Opinião

A imunidade parlamentar é absoluta?

Autor

  • John Wesley Santos Silva Passos

    é estudante de Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) estagiário de gabinete de procurador regional da República e membro da comissão de assuntos constitucionais e da comissão de ciências criminais da OAB-DF.

14 de maio de 2022, 7h04

A imprensa ressuscitou os debates sobre a imunidade parlamentar. Notadamente em razão da condenação pelo Supremo Tribunal Federal do deputado federal Daniel Silveira no âmbito da Ação Penal 1.044 a uma pena de oito anos e nove meses de reclusão e 35 dias-multa pelas práticas das condutas do artigo 344 do Código Penal e artigo 18 da Lei 7.170/83 (já revogada à época). Ainda, ante a ultratividade da lei penal benéfica, o tribunal deixou de aplicar a pena da conduta do artigo 359-L do Código Penal. Além disso, foi decretado a suspensão dos direitos políticos do parlamentar e perda do mandato. Dos 11 ministros apenas o ministro Kassio Nunes Marques votou pela absolvição de todas as acusações do Parquet federal, alegando em suas razões de decidir que por mais que as falas do parlamentar fossem de índole despicienda e reprováveis, não haveria que se falar em condenação ante a atipicidade imposta às condutas por força da imunidade parlamentar. O ministro Alexandre de Moraes, a quem muitas das ofensas do parlamentar foram dirigidas, assentou que a imunidade parlamentar "não é escudo para cometimento de crimes". E é aqui que dou início ao objeto deste artigo.

A imunidade parlamentar, como dito alhures, está positivada no artigo 53, caput, da Constituição Federal como instrumento que visa a dar liberdade ao representante do povo no desempenho de suas atividades legislativas, o protegendo assim de pressões que ponham em risco seu múnus público. Essa imunidade como se sabe pode ser material ou formal. Aquela (material) torna o parlamentar insuscetível de imputação por quaisquer infrações penais, civis ou disciplinares, enquanto a esta (formal) o resguarda de constrangimentos de natureza (endo ou extra) processual, tais como prisões em flagrante, inquéritos policiais e conduções coercitiva na condição de testemunha — jamais na condição de réu, mormente por força da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal da condução coercitiva de réu ao interrogatório nas ADPFs 395 e 444).

Embora a Constituição os confere a imunidade, também faz ressalva quando da 1ª parte do §2º do artigo 53 diz que os parlamentares não poderão ser presos, "salvo em flagrante de crime inafiançável". Veja, se o próprio Constituinte deixou de forma elucidativa que a prerrogativa em questão não é absoluta, por qual razão  hermenêutica (literalista) e/ou jurídica — haveria de ser? Em razão disso, é importante salientar que uma vez demonstrado de forma uníssona no ordenamento jurídico e doutrina que nenhum direito é absoluto, com mais razão é a decorrência lógico-jurídica segundo a qual nenhuma prerrogativa é absoluta (!).

Nesse delinear, é importante fazer algumas perguntas retóricas:

1) É possível afirmar que a imunidade parlamentar é absoluta?

2) É juridicamente adequado uma interpretação literalista e isolada do caput do artigo 53 da Constituição Federal? Sobretudo da expressão "quaisquer"?

3) Uma vez entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, para sustentar a imunidade parlamentar é necessário o evidente nexo causal entre as palavras, opiniões e manifestações em relação à atividade legiferante (in officio) ou em razão dela (propter officium), (Pet 9165, relator ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 22/03/202. Pet 6268, relatora ministra Rosa Weber, Primeira Turma, j. 06/03/2018. Pet 6587, relator ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, j. 01/08/2017. Inq 2874 AgR, relator ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 20/06/2012.) seria possível admitir que mesmo a conduta de um parlamentar sendo penalmente típica e não guardando qualquer conexão com a função legislativa, que ele não poderia responder penalmente?

4) Se sim, não seria isso a própria supressão e esvaziamento do real desiderato do instituto constitucional? Bom, a questão não é tão simples quanto parece.

A doutrina especializada costuma conceituar a imunidade parlamentar atribuindo-lhe, propedeuticamete, um caráter absoluto. No entanto, mais a frente faz ressalvas quanto à condicionante da ratione muneris para só assim haver possibilidade de incidência da imunidade. Muito embora pareça tautológico dizer isso, é possível já de início concluir analiticamente que o "caráter absoluto" da imunidade parlamentar só é absoluto no que tange a sua perpetração durante e após o fim da legislatura, de modo que aquela conduta do parlamentar que esteja conexa com sua função legiferante fique no âmbito de proteção da imunidade. Essa condicionante de incidência, por assim dizer, parece ser olvidada por intérpretes que se apegam a literalidade textual, sobretudo na expressão "quaisquer" positivada na redação do caput.

O ordenamento não admite que uma prerrogativa ganhe status absoluto, tendo em vista a decadência moral de muitos agentes públicos em sentido lato. Não se trata de questionar "a constitucionalidade da Constituição", mas de dar a uma prerrogativa interpretação coerente com o sistema jurídico-constitucional brasileiro. A lição do saudoso professor e jurista Miguel Reale é clara: "nada valem os textos constitucionais quando não há consciência constitucional, pois o que importa na lei não é a sua letra, mas o seu espírito" [1].

Na sua doutrina, o ilustre professor e subprocurador geral da República Paulo Gonet aponta "a imunidade tem alcance limitado pela própria finalidade que a enseja. Cobra-se que o ato, para ser tido como imune à censura penal e cível, tenha sido praticado pelo congressista em conexão com o exercício do seu mandato" [2]. Ora, não há justificação para entender que um (a) parlamentar que, sem nenhum liame causal, tenha conduta típica, penal e civilmente, não seja responsabilizado (a). Há, inclusive, interessante julgado de relatoria do ministro Carlos Velloso onde rememora que o acréscimo da palavra "quaisquer" ao artigo 53, caput veio tão somente a esclarecer a já assentada jurisprudência do Supremo no sentido de necessidade de nexo causal entre as manifestações do parlamentar com a função que exerce [3].

Numa democracia constitucional, não há espaço para interpretações isoladas, descontextualizadas. O Direito já superou por reiteradas vezes tentativas que visavam reduzi-lo. Ora, tentou-se reduzir o Direito ao mero fato histórico-construtivista, ora mera técnica de análise de texto [4] e subsunção ao caso concreto e ora a um mero capítulo da sociologia. É necessário reafirmar que no século 21 o Estado não tem mais uma postura meramente de abstenção em respeito à liberdade do cidadão. Ele tem o poder-dever de garantir a concretização dos direitos fundamentais. É o próprio status civitatis na teoria de Jellinek. Assim, como deixado no legado de Miguel Reale, é necessário que o intérprete, isto é, o próprio operador do Direito, tenha a necessária consciência constitucional, sob pena de por em risco a própria incolumidade da Constituição.


[1] REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. Ed. 2002. Saraiva.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. Saraiva.

[3] RE 226643, relator(a): CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 03/08/2004.

[4] ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Manual de Direito Pena Brasileiro. 13ª ed. Revista dos tribunais. p. 151-152

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!