Opinião

Escalada da cultura do medo pela mídia sensacionalista e reflexos no direito penal

Autor

  • Eduardo Benfica

    é advogado membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária (CPCP) da OAB-RJ pós-graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

15 de maio de 2022, 13h16

Em uma sociedade globalizada, tendo como uma das principais características a dinamicidade na difusão de informações e ideias, torna-se imprescindível a análise de influências externas sobre o Direito Penal, suas origens e, especialmente, as consequências sobre a atuação legislativa e do sistema de Justiça criminal.

Nessa esteira, não se pode ignorar o papel determinante dos meios de comunicação em massa, principalmente os de conteúdo sensacionalista, na formação do senso comum — entendido, em suma, como pensamento que não foi metodicamente verificado.

Programas televisivos invocam acontecimentos cotidianos para, através de uma narrativa eloquente, dramatizada e desprovida de lastro técnico, cooptar a atenção dos telespectadores, aumentando, assim, seus índices de audiência.

Sustenta Ciro Marcondes Filho [1] que "a imprensa sensacional trabalha com as emoções, da mesma forma que os regimes totalitários trabalham com o fanatismo, também de natureza puramente emocional".

Outrossim, embora não declarado, resta inequívoco o descompromisso com a isenção e imparcialidade por parte dos programas e meios de comunicação ao se valerem de fatos de pertinência penal, não estando abarcado em suas pretensões aquilo que se presume do ofício jornalístico íntegro.

Não se observa, neste sentido, uma narrativa compatível com a dinâmica dos fatos, ocorrendo verdadeira manobra contextual a fim de tornar o conteúdo mais atrativo e, por isso, consumível por um público acrítico.

No panorama apresentado, com a predominância de programas cujo conteúdo é sabidamente desprovido de lastro teórico, porém, com conteúdo eminentemente emocional, espectadores são arrastados pela onda apelativa que os conduz rumo à cultura do medo, porta de entrada do populismo punitivo.

Importante notar que estamos diante de uma conduta deliberada e resultante da comunhão de esforços de diversos agentes. Isso importa reconhecer sintomas visceralmente vinculados ao projeto de engendrar o pânico da população, sobretudo através de meios de comunicação, a fim de se legitimar a atuação irrazoável, arbitrária e desproporcional dos aparelhos estatais de repressão.

Assim, deste processo, emerge o populismo penal, consubstanciado em discursos aparentemente espontâneos e despretensiosos, porém, como escopo muito bem delimitado.

Entre as práticas utilizadas no processo de alienação social acerca da criminalidade, podemos, de forma breve e antecipada, citar: comportamento assumidamente anti-intelectual; defesa do recrudescimento de penas e incriminação de condutas como meio de combate à criminalidade; adoção da narrativa segundo a qual criminosos são beneficiados, pelo sistema de Justiça criminal, em detrimento das vítimas; deturpação de direitos fundamentais e humanos; criação da dicotomia “bandido x cidadão de bem” no meio social etc.

Com isso, a população, alvo de um bombardeio diário de notícias, campanhas e discursos carregados de paixão e que superdimensionam a problemática da segurança pública, adere, inconscientemente, ao populismo punitivo e suas máximas.

Neste contexto, torna-se essencial tecer considerações acerca de um dos pontos nevrálgicos deste processo: o discurso de pânico. Enquanto corolário da cultura do medo, o discurso de pânico não é obra do acaso; pelo contrário, é empregado, inclusive, como instrumento eleitoral e, além disso, mecanismo apto a legitimar a mitigação de direitos e garantias fundamentais, sem que a população se insurja contra tais medidas, porquanto vistas como necessárias à manutenção da ordem.

Com o discurso de medo forjado no subconsciente dos cidadãos através de veículos comunicativos de grande circulação, sobretudo os de cunho sensacionalista, o Estado legitima sua atuação violenta, transgredindo os limites constitucionalmente impostos ao poder punitivo, com o escopo de eliminar a falsa sensação de perigo por ele mesmo criada [2].

Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho, em sentido idêntico, aduz que:

"As razões de instalar o medo nas camadas mais baixas da população é justificável ante a necessidade de implementação do Estado autoritário, ou seja, quanto maior for o medo social maior será a carga de legitimação do Estado para ter uma postura autoritária, surgindo, semelhante à ótica maquiaveliana, o paradoxo no qual o medo social é necessário para que o Estado seja realmente uma estrutura de poder" [3].

Ademais disso, com os resultados colhidos através do fomento deliberado do medo e da sensação de insegurança geral, políticos e pessoas públicas perceberam nesta prática um importante aliado para enrobustecer sua base de apoio e alavancar os índices de popularidade.

Com a adoção de medidas simbólicas — lastreadas na suposta situação de insegurança generalizada — por parte de representantes do executivo e do legislativo, "o retorno eleitoral é praticamente imediato, pois, com a sua aprovação, os eleitores os percebem como representantes preocupados com os problemas" [4].

Eric Hobsbawm, de forma contundente, lança luz ao tema quando assevera que:

"Todo observador realista e a maioria dos governos sabiam que não se diminuía nem mesmo controlava o crime executando-se os criminosos ou pela dissuasão de longas sentenças penais, mas todo político conhecia a força enorme e emocionalmente carregada, racional ou não, da exigência em massa dos cidadãos comuns para que se punisse o antissocial" [5].

Neste ponto, salutar destacar que este método se retroalimenta, não tendo como um de seus objetivos a solução da suposta crise na segurança pública.

Logo, o pânico social é o fator que legitima a adoção de medidas de caráter demagógico. Estas medidas, por sua vez, conferem maior credibilidade à carreira pública dos responsáveis — vistos, agora, como verdadeiros e incansáveis defensores da população.

Não subsiste dúvida em relação ao círculo vicioso que se afigura, tendo em vista que aquilo que se promete combater — a suposta insegurança — é a força motriz dos instrumentos de controle.

Em consonância com o que aqui se discute, André Lozano de Andrade encerra, com maestria, a discussão:

"Obviamente, a simples edição de uma lei não é suficiente para resolver problema algum. Para se solucionar ou amenizar problemas relativos à segurança pública, é preciso investir em diversas áreas a depender das causas, que podem ser relativas à educação, distribuição de renda, inclusão social (….) Como o problema não foi resolvido com a edição da lei, ao invés de mudar o remédio e tentar novas soluções, aumenta-se a dose do medicamento. Criam-se novos crimes, majoram-se as penas, reduzem-se garantias processuais, contraria-se a Constituição e, assim como um medicamento que em excesso pode matar o paciente, o excesso de uso das leis penais pode debilitar o sistema penal e a Democracia" [6].

O medo fomentado, além de instrumento empregado na promoção da popularidade de demagogos, é, também, objeto de distração.

Questionados pela sociedade civil ou por opositores acerca de sua improdutividade, ineficácia de seus projetos ou contradição de seus atos e palavras, esses indivíduos utilizam-se do medo como cortina de fumaça, a fim de acobertar seus fracassos, incapacidades e ações que vão em sentido contrário ao interesse da população.

Diante de tudo até aqui exposto, é preciso que a sociedade civil, de forma coesa e inegociável, pratique o exercício diário de reafirmação do compromisso com as bases do Estado Democrático de Direito, afinal, "o grau de civilidade de um povo se mede, sobretudo, pelo modo com o qual se salvaguarda os direitos e as liberdades do imputado no processo penal" [7].

Considerando as eleições previstas para o corrente ano, é provável que os sintomas neste artigo se intensifiquem consideravelmente, razão pela qual devemos permanecer ainda mais vigilantes aos discursos que fomentam as práticas aqui discutidas.

Na era de desinformação, torna-se imperioso combater narrativas falaciosas e simplistas, que oferecem soluções rápidas e fáceis para problemas sociais complexos, como, por exemplo, a violência.

Estar atento e analisar de forma crítica reportagens, propagandas, discursos e notícias — aparentemente despretensiosas — pode ser um dos melhores meios de combate à chaga social do populismo punitivo.

É preciso lutar contra o nocivo processo que confere ao Direito Penal o papel de "soldado herói", principalmente porque, se assim o considerarmos, tenderemos a, cada vez mais, substituir direitos e garantias — prevenção primária — pelo recrudescimento do aparato opressor do Estado.

E como bem se sabe, a despeito da opinião de políticos populistas, comunicadores sensacionalistas e pessoas mal-intencionadas, investir no Direito Penal como promotor social é, do ponto de vista prático, ineficaz ao fim que se propõe — combater a violência —, tendo como único resultado o aumento da popularidade daqueles que, valendo-se da ignorância popular, levantaram a bandeira populista.

 


[1] MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: jornalismo como produção da segunda natureza. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 90.

[2] Diego Palhares Saul e Sergio Chastinet Duarte Guimarães

[3] SOBRINHO, Sérgio Francisco Carlos Graciano. A cultura do medo e as transgressões contemporâneas. Rio de Janeiro: Imprenta, 2005. pp. 215/226.

[4] ANDRADE, André Lozano. Populismo Penal: comunicação, manipulação política e democracia. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo : D’Plácido, 2020. p. 19.

[5] HOBSBAWM, Erick.

[6] ANDRADE, André Lozano. Populismo Penal: comunicação, manipulação política e democracia. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo : D’Plácido, 2020. p. 19.

[7] PISAPIA, Gian Domenico. Appunti di Procedura Penale I, p.3.

Autores

  • é advogado, bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA-Rio), pós-graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

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