Opinião

LRF e princípio da prevenção e da precaução no direito financeiro

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

13 de maio de 2022, 7h04

Diferente do direito tributário, para o qual o dinheiro não cheira (princípio do non-olet), no direito financeiro as finanças deixam marcas e o caráter solene das contas públicas deságua na obrigação institucional que o gestor público possui para escriturá-las, o que implica no raciocínio de que todo ato administrativo de gestão financeira no âmbito do ciclo orçamentário possui forte correlação com o atributo da forma.

Embora a topografia constitucional correlata à matéria diagramada entre os artigos 165-169 da Constituição Federal estabeleça um parâmetro de organização orçamentária, é a lei de responsabilidade fiscal o principal agente de fomento à escrituração porque estabelece parâmetros para planejamento, monitoramento e controle do gasto público.

Instrumento de crescimento racional da despesa pública, o artigo 16 da LRF, por exemplo, determina que toda criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa deve ser acompanhado de dois documentos distintos: a) estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes; e, b) declaração do ordenador de despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

A estimativa do impacto orçamentário-financeiro possui como característica um estudo do comportamento das receitas no sentido de garantir liquidez ao pagamento da iminente despesa, o que denota transversalidade entre arrecadação e dispêndio, uma das características da responsabilidade na gestão fiscal, prevista no artigo 1º, §1º da LRF.

Em relação ao planejamento de receitas, a lei de diretrizes orçamentárias é uma baliza importante, já que deve trazer anexo de riscos e metas fiscais e isso demonstra uma preocupação do legislador com intempéries em relação à arrecadação de receitas que eventualmente possam afetar o equilíbrio das contas públicas.

Dessa maneira, é possível afirmar que aquele planejamento individualiza o direito financeiro com uma característica marcante a respeito de versatilidade, já que ao gestor público é atribuída competência legal para estabelecer estratégias de estabilização das contas em caso de eventual frustração de receitas.

Por outro lado, a declaração do gestor de que eventual aumento de despesa tenha adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias, é uma responsabilização específica para o administrador público que vincula o exercício da função administrativa que exerce em relação às fases do controle da despesa.

Como se vê, existe uma nítida preocupação do legislador em estabelecer ponderação e cautela no processo de tomada de decisão em relação ao gasto público de modo a evitar o descontrole das contas e até mesmo um problema de ineficiência na execução orçamentária, que pode acarretar inclusive em um maior endividamento público porque o inadimplemento espontâneo das obrigações gera um passivo judicial com juros moratórios e honorários advocatícios.

Embora existam instrumentos jurídicos que reconheçam essa inabilidade administrativa na condução do erário, como é o caso de restos a pagar, dívidas de exercícios anteriores e até mesmo precatórios, é incontroverso o fato de uma preocupação normativa da lrf em relação a planejamento.

Outra característica da LRF no que diz respeito a evitar desajuste nas contas públicas é o instrumento da limitação de empenho e movimentação financeira previsto em seu artigo 9º: "Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias".

De periodicidade bimestral, aquele monitoramento possibilita uma readequação da despesa na hipótese de arrecadação desconforme ao planejado e isso demonstra um sistema corretivo para equalização racional do gasto de forma a prestigiar o princípio da eficiência no âmbito da execução orçamentária.

Em relação aos limites de gasto com pessoal, a LRF também apresenta ao ordenamento jurídico um sistema gradativo de controle: o termo de alerta, o limite prudencial e o limite legal, e este traz uma série de implicações restritivas que limitam a discricionariedade do gestor e impõe uma matriz de obrigações com o objetivo de adequar a folha de pagamento à receita corrente líquida.

O termo de alerta é uma competência exclusiva do sistema de controle externo exercido pelos tribunais de contas, que devem avisar ao gestor quando o limite do seu gasto com pessoal chegar a 90% do permitido, nos termos do artigo 59, §1º, inciso II.

Embora o termo de alerta não tenha uma perspectiva de coerção em relação ao processo de tomada de decisão, no microssistema processual de contas, pode haver uma repercussão quando da emissão do parecer prévio das contas anuais, caso uma vez alertado a respeito do iminente crescimento descontrolado do gasto com pessoal, o gestor não adotar ações aptas a manterem o gasto de maneira controlável.

O limite prudencial é quando o comprometimento daquele gasto atingir a 95% do permitido e, diferente do termo de alerta, a LRF já apresenta algumas restrições, nos termos do seu artigo 22:

"Artigo 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos artigos 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.
Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no artigo 20 que houver incorrido no excesso:
I – concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do artigo 37 da Constituição;
II – criação de cargo, emprego ou função;
III – alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV – provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;
V – contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6o do artigo 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias".

Como se vê, há um imperativo categórico que proíbe a criação de novas despesas e até mesmo criação de cargos, característico de um sistema de precaução, já que cargo vago, em tese, possibilita o seu provimento.

A título de exemplificação, a criação de cargos vagos de professor legitima o Ministério Público, caso detecte a insuficiência de quadro docente que obste a prestação de serviços de maneira satisfatória, a promover uma ação civil pública de obrigação de fazer para realização de concurso público para provê-los.

Em caso de êxito, a eventual procedência da ação ocasionará uma despesa até então não programada e comprometerá as finanças públicas, porquanto haverá provimento de cargos públicos sem o devido planejamento orçamentário e financeiro.

Já o limite legal é quando, de fato, o ente federado ou órgão constitucionalmente autônomo alcance o patamar de 100% do limite permitido. Naquele cenário a LRF apresenta um lapso temporal para uma gradual redução de despesas, sob pena do estabelecimento de obrigações compulsórias.

Assim, nos termos do artigo 23, caput, se a despesa ultrapassar o limite total, sem prejuízo das ações a serem adotadas quando do atingimento do limite prudencial, "o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro".

Caso contrário, resta atraída no raio de incidência da função administrativa de ordenador de despesas alguns aspectos proibitivos, que servem de parâmetros indiretos de condução do gasto aos limites até então permitidos, como por exemplo: a) recebimento de transferências voluntárias; b) obtenção de garantia direta ou indireta de outro entre; c) contratação de operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao pagamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal.

Como se vê, na estruturação do direito financeiro trazida pela LRF, é nítida a influência dos princípios da prevenção e da precaução, que são balizas norteadoras do direito ambiental e estudadas também pelo direito administrativo.

Ao discorrer sobre o tema, Juarez Freitas entende que no direito administrativo o princípio da prevenção prescreve que o gestor público deve agir de maneira estratégica com o intuito de evitar dano, ao passo que o princípio da precaução impõe "o dever de a Administração Pública motivadamente evitar, nos limites de suas atribuições e possibilidades orçamentárias, a produção de evento que supõe danoso, em face da fundada convicção (juízo de verossimilhança e de forte probabilidade) quanto ao risco de, se não interrompido tempestivamente o nexo de causalidade, ocorrer prejuízo injusto, indisputavelmente superior aos custos da eventual atividade interventiva" [1].

No direito financeiro, o princípio da prevenção se caracteriza pelo planejamento estratégico prévio do aumento de despesa prescrito pelo artigo 16 da LRF, ao passo que o princípio da precaução se caracteriza pelo microssistema de controle da despesa com pessoal, notadamente o limite prudencial e a compulsoriedade de algumas ações quando do atingimento do limite legal.

Conforme se vê, pela matriz normativa delineada pela LRF, a discricionariedade administrativa do gestor público resta mitigada e ele possui uma obrigação jurisdicional de administrar o interesse coletivo paralelamente à execução orçamentária, com ênfase no monitoramento da relação entre as receitas e as despesas.

Como estabelece medidas de governança aptas a garantirem a higidez das contas públicas, aquele normativo é um parâmetro de política macrofiscal apto a garantir a qualidade do gasto público.

Dessa maneira, a LRF, por estabelecer medidas de governança aptas a garantirem o equilíbrio das contas com imposição de planejamento prévio e monitoramento da execução orçamentária com ênfase na estabilização do gasto, é um instrumento de macroplanejamento fiscal brasileiro.

Assim, é possível afirmar que a ideia de desenvolvimento nacional deve obediência àquelas regras de equilíbrio fiscal. Em outras palavras: no dimensionamento do escopo das políticas públicas, embora pressionado pela matriz obrigacional correlata aos direitos sociais, deve o gestor público adequar as suas pretensões às normas de planejamento estratégico estabelecidas pela lei de responsabilidade fiscal.

Oportuno lembrar que a prestação de políticas públicas gravita no entorno das escolhas trágicas, teoria encampada pelo Supremo Tribunal Federal o qual pauta que "os recursos estatais são, por excelência, escassos, de modo que há, no mais das vezes, um descompasso entre as demandas da sociedade e as correspondentes capacidades jurídico-administrativas do Estado" [2].

A prestação de serviços públicos possui na lei de responsabilidade fiscal um meio, porque as suas regras de conduta objetivam canalizar a utilização dos recursos públicos de modo a evitar a criação de uma despesa com problemas correlatos à adimplemento.

É, portanto, um incentivo de eficiência administrativa porque "na eficiência administrativa, além do incentivo ao fim, necessário se fez percorrer um caminho a mais, qual seja, aquele que exija um cumprimento substancial da finalidade" [3].

Nesses 22 anos de existência, a LRF tem sido um caminho pavimentado rumo ao equilíbrio do gasto público com regras de estabilização das finanças com ênfase na prevenção e na precaução, o que possibilita um controle mais atuante pautado em um monitoramento concomitante na relação entre despesa e receita.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADO 2. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relatoria do Ministro Luiz Fux.
FREITAZ, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5ª edição. Malheiros editores. São Paulo/SP
CABRAL, Flávio Garcia. O conteúdo jurídico da eficiência administrativa. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2019


[1] FREITAZ, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5ª edição. Malheiros editores. São Paulo/SP: 2013, p. 124.

[2] ADO 2. Órgão Julgador: Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relatoria do ministro Luiz Fux. Data do Julgamento: 15/04/2020. Data da Publicação: 30/04/2020.

[3] CABRAL, Flávio Garcia. O conteúdo jurídico da eficiência administrativa. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2019, p. 169.

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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