Opinião

Pode o STF postergar a aplicação do decreto de indulto?

Autor

13 de maio de 2022, 20h24

No último dia o 20 de abril, o deputado federal Daniel Silveira foi condenado por maioria de votos do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, nos autos da AP 1.044. Ocorre que no dia seguinte, foi publicado decreto presidencial concedendo a ele graça constitucional, indultando-o de forma incondicionada, independente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A possibilidade de concessão de perdão presidencial é uma das prerrogativas privativas do presidente da República, previstas pelo Constituinte de 1988 em prestígio à separação dos Poderes, como um dos mecanismos dos freios e contrapesos, no artigo 84 da Constituição da República, sendo que a possibilidade de concessão do indulto se encontra expressamente assegurada no inciso XII do referido dispositivo, que só encontra limitação no artigo 5, incido XLIII [1], também do Texto Constitucional. Como intérpretes originais do texto constitucional se posicionaram Ives Gandra Martins e Celso Ribeiro Bastos há três décadas:

"A concessão do indulto ou a limitação das penas poderá ser realizada com audiência dos órgãos instituídos em lei. Tal audiência, todavia, não é necessária. Apenas se o presidente entender que é o caso, poderá ouvir os órgãos especializados. A própria lei não pode impor tal oitiva, até porque, qualquer que seja a opinião dos órgãos especializados, a faculdade outorgada pelo constituinte é absoluta, cabendo-lhe a decisão, independentemente da convicção daqueles que foram ouvidos" [2].

Nesse mesmo sentido, já com base no entendimento recente do Supremo Tribunal sobre a matéria, aponta Bernardo Gonçalves Fernandes:

"Indulto (ou 'indulto coletivo' visto que é um benefício coletivo que se diferencia da "graça" que é um indulto individual com destinatário certo) é um ato do presidente da República, materializado por meio de um decreto, por meio do qual é extinto o feito executório da condenação imposta a alguém. Nesse sentido, mesmo havendo ainda pena a ser cumprida, o Estado renuncia ao seu direito de punir, sendo uma causa de extinção da punibilidade (artigo 107, II, CP). O indulto pode ser pleno (quando extingue totalmente a pena) ou parcial (quando ocorre a diminuição ou a substituição da pena na intitulada 'comutação'. Tradicionalmente, o indulto é concedido a pessoas que receberam uma pena por terem sido condenadas pela prática de infração penal" [3].

Ademais, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 2º dispõe que "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Ou seja, o Legislador Constituinte determinou a impossibilidade de um poder da República interferir ilegalmente em outro, razão pela qual é abundante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, em que restou consolidado o entendimento no sentido de que, a menos que algum dos poderes atente contra disposição expressa Constituição, a interferência por outro em seus atos privativos é expressamente vedada.

Em consonância a tais valores, veja-se o que afirmou a eminente ministra Rosa Weber no RHC nº 155.208/MG e no RHC nº 167.854/SC, acerca do respeito à separação entre os poderes da República: "De resto, descabe, ao ensejo de concretizar regras de indulto, conceber interpretação que alargue para hipóteses de benefício não previstas no Decreto Presidencial, sob pena de ofensa ao princípio da Separação dos Poderes e da legalidade estrita" [4].

A questão também foi julgada, após profundo debate, no âmbito da ADI 5.874 de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, em que se firmou o entendimento do sentido de que só há "[p]ossibilidade de o Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal" [5].

Da íntegra do acórdão proferido na referida ação direta de inconstitucionalidade, o douto ministro Gilmar Mendes deixou assente a possibilidade de indulto até mesmo antes do trânsito em julgado. Além disso, evidenciou o eminente ministro a impossibilidade de ingerência indevida do Poder Judiciário para além dos limites previstos no próprio Texto Constitucional (artigo 5º, XLIII), in verbis:

"Limites constitucionais à concessão de indulto
Sem dúvidas, a discricionariedade do presidente da República é limitada pelo texto constitucional, que o faz expressamente no inciso XLIII do artigo 5º da CF:
'XLIII — a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem'.
(…) Assim, o controle judicial deve se restringir aos limites fixados na Constituição Federal, restando ao presidente da República a análise da conveniência e dos critérios do indulto. Ao Supremo Tribunal Federal cabe o exame de violações manifestas ao texto constitucional. Não compete ao Judiciário a realização de controle sobre a política criminal adotada pelo Estado (Legislativo e Executivo), para fins de ampliação da criminalização ou recrudescimento da resposta punitiva.
(…) Na doutrina, afirma-se: 'verificamos a possibilidade de se receber o indulto antes do trânsito em julgado' (RIBEIRO, Rodrigo. O indulto presidencial: origens, evolução e perspectivas. RBCCrim, v. 23, n. 117, nov./dez. 2015. p. 428). Ou seja, não há óbice para que o indulto seja aplicado antes do trânsito em julgado do processo. Conforme já afirmado, a concessão do indulto é prerrogativa do presidente da República que possui impactos no exercício da pretensão punitiva pelo Estado, podendo ter consequências em qualquer fase da persecução penal. Trata-se de mecanismo de gestão do sistema penal, com impactos em questões penitenciárias e de política criminal em sentido amplo. Portanto, inexiste violação na norma definida no Decreto de Indulto aqui analisado."

Diante disso, o conclui-se que, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, o chefe do Poder Executivo tem a faculdade de conceder ou não o indulto individual com base apenas em seu juízo de oportunidade e conveniência, conforme seu próprio entendimento.

Tal conclusão deriva tanto da aplicação de uma hermenêutica teleológica quanto de uma literal do ordenamento jurídico brasileiro. Ou seja, se nesta se nota que o artigo 5º, XLIV, da CR/88, não versa sobre o indulto e a graça, naquela se percebe que a intenção do Legislador Constituinte foi a de especificar as exceções aos atos solenes presidenciais tão somente no artigo 5º, inciso XLIII, da CR/88.

Resta evidenciada, por conseguinte, a presunção de constitucionalidade do decreto presidencial. Essa é inclusive uma presunção e constitucionalidade forte na medida em que o próprio STF tem posicionamento no sentido da constitucionalidade de indultos sob os fundamentos, acima citados. Portanto, como o decreto está válido e não foi suspenso pelo relator da ação e nem mesmo nas ADPFs que tem como escopo o decreto de indulto, não há como desconsidera-lo e, com isso, determinar medidas cautelares sem que haja fundamento acautelatório. A pergunta é: acautelar o que após a concessão do indulto, antes do trânsito em julgado? E que como ato normativo é dotado de presunção de constitucionalidade.

Assim, não são as medidas cautelares que devem ser válidas até que o Pleno do STF analise as ADPFs, mas sim que não devemos ter medidas cautelares (mesmo porque na vigência do decreto não há o que acautelar) justamente porque as ADPFs ainda não foram sequer enfrentadas. E, ainda quando forem enfrentadas, acredita-se que acabarão por dar ensejo ao inexorável reconhecimento da constitucionalidade do decreto, já que expedido em absoluta observância aos limites previstos no texto constitucional.

Portanto, uma vez concedida a graça, como no caso em tela, o pedido condenatório contido na exordial acusatória perde seu objeto a partir da concessão do perdão por ato soberano e privativo do Presidente da República (artigo 84, inciso XII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 — CR/88), sendo seu reconhecimento pelo judiciário mero ato declaratório, já que a anistia, graça ou indulto são hipóteses de extinção da punibilidade previstas no artigo 107, inciso II do Código Penal: "Art. 107 – Extingue-se a punibilidade: II – pela anistia, graça ou indulto".

A graça ou indulto são compreendidos desde a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940 como indulgentia principis, ou seja, trata-se de ato soberano com natureza de clemência, motivado, inclusive, por oportunidade ou conveniência, praticado privativamente pelo Presidente da República. Ainda em remissão à referida exposição de motivos, relevante destacar que a adoção da expressão "extinção da punibilidade" foi empregada para delimitar que o instituto diz respeito à abolição do próprio direito de punir por parte do Estado [6].

Portanto, as hipóteses de extinção da punibilidade descritas na legislação implicam inexoravelmente na renúncia ao jus puniendi por parte do Estado, que pode ocorrer no curso de uma ação penal ou após o seu trânsito em julgado. A graça, especificamente, é ato do Poder Executivo e carece apenas de mero ato declaratório do Poder Judiciário, que formalizará sua aplicação ao caso concreto.

Apesar de todos os pressupostos de validade e constitucionalidade do decreto presidencial, o ministro relator deixou de apreciar o pedido de declaração de extinção da punibilidade, limitando-se a afirmar que o debate acerca da constitucionalidade ou não do indulto será oportunamente realizada quando do julgamento das ADPFs 964, 965, 966 e 967.

Não obstante, é fundamental enfrentar a arguição defensiva por tratar-se de questão de ordem pública imprescindível para nortear as decisões judiciais no presente caso. Ao vincular a análise do pedido defensivo de extinção da punibilidade à análise de ADPFs que serão julgadas futuramente, o ministro relator, permissa venia, nega vigência ao decreto presidencial de forma imotivada e arbitrária, tornando-o sem efeito mesmo inexistindo qualquer decisão judicial suspendendo seus efeitos. Por meio de omissão, postergando o debate, o ministro relator, na prática, ignora cabalmente uma norma presumidamente lícita e constitucional e que está em plena vigência.

Portanto, uma vez que inexiste qualquer decisão judicial — ainda que de natureza precária e provisória — suspendendo os efeitos do decreto presidencial de 21 de abril de 2022, trata-se de norma em vigor e que produz efeitos no mundo jurídico, devendo ser levada em consideração nos momentos decisórios.

A eficácia do indulto no mundo jurídico é sempre imediata, já que o decreto presencial que o concede (não apenas o publicado no dia 21 de abril de 2022, mas qualquer outro) tem presunção de legitimidade assim como quaisquer atos da Administração Pública, o que atesta uma série de precedentes dos tribunais superiores, com fulcro inclusive, na literalidade do artigo 192 da Lei de Execuções Penais, segundo o qual: "Concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, no caso de comutação".

Nesse sentido já se manifestou diversas versas o próprio Supremo Tribunal Federal, como se depreende, a título exemplificativo, das palavras do saudoso ministro Teori Zavascki afirma: "Ressalte-se, por oportuno, que a sentença que concede o indulto ou, como no caso, a comutação de pena, possui natureza declaratória, e não constitutiva. Logo, satisfeitos os requisitos previstos na norma, não pode o Poder Judiciário levar em consideração outros aspectos ou fazer exigências nele não estabelecidas" (destaca-se) [7]. Desse modo, a eficácia da clemência presencial se dá de forma imediata, produzindo efeitos desde a sua publicação. Incontáveis também os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema, sempre no mesmo sentido: "[a] decisão que concede ou nega o benefício de indulto ou comutação de pena tem natureza declaratória" [8].

Sendo assim, afirma-se: há um decreto presumidamente válido, legítimo, constitucional e em vigor determinando a extinção da punibilidade, portanto, fulminando a pretensão punitiva estatal em desfavor do deputado federal Daniel Silveira. E, se no tempo presente, essa é a situação jurídica, pode-se afirmar, taxativamente, que a ação penal carece de objeto, carreada por uma pretensão condenatória impossível e plenamente ineficaz, não justificando a imediata declaração de extinção da punibilidade ou, no mínimo, a suspensão do feito até que as questões aventadas nas ADPFs sejam superadas.

Portanto, data venia, não poderia o eminente relator postergar a apreciação do pedido de reconhecimento da extinção da punibilidade e aplicar medidas cautelares, inclusive com a imposição de multa em razão do seu descumprimento posterior à publicação de decreto presumidamente constitucional. Ou o magistrado deveria enfrentar o pedido defensivo, ainda que para negá-lo (fundamentadamente) ou, ao postergar a análise, diferisse todo e qualquer andamento relativo à ação penal até efetivo julgamento das ADPFs.

Ao decidir postergar a análise de uma questão de ordem pública (extinção da punibilidade) o ministro relator, data maxima venia, incorre em erro e perpetua a manutenção das medidas cautelares em uma ação penal, no tempo presente, sem objeto, sem interesse de agir e, consequentemente, sem justa causa.

Portanto, considerando (1) que há decreto presidencial válido e em vigor no tempo presente extinguindo a punibilidade do Agravante em razão da concessão de graça (artigo 107, inciso II e (2) que o relator postergou, incorretamente, a análise de questão preliminar relativa ao pedido de declaração de extinção da punibilidade, afirmando existir pendência de julgamento das ADPFs 964, 965, 966 e 967, deve ser declarada extinta a punibilidade em razão da graça concedida e, por conseguinte, seja reconhecida a ineficácia de todas as medidas cautelares decretadas nos presentes autos, inclusive a sanção pecuniária contida na decisão já agravada.

Em conclusão, à pergunta constante no título de presente texto "Pode Supremo Tribunal Federal postergar a aplicação do decreto de indulto?" cabe apenas uma resposta: não.


[1] "A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os andantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem" FERNANDES, Bernardo Gonçalves; Jus Podivm; 12ª ed. 2020; p. 661.

[2] Comentários a Constituição do Brasil — Bastos, Celso Ribeiro. Martins, Ives Gandra — Volume 4, Tomo II – 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2002, pg. 281

[3] FERNANDES, Bernardo Gonçalves; Jus Podivm; 12ª ed. 2020; p. 1438.

[4] STF, decisão monocrática, RHC 167.854/SC, rel. Ministra ROSA WEBER, julgado em 2/12/2020, DJe 4/12/2020) (destaca-se)

[5] (STF, Tribunal Pleno, ADI 5.874, relator(a): ROBERTO BARROSO, relator(a) p/ acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 9/5/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-265 DIVULG 4/112020 PUBLIC 5/11/2020).

[6] SENADO FEDERAL. Diretoria de Informação Legislativa. Revista de Informação Legislativa – Código Penal. v.6, n.24 (out/dez 1969).

[7] STF, 2ª Turma, HC 114.664, relator(a): TEORI ZAVASCKI, julgado em 5/5/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-093 DIVULG 19/5/2015 PUBLIC 20/5/2015

[8] STJ, 5ª TURMA, HC 486.272/SP, rel. ministro JOEL ILAN PACIORNIK, julgado em 4/6/2019, DJe 17/6/2019

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!