Opinião

O cérebro compreende melhor contratos visuais: entendeu ou precisa desenhar?

Autores

  • Clarissa Amaral Silva Freitas Brandão

    é advogada especialista em Direito Tributário pelo Ibet especialista em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral certificada em Privacidade e Proteção de Dados pela Exin designer de Contratos pela Future Law certificada em Visual Contracts pela Legal Creatives e em Legal Design/Visual Law pela Legal Hub e Future Law em Design Inclusivo pela Leiautar e em Acessibilidade pela Mergo.

  • Marina Pádua Reis

    é psicóloga doutora em Neurociências pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) e pós-doutora em Neurociências pela Universidade de Uppsala (UU-Suécia).

14 de maio de 2022, 6h01

Quem já ouviu a expressão "entendeu ou precisa desenhar?" certamente sabe que ela é utilizada quando é necessário explicar alguma coisa a alguém repetidamente e, como recurso final, sugere-se o desenho. Apesar do contexto passivo-agressivo em que essa expressão muitas vezes é utilizada, ela contém muita sabedoria. No universo do Direito por exemplo, o desenho pode ser utilizado como uma ferramenta estratégica na elaboração de contratos, permitindo que estes sejam rapidamente compreendidos pelas partes. Os chamados contratos visuais, que utilizam desenhos e linguagem simplificada, são socialmente inclusivos e respeitam como o cérebro humano funciona.   

O cérebro é um processador. E, como todo bom processador, ele interage com estímulos, faz as conexões necessárias entre eles e interpreta informações. Para aprender a interpretar textos escritos, o cérebro precisa de tempo e muita aprendizagem. Crianças geralmente começam a ler em torno dos cinco ou seis anos de idade, e para isso precisam aprender as letras, as sílabas, as palavras, as frases, para só então começar a processar um texto. Por outro lado, para interpretar imagens o cérebro requer pouco ou nenhum aprendizado. Em um experimento marcante, as psicólogas Julian Hochberg e Virginia Brooks privaram uma criança de ver representações pictóricas de alguns objetos pelos primeiros 19 meses de sua vida [1]. Ou seja, durante esse período, a criança se familiarizou com os objetos pessoalmente, mas não teve contato com nenhum tipo de desenho que os representassem. Quando as pesquisadoras finalmente mostraram desenhos dos objetos familiares, a criança reconheceu e nomeou todos imediatamente. A conclusão do estudo foi que o cérebro humano tem uma habilidade inata para reconhecer imagens. De fato, vários estudos neurocientíficos subsequentes mostraram que não só crianças, mas também adultos, idosos, primatas não-humanos, pássaros e até aracnídeos podem facilmente derivar informações de traços desenhados. Dessa forma, imagens e desenhos podem deixar textos difíceis mais compreensíveis, porque elas são instintivamente processadas pelo cérebro.

A tese do educador norte-americano Edgar Dale denominada Cone do Aprendizado [2] confirma o estudo citado acima. Ela defende que o conhecimento é absorvido pelo cérebro humano com mais eficácia quando transmitido por meio de materiais com estímulos sensoriais diversos, e que o modelo ideal de aprendizagem deveria equilibrar combinações de experiências [3]. Aliás, inúmeros são os estudos que comprovam que estímulos multissensoriais são vantajosos para a aprendizagem e memorização [4]. Logo, para que uma explicação ou documento possa ser plenamente compreendido por seu público-alvo, o método mais adequado e eficaz é a utilização de uma variedade de recursos de comunicação e a associação de mais de uma técnica de ensino, como gravuras e imagens conjugadas com a escrita e áudio.

Além disso, a Open Society Mental Health Initiative [5], ao falar sobre educação, expõe a impossibilidade de que o conceito "fácil de ler" seja universal, já que as pessoas possuem características físicas/neurológicas e culturais/sociais distintas. Não é possível escrever um texto que atenda a todos os tipos de habilidades ou problemas de alfabetização e compreensão[6]. Uma reflexão importante também é trazida em uma pesquisa da Universal Design for Learning (UDL), realizada pelo Cast (Center for Applied Special Technology[7], que buscou corrigir o principal obstáculo para o desenvolvimento de alunos em ambientes de aprendizagem: os currículos inflexíveis e iguais para todos. Nessa importante investigação, chegou-se à conclusão de que os estudantes se diferem em suas capacidades de interpretar algo, tanto linguística quanto não linguisticamente e, como resultado, a informação apresentada a todos de uma única forma pode gerar desigualdades. Assim, garantir que representações alternativas sejam fornecidas durante o processo de aprendizagem apresenta-se como uma estratégia educacional relevante para promover acessibilidade ao conhecimento.

Quando se fala em acessibilidade de informação digital, a Web Content Accessibility Guidelines ("WCAG") ou no português "Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web", é a referência mundial. Nesta diretiva são estipuladas regras que buscam tornar o conteúdo Web mais acessível a um maior número de pessoas neurotípicas, e também àquelas com alguma deficiência, dificuldade de aprendizagem, limitação cognitiva ou de movimentos, incapacidade de fala, fotossensibilidade e combinações destas características. Na sessão "Nível de Leitura" [8], o guia aborda o tema linguagem simplificada e acessível e traz as técnicas consideradas como suficientes para auxiliar na compreensão de textos difíceis ou complexos. Dentre as técnicas incluem-se: ilustrações visuais, imagens e símbolos de ideias, eventos e processos.

Em posse desses conhecimentos e vivendo em uma sociedade globalizada e digital que, cada vez mais, valoriza as diferenças e luta por direitos iguais, é possível imaginar como seria mais justo e simples se pudéssemos traduzir em desenhos tudo aquilo que é, via de regra, complexo e exclusivo à maioria das pessoas. É nesse contexto que surge o Legal Design, que busca simplificar o Direito ao aplicar técnicas de design e comunicação diferenciadas em seus procedimentos e documentos  como os chamados contratos visuais. Este tipo de contrato busca traduzir a linguagem escrita e rebuscada, normalmente encontrada em documentos contratuais, por uma combinação de figuras, imagens e textos simplificados. A ideia é utilizar técnicas de comunicação voltadas para o usuário final. Assim, os contratos visuais apresentam-se como substitutos dos antigos e tradicionais contratos escritos, sendo mais inclusivos, acessíveis e intuitivos para formalizar a celebração de negócios jurídicos entre partes. É o que comprovou a pesquisa realizada pela Bits Academy [9] que, ao comparar os níveis de compreensão entre cláusulas de contrato expressas em linguagem verbal e não verbal, constatou que 92% das pessoas compreenderam melhor as cláusulas visuais. No Judiciário também se verifica forte tendência de aceitação do Legal Design em documentos jurídicos, mais especificamente 78% dos 503 magistrados entrevistados entendem que a técnica facilita a análise, desde que aplicada sem excessos [10].

Os contratos são instrumentos utilizados por grande parte da população e em diversos momentos de suas vidas. A necessidade de estabelecer vínculos contratuais independe do nível de escolaridade, classe, gênero, raça, idade, entre outras diferenças. Além disso, de forma geral, o cérebro humano é mais preparado para processar imagens e tem maior facilidade para armazenar informações visuais mistas  verbais e não verbais. Basta então conectar os pontos para se chegar à conclusão inegável: A associação de desenhos e imagens a uma linguagem escrita simplificada tornará o processo de compreensão e negociação de um contrato muito mais rápido, eficiente, acessível e justo para as partes, possibilitando que se alcance mais equilíbrio e igualdade de oportunidades.

Retomando o questionamento "entendeu, ou precisa desenhar?" que intitula o presente artigo, é preciso compreender que no âmbito do Direito e, mais especificamente, no âmbito dos contratos, a resposta é clara: Sim, precisa desenhar!


[1] NOLDEMAN, Perry. Words about Pictures: The Narrative Art of Children's Picture. The University of Georgia Press, 1988.

[2] DALE, Edgar. Audio-visual methods in teaching. New York: Dryden Press, 1946. Disponível em: https://archive.org/details/audiovisualmetho00dale/page/524/mode/2up?q=83%25 Acesso em 14.04.2022

Autores

  • é advogada pela Faculdade de Direito Milton Campos, especialista em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral, especialista em Direito Tributário pelo Ibet e certificada em Privacidade e Proteção de Dados pela EXIN.

  • é psicóloga, doutora em Neurociências pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) e pós-doutora em Neurociências pela Universidade de Uppsala (UU-Suécia).

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