Diário de Classe

A hermenêutica e o processo de construção da segurança jurídica

Autor

  • Jesus Alexsandro Alves Rosa

    é doutorando em Direito pela Unesa bacharel em Ciências Militares (Aman) e em Direito (Unesa) mestre em Administração (UFF) professor de Direito Tributário do Toth Concursos e membro do Dasein.

14 de maio de 2022, 8h03

A era do conhecimento diminuiu distâncias, mesclou culturas, diversificou intensamente os comportamentos e, sobretudo, potencializou a necessidade de busca de segurança jurídica nos processos decisórios nas sociedades multiculturais. A democratização da informação com a popularização da internet, mesmo que ainda não totalmente alcançada, inflamou os questionamentos, principalmente nas ágoras virtuais, dando luz ao não conformismo e voz às minorias.

A premissa da discussão acerca de segurança jurídica nas decisões é a de que mesmo em uma sociedade tão plural, onde a divergência é denominador comum dos infinitos debates sobre os fenômenos sociais, o que se espera é que haja minimamente fundamentações coerentes que afastem o poder arbitrário dos intérpretes.

Existiria uma única resposta certa na resolução dos conflitos? A resposta constitucionalmente adequada é aquela guiada pelos dispositivos normativos constitucionais? Existem métodos interpretativos mais adequados diante dos diferentes contextos? Inúmeros questionamentos perpassam o pensamento do jurista quando busca-se encontrar a relação da hermenêutica com o processo decisório e a construção do sentimento de segurança jurídica das sociedades multiculturais.

Nesse sentido, Lenio Streck leciona que a segurança jurídica é uma blindagem contra a discricionariedade judicial. Contudo, ensina também que deve de haver um topos na busca da fundamentação na tomada de decisão, não pode ser ela infinita, nem existir um "método dos métodos ou metacritérios que possam fornecer o fundamento último do processo hermenêutico-interpretativo" [1].

São diversas as escolas filosóficas que sustentam o pensamento jurídico. É adequado comentar que o arcabouço teórico que deve sustentar as decisões as antecedem. As decisões devem ser construídas a partir da observação do caso concreto pelas lentes da doutrina jurídica à luz da constituição, neste sentido, revisar conceitos de escolas filosóficas do direito deve funcionar em moto-contínuo, in perpetuum mobile.

O jusnaturalismo observa que a mera aplicação do direito posto é insuficiente. O direito advém do transcendente, do metafísico ou da ordem natural das coisas, sendo esta pressuposto de validade na tomada de decisão. É, portanto, uma corrente que se funda na existência de direitos inatos, não passíveis de discussão, que funcionam como âncoras hermenêuticas no processo decisório, mormente em conflitos que versam sobre direitos fundamentais. "O jusnaturalismo é uma concepção segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo)" [2].

Por outro lado, o Positivismo Jurídico não pode ser confundido com a aplicação da letra fria da lei oriundo da Escola da Exegese, baseada em Montesquieu que dizia ser o juiz a "bouche de la loi" ("a boca da lei"). Kelsen abandona a ideia do constrangimento das decisões emitidas pelos tribunais sejam os limites semânticos da norma [3]. De forma diversa, Bobbio identifica positivismo jurídico com direito positivo: "por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito" [4].

Contudo, acredita-se que o processo de interpretação das normas constitucionais não se traduz em uma mera tipificação, pois, junto com Canotilho, acreditamos na persecução de um resultado constitucionalmente justo (sua expressão) uma vez que essa se traduziria na materialização de um direito fundamental da pessoa ao se alcançar através da tutela jurisdicional a resposta constitucional adequada dos conflitos [5].

Segundo Morbach além do positivismo de Hart e da integridade de Dworkin, haveria uma via ainda pouco discutida, que ele apresenta como "uma autêntica terceira via, entre o positivismo(s) e law as integrity". Esta terceira via Morbach atribui a Jeremy Waldron, que mesmo sendo considerado por alguns autores como positivista inclusivista, verifica-se em sua obra, em linhas gerais, influências dworkinianas e aspectos argumentativos, bem como a convergência de cinco elementos necessários: 1) as cortes; 2) normas gerais e públicas; 3) positividade; 4) orientação para o bem comum; e 5) sistematicidade [6].

Cientes da inexistência de um metacritério ou um método dos métodos, além da necessidade de finitude na busca da fundamentação das decisões, resta saber se no processo decisório jurídico há de haver princípios básicos a seguir, e, em havendo tais princípios, quais seriam?

Em um Estado Democrático de Direito não há espaço para discricionariedade; o livre convencimento do juiz é abjeto; a resposta constitucionalmente adequada é alcançada a partir de um processo hermenêutico de busca da aplicação ou compreensão do dispositivo normativo posto. Nesse sentido o processo interpretativo, a norma, a doutrina e a lente constitucional se entrelaçam de modo helicoidal aos moldes da estrutura do DNA [7].

Nesse sentido se aduz um elemento pouco discutido até o presente momento, elemento esse chamado contexto. Se o caso concreto não fosse importante, não haveria de se falar em distinguishing, o que fundamentaria uma possível robotização de sentenças.

As decisões devem partir do processo decisório e não o processo decisório da decisão. Ou seja, não se pode buscar a doutrina ou corrente que justifique a decisão discricionária, nesse sentido a fidelidade doutrinária se faz importante. É claro que o contexto, o caso concreto e todas suas nuances indicam por vezes processos interpretativos diversos, sem, contudo, afastar ou modificar a forma de ver o direito pelo magistrado, pois interpretar baseia-se numa fundamentação sólida das decisões, que devem ser objeto de constrangimento epistemológico constitucional.

O interpretativismo restringe o magistrado ao constrangimento semântico da norma constitucional não abrindo espaço para invasão da função legislativa. Por outro lado, o não interpretativismo considera a constante dinâmica social abrindo espaço para busca do sentido norma constitucional. Sendo assim, resta a dúvida: o não interpretativismo abriria espaço para judicialização da política e para ativismo judicial nas sociedades multiculturais?

Da reflexão exposta analisou-se a importância da hermenêutica na busca de critérios e métodos adequados para solução de conflitos inferindo que, em que pese não haver metacritérios nem o método dos métodos, há sim decisões ruins e decisões adequadas. A distinção entre essas e aquelas encontra-se no fato de que decisões adequadas enfrentam um processo decisório ancorado em uma coerência doutrinária, principiológica e normativa. O fato de não indicar a jurisprudência e os precedentes é proposital face a tais institutos jurídicos serem decorrentes do exposto confrontado com a realidade fática do caso concreto. Por outro lado, as decisões ruins se apoiam ou na discricionariedade do livre convencimento do juiz ou na construção desacertada do processo de justificação.

 


[1] STRECK, Lenio. Hermenêutica (e)m crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[2] BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora da UnB, 1992. p. 655.

[3] STRECK, Lenio. O QUE É POSITIVISMO, AFINAL? E QUAL POSITIVISMO? In: Novos Estudos Jurídicos, 2018, p. 894 e 899.

[4] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 26.

[5] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Direito Constitucional como Ciência de Direcção: o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (Contributo para a reabilitação da força normativa da "constituição social"). Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, nº 22, fev. 2008. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao022/Jose_Canotilho.htm. Acesso em: 30/11/2021.

[6] MORBACH, Gilberto. Entre positivismo e interpretativismo, a terceira via de Waldron. Salvador: JusPODIVM, 2021.

[7] Leciona Streck: "fazer hermenêutica jurídica é realizar o processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o texto de soslaio, rompendo-se tanto com (um)a hermé(nêu)tica jurídica tradicional-objetifivante como de um subjetivismo advindo do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência". In: STRECK, Lenio. Hermenêutica (e)m crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

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    é doutorando em Direito pela Unesa, bacharel em Ciências Militares (Aman), em Direito (Unesa), mestre em Administração, coordenador dos Cursos de Gestão da Estácio, professor da Aman, mediador do Cederj, professor de Direito Tributário, Economia e Ciências Política da Estácio e membro do Dasein.

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