Opinião

STJ, "pacote anticrime" e progressão de regime no tráfico de entorpecentes

Autor

  • Víctor Minervino Quintiere

    é doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Research Fellow na Universitá degli studi Roma TRE na Itália mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados professor do programa de pós-graduação em Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) professor convidado do programa de pós-graduação da Escola Baiana de Direito em Direito Penal e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas (Fajs) do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

13 de maio de 2022, 10h14

A Lei nº 13.964/2019, cuja vigência foi iniciada em 23/1/2020, dentre outros assuntos, revogou expressamente o artigo 2º, §2º, da Lei nº 8.072/1990, o qual dispunha que "[a] progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se- [ia] após o cumprimento de 2/5 da pena, se o apenado [fosse] primário, e de 3/5, se reincidente, observado o disposto nos §§3º e 4º do artigo 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal)".

Em que pese a revogação acima, muitos tribunais têm utilizado a fração relativa aos crimes hediondos prevista no artigo 112 da LEP para fins de progressão de pena referente à condenação pelo crime de tráfico de entorpecentes usando muitas vezes como argumento o fato de que estaríamos diante de figuras equiparadas.

Diante desse cenário, o Superior Tribunal de Justiça foi instado, por meio do Habeas Corpus nº 736.333/SP, a responder o seguinte: com a revogação do artigo 2, §2º, da Lei nº 8.072/1990, o delito de tráfico de entorpecentes seria equiparado aos de natureza hedionda para fins de progressão de regime?

Acertadamente, a resposta, em sede de exame do pedido liminar, foi em sentido negativo, ou seja, o delito de tráfico de entorpecentes não é equiparado àqueles de natureza hedionda para fins de progressão de regime diante da revogação do artigo 2º, §2º, da Lei nº 8.072/1990 pela Lei nº 13.964/2019.

O ponto de partida para a reflexão acerca do tema, descrito na decisão aqui analisada, consiste na percepção de que "ausência de disposição legal equiparando o crime de tráfico de drogas a delito hediondo não poderia ser suprida por ato extralegal". Para além da própria harmonia e independência dos poderes, reverenciadas no fundamento destacado, importante  e aqui é o objetivo do presente texto  relembrar a importância do princípio da legalidade no direito penal.

Em termos de teoria dogmático-penal, o princípio da legalidade é o fundamento da tipicidade. Partindo das lições de Ernst Beling, ''Antes de ser antijurídica e imputável a título de culpa, uma ação reconhecível como punível precisa ser típica, isto é, corresponder a um dos esquemas ou delitos-tipos objetivamente descritos pela lei penal" (1944).

O princípio da legalidade representa o exaurimento último da discussão sobre a dicotomia existente entre a lei e o Direito. Nas palavras de Nelson Hungria, ao trabalhar o princípio da legalidade diz que: "A única fonte do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita".

Dizer o contrário é fazer tabula rasa do princípio da legalidade, "princípio básico do direito penal democrático", definido por Bacigalupo. Em uma sociedade na qual comumente rótulos são espalhados diariamente, "o Código Penal não deve ser considerado a magna charta do delinquente, mas, ao contrário, a magna charta do cidadão" (1999, p. 46).

De acordo, ainda, com o referido autor, "se o princípio da legalidade protege o cidadão, será um bem necessário (e não um mal necessário), pois protegerá o débil frente ao poderoso (o Estado), e a limitação de seus alcances não deveria contar com a compreensão dos cidadãos".

Além do âmbito de proteção, o princípio da legalidade formal está presente nas Constituições de índole liberal-democráticas dos países de civil law. Não à toa, Francesco Pallazo destaca que referido princípio "é uma das mais típicas expressões, juntamente com o princípio de culpabilidade, do superior Rechtsstaatsprinzip (Estado de Direito), nos seus três corolários: da reserva legal, do princípio de taxatividade-determinação e da irretroatividade", sendo "não apenas a roupagem exterior normativa que o princípio assume na Constituição, mas, por igual, a expressividade de um ou de outro desses três corolários, a propósito dos quais os diversos ordenamentos revelam uma diferente sensibilidade" (1989, p. 43).

Sobre os efeitos que a existência e a aplicação do princípio da legalidade no ordenamento jurídico geram, na América Latina, Eugênio Zaffaroni pondera que, "implica o enunciado do princípio da legalidade, do qual, como consequência induvidosa, derivam-se os princípios da irretroatividade da lei penal incriminatória ou mais gravosa e a proscrição da integração analógica da lei penal" (1987, p. 31).

Portanto, nos estritos termos do artigo 112 da LEP em vigor, cuja interpretação deve ser a mais benéfica para os condenados em geral, não é possível interpretar o referido dispositivo de maneira mais gravosa para supostos autores de uma infração penal ou, ainda, cogitar eventual ultratividade da lei penal mais prejudicial e anterior, sob pena de subversão, quanto a aplicação, do próprio sistema jurídico brasileiro em matéria penal.

Conclusões
Diante das ponderações feitas, é possível concluir que a posição estabelecida inicialmente, em sede de exame de pedido liminar, nos autos do HC nº 736.333/SP, de forma acertada, sedimentou a interpretação mais benéfica ao apenado, condenado por tráfico de entorpecentes, no sentido de que o delito de tráfico de entorpecentes não é equiparado àqueles de natureza hedionda para fins de progressão de regime diante da revogação do artigo 2º, §2º, da Lei nº 8.072/1990 pela Lei nº 13.964/2019.

É importante que a interpretação e integração das leis penais não ocorram em descompasso com a garantia fundamental do acusado/condenado consistente na observância do princípio da legalidade.

Aguardemos os próximos episódios.

Referências bibliográficas
BACIGALUPO, Enrique. Principios Constitucionales de Derecho Penal. Buenos Aires: Editorial Hamurabi, 1999, p. 46.
BELING, Ernst von. Esquema de derecho penal. Buenos Aires : Depalma, 1944.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. I.
PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabres Editor, 1989, p. 43 (tradução para o português de Gérson Pereira dos Santos).
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal — Parte General — Volume I, Buenos Aires: EDIAR, 1987, p. 131.

Referências legislativas:
BRASIL. STJ. 3ª Seção. REsp nº 1.910.240/MG. Ministro relator: Rogério Schietti Cruz. Julgado em 26.05.2021
BRASIL. Pacote Anticrime. Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019.  Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm> . Acesso em: 04.maio.2022.
BRASIL. Lei de Execuções Penais. Lei nº 7.210 de 1984. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 04.mai.2022.

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    é doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), research fellow na Universitá degli studi Roma TRE - Itália, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados, professor do programa de pós-graduação em Direito Penal e da Faculdade de Ciências Jurídicas - FAJS do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

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