Opinião

Fim da Espin: como fica a condição de trabalho do entregador de aplicativo

Autores

  • Dalton Tria Cusciano

    é pós-doutor em Direito e Novas Tecnologias pelo Mediterranea International Centre for Human Rights Research da Università “Mediterranea” di Reggio Calabria (Itália) doutor em Administração Pública e Governo mestre em Direito e Desenvolvimento e bacharel em Direito pela FGV-SP membro da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro) e professor da Escola de Negócios e Seguros de São Paulo e da Ambra University.

  • Ana Maria Malik

    é doutora em Medicina (Medicina Preventiva) pela Universidade de São Paulo mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas-SP médica e professora titular da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

14 de maio de 2022, 10h23

Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde decretou que o surto do novo coronavírus (2019-nCoV) constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (Espin) frente à existência de casos em 19 países, com transmissão entre humanos: China, Alemanha, Japão, Vietnã e Estados Unidos da América. No Brasil, a Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) foi decretada em 03 de fevereiro de 2020, pela Portaria GM/MS nº 188 do Ministério da Saúde.

Na data de 05 de janeiro de 2022 foi publicada a Lei nº 14.297, que dispôs sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19. Percebe-se de pronto a resposta legislativa tardia do Congresso Nacional, considerando que os trabalhadores que atuam com entregas via aplicativos tiveram que aguardar quase dois anos para ter uma solução normativa que minimamente os protegeria financeiramente em caso de acidente, adoecimento ou morte.

Exemplos de proteção trazidos pela Lei nº 14.297 encontram-se na obrigatoriedade de contratação, pelas empresas de aplicativos de entregas, de seguros contra acidentes, sem franquia, para esses trabalhadores, englobando acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte, além de assistência financeira pelo período de 15 dias, prorrogáveis por mais dois períodos de 15 dias, em caso de infecção pelo coronavírus, mediante apresentação do comprovante de resultado positivo para Covid-19 via exame RT-PCR ou de laudo médico que ateste a infecção e a necessidade de afastamento.

A assistência financeira supracitada deve ser calculada de acordo com a média dos três últimos pagamentos mensais recebidos pelo entregador. Os valores a serem pagos pela seguradora em caso de acidente variam de empresa para empresa, não indenizando, em geral, qualquer avaria ou perda de equipamento e, tampouco, do veículo acidentado. Caso existam garupas (acompanhantes), prática utilizada por alguns entregadores para aumentar a quantidade de entregas, esses não receberão qualquer valor em caso de acidente.

Todavia, no último dia 22 de abril de 2022 foi publicada a Portaria GM/MS nº 913, declarando o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV), que revogou a Portaria GM/MS nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Esta Portaria GM/MS entrará em vigor 30 dias após sua publicação, mas traz desde já situações fáticas que necessitam de atenção para resolução, pois diversas leis possuem vigência vinculada à Espin. Por exemplo, a Lei nº 14.297, de 05 de janeiro de 2022, ora em comento, dado que indica que "as medidas previstas nesta Lei devem ser asseguradas até que seja declarado o término da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo coronavírus Sars-CoV-2", conforme redação dada pelo parágrafo único do artigo 1º.  Outro normativo importante vinculado à Espin é a Lei 14.151/21, alterada pela Lei 14.311/2022, a qual versa sobre o trabalho da gestante na pandemia, estabelecendo em seu artigo 1º que "durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2, a empregada gestante que ainda não tenha sido totalmente imunizada (…) deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial".

Consequentemente, o entregador que presta serviço via aplicativo perderá seu direito tanto ao seguro contra acidentes pessoais quanto à assistência financeira, ainda que contraia o vírus de covid-19 e fique impossibilitado de trabalhar temporariamente. Por sua vez, a gestante não imunizada totalmente poderá retornar ao trabalho presencial, caso seja essa a vontade de seu empregador, ainda que tal retorno represente risco de parto prematuro e de óbito do bebê ou da gestante, conforme apontado por Cusciano (2022). O trabalhador em questão também perderá direitos voltados à higidez do meio ambiente laboral, o que engloba medidas de segurança e saúde básicas, como a garantia de acesso do entregador a água potável e a utilização por este das instalações sanitárias. Estes direitos estão previstos nos incisos II e III do artigo 6º da Lei nº 14.297/2022 que deixará de ter eficácia em menos de 30 dias, ainda em maio de 2022.

A perda desses direitos não somente é um retrocesso social como também contraria a norma veiculada pelo artigo 19, §1º, da Lei nº 8.213/91, pois cabe à empresa adotar e utilizar "medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhado", além de violar tanto o artigo 157 da CLT, quanto o artigo 7º, XXII, da Constituição Federal de 1988 que estabelecem o dever das empresas de manterem um meio ambiente de trabalho sadio, visando a reduzir os riscos inerentes ao trabalho.

Por outro lado, a decisão do Ministério da Saúde do Brasil vai na contramão do que disse a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 13 de abril de 2022, de que a pandemia de Covid-19 continua a ser uma Espii, ou seja, continua a ser uma pandemia. Desta forma, a perda de direitos ou o retrocesso social mencionado ocorreria na vigência de uma decisão brasileira não alinhada com a do órgão internacional de referência para a saúde no mundo.

Por fim, vale lembrar que os custos decorrentes do seguro contra acidentes pessoais e do pagamento de assistência financeira para os entregadores que prestam serviço via aplicativo já foram incorporados nos preços praticados pelas empresas que atuam nesse segmento, os quais dificilmente serão reduzidos quando da perda da vigência dessas mínimas garantias elencadas pela Lei nº 14.297/2022. Isto ampliará o abismo econômico entre as empresas exploradoras do serviço e seus prestadores e majorará a vulnerabilidade social desses trabalhadores já precarizados.

 

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>

BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1191. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>

BRASIL. Lei nº 14.297, de 05 de janeiro de 2022. Dispõe sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela Covid-19. Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.297-de-5-de-janeiro-de-2022-372163123>

BRASIL. Lei nº 14.311, de 09 de março de 2022. Altera a Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021, para disciplinar o afastamento da empregada gestante, inclusive a doméstica, não imunizada contra o coronavírus SARS-Cov-2 das atividades de trabalho presencial quando a atividade laboral por ela exercida for incompatível com a sua realização em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, nos termos em que especifica. Disponível em: < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.311-de-9-de-marco-de-2022-384725072>

CUSCIANO, Dalton Tria. O Trabalho Presencial das Gestantes Previsto na Lei 14.311/2022 sob o Prisma da Saúde e Segurança Ocupacional. Revista Consultor Jurídico. Edição de 1º de abril de 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-abr-01/dalton-cusciano-trabalho-gestantes-seguranca-ocupacional>

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS nº 913, de 22 de abril de 2022. Declara o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV) e revoga a Portaria GM/MS nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-913-de-22-de-abril-de-2022-394545491>.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (Espin) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388>.

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    é pós-doutor em Direito e Novas Tecnologias pelo Mediterranea International Centre for Human Rights Research da Università "Mediterranea" di Reggio de Calabria/Itália, doutor em Administração Pública e Governo, mestre em Direito e Desenvolvimento e professor da Escola de Negócios e Seguros de São Paulo e da Ambra University.

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    é médica, mestre em Administração, doutora em Medicina Preventiva, professora titular da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Eaesp) e coordenadora do FGV-Saúde.

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