Direito Civil Atual

Como Alemanha e Brasil indenizam o Schockshaden e os danos por ricochete

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16 de maio de 2022, 14h32

Os danos reflexos, ou por ricochete, espécie de dano indireto, têm origem na jurisprudência francesa, que, em algumas decisões do final do século 19, passou a reparar o préjudice d'affection [1]. O dano reflexo tem na afeição o seu elemento caracterizador inicial porque o dano moral atinge seres humanos que são autorizados pela ordem jurídica a reagir na defesa dos valores por elas amparados, dada a generalidade e universalidade do princípio ordenador da responsabilidade civil [2].

ConJur
O Direito brasileiro admite hipóteses de reparação de danos morais reflexos para além daquela prevista no artigo 948 do Código Civil [3], que traz o homicídio como elemento possibilitador da indenização de terceiros ligados à vítima fatal. A título de exemplo, apesar de inexistir texto legislativo autorizativo, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de conceder a reparação no caso de lesão corporal, julgando prescindível a concretização do evento morte [4].

Com a mesma orientação, a 1ª Turma do STJ reconheceu a reparação por dano moral reflexo ao filho e à esposa de vítima de acidente automobilístico que resultou em sua tetraplegia e deixou-a em estado vegetativo [5]. O acórdão, aliás, é paradigmático, sendo reproduzido em diversos outros julgados do tribunal desde o julgamento do caso. Em situação diversa, a 4ª Turma do STJ confirmou o acerto da indenização conferida na instância inferior à esposa e aos filhos de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro por matéria jornalística considerada ofensiva à honra da vítima direta do evento danoso, a partir da compreensão de que a exposição negativa teria atingido a família — e a própria vítima — em sua esfera íntima [6].

Também o Código Civil português [7] contém previsão específica de "indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal" nos artigos 495º e 496º, tratando dos danos patrimoniais no primeiro dispositivo e dos danos extrapatrimoniais no segundo, ao passo em que o Fatal Accidents Act 1976 da Inglaterra[8] e os Principles of European Tort Law [9] contêm previsão de compensação pelo dano não-patrimonial.

Posicionando-se em sentido contrário ao contexto europeu exposto, a normatização do dano reflexo na Alemanha é diversa: não há, no Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch BGB) [10] previsão de indenização por danos morais para familiares em decorrência da dor sentida (Angehörigenschmerzengeld) [11]. Significa dizer que o luto ou qualquer outro sofrimento decorrente de dano sofrido por familiar não têm previsão normativa de reparação civil e, por isso, não podem ser indenizados, já que o BGB dispõe, em seu § 253 (1), que danos imateriais (extrapatrimoniais) somente serão reparados nos casos estipulados em lei.

Apenas há previsão, nos § 844 e § 845 do BGB, de reparação por homicídio, especificamente das despesas com o funeral de pessoa falecida e da prestação de alimentos em favor de pessoas a quem o falecido os devia por força de lei, e de indenização por lucros cessantes por serviço não prestado pelo lesado ou falecido que, por previsão normativa, deveria prestá-lo. O primeiro dispositivo é, aliás, a fonte do artigo 1.537 do Código Civil brasileiro de 1916 e, por consequência lógica, do artigo 948 do Código Civil brasileiro de 2002.

Os familiares da vítima podem, por outro lado, obter indenização na hipótese de sofrerem o que Guilherme Henrique Lima Reinig e Rafael Peteffi da Silva denominam "choque nervoso" (Schockschaden), "casuística cuja existência e razão de ser se explicam no contexto do regime de responsabilidade civil adotado pelo BGB, o qual, ao contrário dos Códigos brasileiro e francês, não dispõe de uma cláusula geral de responsabilidade civil por ato ilícito" [12]. Em tradução livre, trata-se do dano (Schaden) causado pelo choque (Schock).

O fundamento para a possibilidade de reparação da vítima mediata, que passou a ser reconhecida pelas cortes alemãs diante da ausência de previsão legal de indenização por dano reflexo, reside no § 823 (1) do BGB, a tutelar a compensação pelos danos causados, intencional ou negligentemente, à vida, ao corpo, à saúde, à liberdade, à propriedade ou a qualquer outro direito pertencente à pessoa. A teoria alemã do "choque nervoso" reforça, em alguma medida, apesar da diferença entre os institutos, o caráter autônomo do que se convencionou chamar "dano por ricochete" no Brasil, eis que o dano oriundo do Schockschaden independe do dano causado à vítima direta, configurando dano à pessoa a ser, por si, reparável. Em outras palavras, o fundamento da reparação é a violação de um direito próprio enunciado no § 823 (1): a saúde — albergada também pela Constituição alemã de Weimar em seu artigo 161.

A jurisprudência alemã definiu, por exemplo, que o dano causado pela notícia de acidente fatal de um familiar não justifica pedido de indenização em desfavor do autor do acidente se o choque não for além dos prejuízos à saúde a que parentes próximos são expostos em caso de relato de óbito. No julgamento do caso BGHZ 56, 163 [13] pelo Bundesgerichtshof — Tribunal Federal e guardião da lei federal na Alemanha —, realizado em 1971, foi reformada decisão de primeiro grau (Landgericht) que havia concedido indenização à viúva de marido falecido em acidente de carro no ano de 1965 em virtude do dano sofrido com a notícia do óbito. O entendimento foi, inicialmente, modificado em parte pelo tribunal de segundo grau (Oberlandgericht) e, depois, reformado por completo pelo Tribunal Federal, que, negando o direito à indenização, deixou claro que "o recurso admitido do então acusado conduz à revisão e remessa dos autos ao tribunal superior da origem" (Oberlandgericht) [14]. Antes disso, contudo, no ano de 1940, o Tribunal do Reich decidiu que faria jus à indenização à mãe que sofrera choque nervoso ao presenciar a morte de sua filha em acidente de trem (RGZ 162, 321) [15].

Ao que parece, a jurisprudência alemã tem caminhado no sentido de restringir as hipóteses de indenização por Schockschaden, talvez em tentativa de combater a superabundância da responsabilidade civil e a proliferação de novas espécies de dano — muitas vezes não tão novas assim —, tal qual movimento de parte da doutrina brasileira. No Brasil, afinal, assiste-se a uma "fuga para a responsabilidade civil", assumindo o instituto o descabido papel de agente involuntário de distribuição de renda — o que não é sua função jurídica e histórica[16].

É dizer, finalmente: as hipóteses de "choque nervoso" eventualmente indenizadas pelo Direito alemão podem se assemelhar, no contexto brasileiro, aos casos de danos reflexos ou por ricochete por revelarem estreita ligação fática entre a vítima imediata e a vítima mediata. Contudo, há de se considerar que a construção histórica do sistema de responsabilidade civil extracontratual alemão adotou elementos outros, de modo que parte da doutrina e da jurisprudência do país europeu identifica a responsabilidade decorrente do Schockschaden como instituto diverso da responsabilidade civil por dano reflexo.

Com essas breves considerações, é possível desenhar o cenário brasileiro da indenização por dano reflexo ou por ricochete, mais aproximado do que preveem os sistemas normativos de Portugal e da França, apesar de não se desconsiderar por completo a solução jurídica inaugurada pela construção doutrinária e jurisprudencial alemã.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] REINIG, Guilherme Henrique Lima; SILVA, Rafael Peteffi da. Dano reflexo ou por ricochete e lesão à saúde psíquica: os casos de "choque nervoso" (Schockschaden) no direito civil alemão. Civilística.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017. Disponível em: http://civilistica.com/dano-reflexo-ou-por-ricochete-e-lesao-a-saude/. Acesso em: 3/5/2022. p. 3.

[2] BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 4ª ed. Atualizado por Eduardo C. B. Bittar. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 56.

[3] Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:

I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;

II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.

[4] REsp 1734536/RS, rel. ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª TURMA, julgado em 6/8/2019, DJe 24/9/2019.

[5] AgRg no REsp 1.212.322/SP, rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 1ª TURMA, julgado em 3/6/2014, DJe 10/6/2014.

[6] REsp 1119632/RJ, rel. ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 15/8/2017, DJe 12/9/2017.

[8] Fatal Accidents Act 1976. Disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1976/30. Acesso em: 3/5/2022.

[9] Principles of European Tort Law. Disponível em: http://www.egtl.org/PETLEnglish.html. Acesso em: 3/5/2022.

[10] Bürgerliches Gesetzbuch. Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/bgb/BGB.pdf. Acesso em: 3/5/2022.

[11] REINIG; SILVA, op. cit., p. 5.

[12] REINIG; SILVA, op. cit., p. 6-7.

[13] BGHZ 56, 163. Disponível em: https://lorenz.userweb.mwn.de/urteile/bghz56_163.htm. Acesso em: 3/5/2022.

[14] Original: Die zugelassene Revision des Beklagten führte zur Aufhebung und Zurückverweisung an das Berufungsgericht. BGHZ 56, 163. Disponível em: https://lorenz.userweb.mwn.de/urteile/bghz56_163. htm. Acesso em: 5/5/2022.

[15] REINIG; SILVA, op. cit., p. 13.

[16] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 8, a. 3, p. 115-137, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jul./set. 2016.

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