Opinião

Lei nº 14.331/2022 e a nova "improcedência quase-liminar do pedido"

Autores

  • Frederico Augusto Leopoldino Koehler

    é doutorando pela USP mestre e bacharel em Direito pela UFPE ex-juiz federal instrutor no STJ atualmente juiz federal do TRF-5ª Região professor adjunto da UFPE professor do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) formador e conteudista da Enfam membro e secretário-geral adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e membro e secretário-geral da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

14 de maio de 2022, 13h19

Foi publicada no Diário Oficial da União de 5 de maio de 2022 a Lei nº  14.331, que dispõe "sobre o pagamento de honorários periciais e sobre os requisitos da petição inicial em litígios e em medidas cautelares relativos a benefícios assistenciais e previdenciários por incapacidade".

A nova legislação, a par de resolver o problema dos honorários periciais, trouxe algumas novidades processuais com relação à petição inicial e ao julgamento liminar de improcedência, consoante trataremos a seguir.

O artigo 3º, ao incluir o artigo 129-A na Lei nº 8.213/1991 [1], promoveu algumas inovações para as demandas relativas a benefícios por incapacidade e acidentes do trabalho. São ações previdenciárias que têm no polo passivo o INSS e podem tramitar em JEF ou em outro órgão jurisdicional, tendo em vista o artigo 129-A, II, dispor que as inovações se aplicam "qualquer que seja o rito ou procedimento adotado".

Primeiro, houve o acréscimo de novos elementos que devem constar na petição inicial das referidas demandas, em complemento ao artigo 319 do CPC: a) descrição clara da doença e das limitações que ela impõe; b) indicação da atividade para a qual o autor alega estar incapacitado; c) possíveis inconsistências da avaliação médico-pericial discutida; e d) declaração quanto à existência de ação judicial anterior com o objeto de que trata este artigo, esclarecendo os motivos pelos quais se entende não haver litispendência ou coisa julgada, quando for o caso.

Segundo, incluiu-se expressamente dentre os documentos indispensáveis à propositura da ação (artigo 320 do CPC), os seguintes: a) comprovante de indeferimento do benefício ou de sua não prorrogação, quando for o caso, pela administração pública; b) comprovante da ocorrência do acidente de qualquer natureza ou do acidente do trabalho, sempre que houver um acidente apontado como causa da incapacidade; c) documentação médica de que dispuser relativa à doença alegada como a causa da incapacidade discutida na via administrativa.

Terceiro, os §§1º a 3º do artigo 129-A trazem novo fluxo processual para as demandas que versem sobre benefícios por incapacidade e acidentes do trabalho, pois determinam que: 1) a perícia judicial será realizada antes da citação, e não mais após a apresentação da defesa, como é tradicional em nosso sistema; 2) quando a conclusão do perito designado pelo juízo mantiver a conclusão da perícia administrativa, poderá o juízo, após a oitiva da parte autora, julgar improcedente o pedido.

Pois bem.

Quanto aos novos requisitos da petição inicial e aos novos documentos indispensáveis à propositura da demanda, o escopo foi tornar mais clara e objetiva a exposição dos fatos trazidas pela parte autora, bem como a demonstrar a negativa na via administrativa, e a facilitar a verificação da incapacidade ou do acidente alegados.

Cabe um questionamento inicial: a partir do momento em que o artigo 129-A, I, alínea c), exige que a petição inicial indique "possíveis inconsistências da avaliação médico-pericial discutida", é correto dizer que se passou a incluir a perícia administrativa como documento indispensável à propositura da demanda?

Enquanto o inciso I do artigo 129-A da Lei nº 8.213/91 diz respeito aos elementos que devem constar na petição inicial, o inciso II remete aos novos documentos indispensáveis à propositura. É por isso que o inciso I se refere expressamente ao artigo 319 do CPC, enquanto o inciso II menciona o artigo 320 do CPC.

Em um primeiro olhar, nota-se que a perícia administrativa não consta dentre os documentos indispensáveis a serem trazidos pela parte autora, consoante a redação do referido inciso II. Entretanto, a exigência de que sejam narradas na petição inicial as "possíveis inconsistências da avaliação médico-pericial discutida" indicam a necessidade de que tal documento seja anexado no procedimento quando do ajuizamento da demanda.

Caso contrário, se não tivesse acesso a essa documentação, como poderia o perito judicial confrontar suas conclusões com as do laudo administrativo, indicando de forma fundamentada as razões técnicas e científicas que amparam o dissenso, como dispõe o §1º do artigo 129-A?

Embora tenha faltado técnica à nova lei, pois deveria ter incluído expressamente a perícia administrativa no rol do inciso II do artigo 129-A como documento essencial à propositura da ação, não há como chegar a interpretação diversa. Do contrário, seria materialmente impossível cumprir a regra do §1º do artigo 129-A acima descrita.

No entanto, surge o problema de como compatibilizar essa nova exigência documental imposta à parte demandante com o artigo 11 da Lei nº 10.259/2001 (Lei dos JEFs), segundo o qual "A entidade pública ré deverá fornecer ao Juizado a documentação de que disponha para o esclarecimento da causa, apresentando-a até a instalação da audiência de conciliação".

De fato, o artigo 11 impõe à parte ré a juntada da documentação pertinente  inclusive do laudo administrativo  até o momento da audiência de conciliação. Ocorre que, com o novo fluxo processual estabelecido pela nova legislação, mostra-se essencial que a perícia administrativa seja trazida antes da citação. Não é possível, portanto, aguardar-se o momento da apresentação da defesa ou da instauração da audiência de conciliação. Ou seja, embora o artigo 11 não tenha sido revogado, ele se mostra inaplicável ao novo fluxograma trazido pela Lei nº 14.331/2022.

Assim, deve a parte autora anexar à petição inicial o laudo administrativo e apontar as suas inconsistências. O que fazer se a parte autora não tiver acesso ao laudo administrativo?

Atualmente, os cidadãos e os advogados têm acesso direto ao laudo médico produzido na via administrativa por meio da plataforma "Meu INSS" [2]. Além disso, segundo a Portaria Dirben/INSS nº 967, de 30 de dezembro de 2021 (DOU 03/01/2022) [3], o INSS permite que o segurado faça a solicitação de cópia de laudo médico existente em benefício previdenciário e assistencial, por meio dos serviços de "Cópia de Processo" e "Cópia de Processo  Entidade Conveniada", quando não for possível obter diretamente pelo "Meu INSS".

A Portaria Dirben/INSS nº 967/2021 prescreve, em seu artigo 1º, §2º, que: "As informações constantes no laudo médico existente em processo administrativo, no âmbito do INSS, pertencem ao beneficiário e devem estar permanentemente disponíveis para ele ou para o seu representante legal ou procurador, quando solicitadas".

Caso o processo judicial seja ajuizado desacompanhado do laudo administrativo, deverá o magistrado aplicar o artigo 321 do CPC, determinando que o autor, no prazo de 15 dias, junte a documentação pertinente, sob pena de, não cumprindo a diligência, seguir-se o indeferimento da petição inicial.

Em casos excepcionais, como, por exemplo, uma petição inicial realizada por atermação de parte hipossuficiente que litigue sem advogado e tenha acesso dificultado ao INSS, parece aceitável  de forma extraordinária  inverter o ônus de apresentação da perícia administrativa e citar o INSS para que apresente a defesa e a referida documentação. Tais situações, felizmente, são cada vez em menor número.

Acrescente-se que está em desenvolvimento no CNJ, no Projeto "Justiça 4.0", a comunicação dos sistemas do INSS às plataformas de processos eletrônicos, o que permitirá o acesso direto às perícias médicas dos benefícios por incapacidade de forma automatizada [4].

Passemos à análise do §2º do artigo 129-A, que traz uma nova modalidade de julgamento de improcedência para as demandas que versem sobre benefícios por incapacidade e acidentes do trabalho, ao determinar que quando a conclusão do perito designado pelo juízo mantiver a conclusão da perícia administrativa, poderá o juízo, após a oitiva da parte autora, julgar improcedente o pedido.

O legislador trouxe mais uma hipótese de improcedência do pedido, que, à primeira vista, se parecem com as elencadas no artigo 332 do CPC, mas que possuem características bastante peculiares.

As hipóteses do artigo 332 tratam todas de causas que dispensem a fase instrutória e cujo pedido contrarie precedentes vinculantes ou enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

A situação do §2º do artigo 129-A é diversa, pois 1) não dispensa a fase instrutória  mas sim a antecipa para momento prévio à citação , e 2) não exige que o pedido contrarie qualquer espécie de precedente.

A nova sistemática legal, ao postergar a efetivação da citação, pode implicar algum atraso na interrupção do prazo prescricional e na constituição do devedor em mora, nos termos do artigo 240 do CPC. O montante do atraso variará de acordo com a dinâmica de tramitação dos processos de cada órgão jurisdicional.

De toda forma, como a interrupção da prescrição vai retroagir à data da propositura da ação  conforme o artigo 240, §1º do CPC , isso resolve o problema quanto a esse ponto. No entanto, como se sabe, não há previsão de retroação à data do ajuizamento com relação à constituição do devedor em mora. De fato, haverá um pequeno prejuízo para o autor nesse ponto, pois a contagem dos juros de mora efetivamente se computa a partir da citação.

É notável, entretanto, o ganho de celeridade e racionalidade que o fluxograma estabelecido pela nova lei trará aos casos relativos a benefícios por incapacidade e a acidentes do trabalho. É absolutamente justificado que as demandas que tenham perícia judicial contrária sejam julgadas improcedentes de plano, poupando o dispêndio de recursos financeiros aos cofres públicos e permitindo que o Poder Judiciário concentre as suas forças em causas que tenham alguma possibilidade de êxito.

A razoável duração das demandas previdenciárias interessa especialmente aos segurados do INSS, que pleiteiam verbas de caráter alimentar essenciais ao seu sustento.

Em conclusão, trata-se de uma nova categoria de improcedência do pedido, que pode ser intitulada de "improcedência quase-liminar do pedido", pois o julgamento de improcedência não é o primeiro ato de processo  não se dá in limine , ocorrendo apenas após a oitiva da parte autora sobre a perícia judicial que lhe foi desfavorável, nos termos do §2º do artigo 129-A.


[1] Artigo 129-A. Os litígios e as medidas cautelares relativos aos benefícios por incapacidade de que trata esta Lei, inclusive os relativos a acidentes do trabalho, observarão o seguinte:

I – quando o fundamento da ação for a discussão de ato praticado pela perícia médica federal, a petição inicial deverá conter, em complemento aos requisitos previstos no artigo 319 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil):

a) descrição clara da doença e das limitações que ela impõe;

b) indicação da atividade para a qual o autor alega estar incapacitado;

c) possíveis inconsistências da avaliação médico-pericial discutida; e

d) declaração quanto à existência de ação judicial anterior com o objeto de que trata este artigo, esclarecendo os motivos pelos quais se entende não haver litispendência ou coisa julgada, quando for o caso;

II – para atendimento do disposto no artigo 320 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a petição inicial, qualquer que seja o rito ou procedimento adotado, deverá ser instruída pelo autor com os seguintes documentos:

a) comprovante de indeferimento do benefício ou de sua não prorrogação, quando for o caso, pela administração pública;

b) comprovante da ocorrência do acidente de qualquer natureza ou do acidente do trabalho, sempre que houver um acidente apontado como causa da incapacidade;

c) documentação médica de que dispuser relativa à doença alegada como a causa da incapacidade discutida na via administrativa.

§1º Determinada pelo juízo a realização de exame médico-pericial por perito do juízo, este deverá, no caso de divergência com as conclusões do laudo administrativo, indicar em seu laudo de forma fundamentada as razões técnicas e científicas que amparam o dissenso, especialmente no que se refere à comprovação da incapacidade, sua data de início e a sua correlação com a atividade laboral do periciando.

§2º Quando a conclusão do exame médico pericial realizado por perito designado pelo juízo mantiver o resultado da decisão proferida pela perícia realizada na via administrativa, poderá o juízo, após a oitiva da parte autora, julgar improcedente o pedido.

§ 3º Se a controvérsia versar sobre outros pontos além do que exige exame médico-pericial, observado o disposto no § 1º deste artigo, o juízo dará seguimento ao processo, com a citação do réu.

[2] Disponível em: <https://meu.inss.gov.br/#/login>. Acesso em 05/05/2022.

[4] Confira-se o relatório de resultados compilados no "1 ano de Justiça 4.0". Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/01/1anodej4-0.pdf>. Acesso em 05/05/2022.

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    é juiz federal, ex-juiz federal instrutor no STJ, doutorando pela USP, mestre pela UFPE, professor da UFPE e do mestrado da Enfam, membro e diretor do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

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    é assessor de ministro do STJ, procurador do estado de Pernambuco, doutor e mestre pela USP, professor da UPE e da Asces/Unita, professor do mestrado profissional do Cers e membro da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

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