deve, ademais, ser acompanhada da imposição da obrigação de pagamento da taxa de ocupação ou retribuição aos credores fiduciários restringidos, desde a consolidação da propriedade fiduciária até a retomada da posse do bem. 

A versão completa e aprofundada do presente artigo foi publicada originalmente pelos autores sob o título "Alienação fiduciária e taxa de ocupação na recuperação judicial", in Revista de Direito Empresarial (RDEmp), ano 19, n. 1, Belo Horizonte, jan/abril 2022, pp. 13-27.

Autores

  • Brave

    é professor de ireito empresarial no curso de graduação e do mestrado em direito da PUC-SP, nos cursos de pós-gradução da Escola Paulista da Magistratura (EPM), do IBMEC e do Insper. Doutor e mestre em direito comercial pela USP. Advogado e parecerista. Ex-juiz de Direito do TJ-SP. Autor do livro "Comentários à Lei de Recuperações de Empresas e Falência", 2ª. ed, pela editora Saraiva.

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    é doutorando e mestre em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; advogado em São Paulo.

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