Opinião

Uma Advocacia-Geral da União para a defesa da Wal do Açaí

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13 de maio de 2022, 21h18

"A AGU assume a defesa de Wal do Açaí" [1] é a notícia mais recente no noticiário político e jurídico.

O argumento da Advocacia-Geral da União para a defesa de Walderice Santos da Conceição, moradora de Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro, onde Jair Bolsonaro tem casa de veraneio, feita conjuntamente com a do presidente da República, seria a de "que ela trabalhou como agente pública e, por isso, tem direito a ser defendida pelo órgão" [2].

As dúvidas que surgem é? A AGU pode defender ex-agentes públicos? Sendo a resposta positiva, Wal do Açaí poderia usufruir dos referidos benefícios?

A resposta aos questionamentos acima é o que pretende fazer o presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva com a análise da legislação e da doutrina brasileira

Da defesa dos agentes públicos pela AGU
A defesa de agentes públicos pela AGU não é uma novidade e efetivamente tem previsão legal, senão vejamos o teor da Lei 9028/95:

"Artigo 22. A Advocacia-Geral da União e os seus órgãos vinculados, nas respectivas áreas de atuação, ficam autorizados a representar judicialmente os titulares e os membros dos Poderes da República, das Instituições Federais referidas no Título IV, Capítulo IV, da Constituição, bem como os titulares dos Ministérios e demais órgãos da Presidência da República, de autarquias e fundações públicas federais, e de cargos de natureza especial, de direção e assessoramento superiores e daqueles efetivos, inclusive promovendo ação penal privada ou representando perante o Ministério Público, quando vítimas de crime, quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público, especialmente da União, suas respectivas autarquias e fundações, ou das Instituições mencionadas, podendo, ainda, quanto aos mesmos atos, impetrar habeas corpus e mandado de segurança em defesa dos agentes públicos de que trata este artigo
§ 1o O disposto neste artigo aplica-se aos ex-titulares dos cargos ou funções referidos no caput, e ainda:
I – aos designados para a execução dos regimes especiais previstos na Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, e nos Decretos-Leis nºs 73, de 21 de novembro de 1966, e 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, e para a intervenção na concessão de serviço público de energia elétrica; (Redação dada pela Lei nº 12.767, de 2012)
II – aos militares das Forças Armadas e aos integrantes do órgão de segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, quando, em decorrência do cumprimento de dever constitucional, legal ou regulamentar, responderem a inquérito policial ou a processo judicial".

Assim, a lei autoriza que alguns agentes públicos específicos sejam defendidos pela AGU, inclusive após deixarem os cargos públicos, em virtude de fatos corridos durante o exercício da função.

Visando regulamentar a referida lei, em 28 de agosto de 2019 a Advocacia-Geral da União publicou a Portaria 428/2019 prevendo o seguinte:

"Artigo 3º A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral Federal poderão representar em juízo, observadas suas competências e o disposto no artigo 4º, os agentes públicos a seguir relacionados: I – o Presidente da República; II – o Vice-Presidente da República; III – os Membros dos Poderes Judiciário e Legislativo da União; IV – os Ministros de Estado; V – os Membros do Ministério Público da União; VI – os Membros da Advocacia-Geral da União; VII – os Membros da Procuradoria-Geral Federal; VIII – os Membros da Defensoria Pública da União; IX – os titulares dos Órgãos da Presidência da República; X – os titulares de autarquias e fundações públicas federais; XI – os titulares de cargos de natureza especial da Administração Federal; XII – os titulares de cargos em comissão de direção e assessoramento superiores da Administração Federal; XIII – os titulares de cargos efetivos da Administração Federal; XIV – os designados para a execução dos regimes especiais previstos na Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, nos Decretos-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, e nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, e para a intervenção na concessão de serviço público de energia elétrica; XV – os militares das Forças Armadas e os integrantes do órgão de segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, quando, em decorrência do cumprimento de dever constitucional, legal ou regulamentar, responderem a inquérito policial ou a processo judicial; XVI – os policiais militares mobilizados para operações da Força Nacional de Segurança; e XVII – os ex-titulares dos cargos e funções referidos nos incisos anteriores".

Diante do exposto, a primeira grande questão que surge é: Wal do Açaí está entre as pessoas que podem ter a defesa da AGU? A resposta é não. O Cargo que ela supostamente ocupava era o de Secretária Parlamentar da Câmara dos Deputados, que não é um cargo de natureza especial da Administração Federal, não é um cargo em comissão de direção e assessoramento superior da Administração Federal, não é um cargo público efetivo e não é nenhum dos outros casos autorizados pela lei e pela portaria. O cargo de Wal do Açaí era um cargo em comissão simples do baixo escalão do Legislativo Federal.

Assim, ao contrário do afirmado pela AGU, não existe permissivo legal ou infralegal para a defesa de Wal do Açaí pelo referido órgão.

Outrossim, entendemos que a Lei 9028/95 (e a Portaria 428/2019 por arrastamento) é inconstitucional ao permitir que a AGU defenda agentes públicos, pois a função da referida instituição de Estado é defender a pessoas jurídica da União e assessorar o Poder Executivo, não sendo sua atribuição prestar assistência jurídica gratuita aos agentes públicos, conforme claramente afirma a Constituição ao dizer:

"Artigo 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. (grifos nossos)".

Sendo mais claro: não estamos aqui defendendo que a AGU não possa defender o ato praticado pelo agente público no exercício da função, pois isso efetivamente pode e deve ser feito, pois os atos praticados pelo agente público no exercício da função devem ser imputados ao próprio Poder Público, seja em face da Teoria do Órgão [3] adotada pelo nosso ordenamento jurídico, seja em face do princípio da impessoalidade [4], seja em face do princípio da imputação volitiva [5].

Entretanto, o artigo 22 da Lei 9028/95 não fala em defesa do ato praticado pelo agente público e sim na defesa do próprio agente público ou do ex-agente público, o que torna a referida lei inconstitucional.

Isso quer dizer que Wal do Açai necessariamente deveria contratar uma advogada ou um advogado para se defender mesmo comprovando que não tem condição financeiras para tanto?

Não! Entretanto, a instituição responsável por prestar assistência jurídica gratuita no Brasil aos desprovidos de recursos está prevista em outro dispositivo constitucional abaixo colacionado:

"Artigo 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º desta Constituição Federal".

Desse modo, cabe à Defensoria Pública prestar a assistência jurídica gratuita no Brasil aos desprovidos de recursos, possuindo a referida instituição a expertise necessária para a referida função, diferentemente da Advocacia Geral da União, instituição extremamente importante e composta por agentes públicos altamente qualificados para o exercício das suas funções, que não incluem, no entanto, a prestação da assistência jurídica gratuita.

E seria possível um agente público ser assistido pela Defensoria Pública?? Sim, desde que comprove ser necessitado, ou seja, a pessoa precisa estar em uma situação de vulnerabilidade, que não precisa necessariamente ser apenas econômica [6]. Desse modo, caberia Wal do Açai procurar a Defensoria Pública da União para, comprovando sua impossibilidade de contratar alguém para se defender, pedir a concessão do benefício da assistência jurídica gratuita.

Não comprovando ser necessitada, Wal do Açaí deveria constituir uma advogada ou um advogado para se defender como qualquer outra pessoa ou até mesmo ser defendida por intermédio da sua associação de classe ou do sindicato da sua categoria, mas nunca poderia ter o direito de receber uma assistência jurídica gratuita pelo Poder Público através de uma instituição que não tem a dita atribuição, o que faz o artigo 22 da Lei 9028/95 ser inconstitucional também por ferir o princípio da igualdade, pois dá para algumas pessoas um benefício não extensível aos outros cidadãos na mesma situação.

Conclusão
Diante de tudo que foi acima aludido, concluímos que a defesa pessoal de Wal do Açaí pela AGU não se amolda aos casos permitidos pela legislação federal.  

Além disso, o artigo 22 da Lei 9028/95 é inconstitucional por atribuir à AGU uma função que não é sua nos termos da nossa Constituição e sim da Defensoria Pública, além de também ser inconstitucional por oportunizar a assistência jurídica gratuita estatal para pessoas que não são necessitadas, ferindo, assim, o princípio da igualdade ao dar um benefício para apenas parcela privilegiada da população.

Enfim, espera-se que Wal do Açaí, aparentemente a parte mais fraca da questão, tenha o direito ao contraditório e à ampla defesa de forma plena, mas por intermédio dos meios adequados.

Referências
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
FREIRE, Muniz; MIRANDA, Jaime; FIGUEIREDO, Rafael. Manual da Defensoria Pública. Leme: Mizuno, 2021.


[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.684.

[4] ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.71.

[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.13.

[6] FREIRE, Muniz; MIRANDA, Jaime; FIGUEIREDO, Rafael. Manual da Defensoria Pública. Leme: Mizuno, 2021.p.49.

Autores

  • é doutorando em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho-Braga, Portugal, mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), especialista em Ciência Política pelo Instituto Prominas, professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE), defensor público federal, defensor público regional de Direitos Humanos Substituto em Pernambuco.

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