Limite Penal

Quem avalia a fiabilidade do reconhecimento de pessoas?

Autor

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

13 de maio de 2022, 16h58

No último texto desta coluna, em mais uma importante abordagem sobre o reconhecimento de pessoas, Janaina Matida trouxe à discussão o caso Perry vs. New Hampshire (2012) no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos manteve condenação fundada em reconhecimento realizado de forma manifestamente irregular. Por meio do voto da Justice Ruth Ginsburg, a Corte declarou que a cláusula do devido processo legal, inscrita na 14ª Emenda à Constituição norte-americana, não pressupõe uma análise prévia da fiabilidade de um reconhecimento realizado em circunstâncias sugestivas se estas não decorrerem de uma má conduta dos agentes policiais. O reconhecimento em questão se realizou por meio do chamado show up, em que apenas um suspeito é colocado diante da testemunha.

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De forma acertada, Janaina destaca que a Suprema Corte perdeu a oportunidade de avançar no sentido da redução do risco de condenações injustas, além de ter indiretamente contribuído para a irregular atuação policial na medida em que deixou de tomar uma posição mais incisiva contra a admissão de reconhecimentos claramente sugestivos.[1]

No entanto, o julgado em questão se mostra interessante também sob outro ponto de vista. Paralelamente à perspectiva do reconhecimento pessoal, a fundamentação expressa no voto de Ginsburg coloca em evidência aspectos fundamentais da dinâmica adversarial e do desenho institucional próprio do sistema de justiça criminal norte-americano, os quais foram determinantes para a decisão adotada. Essencialmente, pode-se apontar dois aspectos que parecem primordiais. De um lado, as razões que orientam as regras de exclusão de provas frente à interação entre os papeis do juiz e jurados, cabendo ao primeiro o exercício de um controle sobre a admissibilidade da prova passível de ser levada ao conhecimento dos segundos, a quem cabe estabelecer sua credibilidade e fiabilidade. De outro, as salvaguardas presentes na dinâmica adversarial projetadas para aprimorar o juízo exercido pelos jurados sobre as provas que superaram o filtro de admissibilidade.

É nesse sentido que a coluna de hoje dá continuidade à análise do caso Perry vs. New Hampshire a fim de discutir as repercussões dessa configuração processual nas decisões sobre os fatos [2].

No âmbito do processo perante o júri segundo a dinâmica anglo-americana, a função de gatekeeper é uma das mais relevantes desenvolvidas pelo juiz em relação aos jurados, no sentido de filtrar o material probatório passível de ser submetido ao seu conhecimento. Seja pelas regras de exclusão de provas justificadas pelo escopo de controlar a correção dos raciocínios inferenciais dos julgadores leigos; seja pelas que encontram seu fundamento na proteção de interesses extraprocessuais, é papel do juiz evitar que esses elementos cheguem ao conhecimento dos jurados enquanto ainda não determinada sua admissibilidade. A ideia é assegurar que o júri decida a partir de uma base informativa segura e confiável. Deste modo, com fundamento nos critérios determinados pela lei, é papel do magistrado realizar esse juízo de admissibilidade, enquanto ao júri recai tipicamente a verificação de sua fiabilidade, conforme ressaltou Ginsburg em seu voto condutor.

A alegação submetida à análise da Suprema Corte no caso Perry se refere a suposta violação à cláusula do devido processo legal, na medida em que admitido um reconhecimento pessoal tendencioso e realizado sem a observância de qualquer formalidade. O recorrente sustentou que a admissão de tal prova seria injusta e prejudicial, eis que carente de fiabilidade por seu caráter manifestamente sugestivo.

No entanto, a Corte considerou que a cláusula do devido processo legal somente permitiria a inadmissão do reconhecimento pessoal realizado de forma sugestiva se esse desvio pudesse ser atribuído a uma má conduta policial. Em outras palavras, o que está em questão no caso é se a cláusula do devido processo legal determina que um juiz se antecipe em relação ao júri na verificação da fiabilidade de um reconhecimento pessoal potencialmente sugestivo quando esta falha não tenha decorrido de conduta imprópria da polícia.

E o entendimento adotado pela Suprema Corte foi no sentido negativo, o que reforçou a perspectiva de que o tribunal não deve realizar um juízo prévio sobre a fiabilidade dessa prova no momento da decisão sobre sua admissibilidade — tal papel deve ser exercido pelos jurados.

Conforme explica Ginsburg, as hipóteses de exclusão fundadas na cláusula do devido processo miram a atuação do Estado e se dirigem a evitar que a polícia manipule os procedimentos de identificação. O propósito dessa tendência à inadmissibilidade processual, como explica Estrampes, é o de sancionar mais eficazmente a conduta ilícita dos órgãos policiais na atividade investigatória, com vista a dissuadi-los de tais práticas – o que se compreende como deterrent effect, e não, propriamente, o de expressar uma tutela mais efetiva dos direitos violados. Daí o motivo de, no âmbito do citado ordenamento, não se estender a inadmissibilidade para as provas obtidas por atos ilícitos de particulares (caso Burdeau vs. McDowell, 1921) ou para quando se entender que a polícia tenha atuado de boa-fé (good faith exception).[3] Inclusive, como destaca Badaró, é possível identificar um movimento cada vez mais intenso no sentido de restringir o âmbito de aplicação das regras de exclusão probatória nesse contexto.[4]

Por outro lado, a inadmissibilidade processual da prova ilícita compreendida no âmbito dos sistemas romano-germânicos, embora mais recente,[5] ostenta finalidade distinta, orientada por um sentido ético de efetivação da tutela de tais direitos. Seu fundamento decorre da própria consagração constitucional desses valores fundamentais que aquelas pretendem proteger, seja em face das ingerências perpetuadas por agentes públicos, seja por particulares[6]. Nessa perspectiva, a licitude da prova, em sentido amplo, forma parte do conteúdo nuclear do direito à presunção de inocência, cuja desconstituição exige prova incriminatória suficiente apta a ser racionalmente valorada e que tenha sido produzida com o respeito a todas as garantias constitucionais e processuais. A proibição de valoração das provas ilícitas deriva, portanto, da consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental.[7]

De todo modo, ainda que se apoie na perspectiva de condicionar o propósito da cláusula do devido processo ao escopo do deterrent effect, a conclusão a que se pode chegar é que a negativa de se reconhecer a irregularidade da conduta policial neste caso, ainda que movida por negligência — por não terem os agentes policiais tomado as cautelas necessárias para que o reconhecimento se realizasse sob parâmetros adequados — contribuiu justamente para o incremento da má conduta que se deseja evitar.

Pois bem. De outra sorte, se não cabe ao magistrado um juízo prévio sobre a fiabilidade do reconhecimento de pessoas já tido como sugestivo no momento de sua admissão, importa analisar a partir do caso Perry quais outras garantias ou mecanismos são oferecidos pelo sistema para assegurar uma proteção contra condenações injustas fundadas em falsos reconhecimentos. Como observou a Corte, quando nenhuma atividade imprópria dos agentes da persecução for identificada, deve-se apoiar nas salvaguardas geralmente projetadas no contexto da dinâmica adversarial com o intuito de assegurar um juízo adequado pelos jurados.

Dentre as ferramentas disponíveis, destaca-se, por exemplo, a prerrogativa de explorar perante os jurados a fragilidade de um reconhecimento em particular expondo as suas falhas no contexto de uma atuação vigorosa no momento do cross-examination, o que pode ser conjugado com a oportunidade de trazer à análise do júri na ocasião dos argumentos iniciais e finais as discussões sobre a baixa fiabilidade desse meio de prova. Por outro lado, Ginsburg aponta que em algumas cortes estaduais admite-se que as partes se valham de experts para discorrerem sobre a fragilidade dos reconhecimentos e os perigos dos falsos positivos. Ainda, como um traço marcante daquela cultura, é determinante para uma decisão tida por justa a circunstância de que os jurados tenham sido adequadamente instruídos pelo juiz sobre as questões de direito aplicáveis[8] — em cujo contexto se inserem aquelas que informam o júri sobre as cautelas que devem ter ao valorar a prova de reconhecimento, no sentido de lhes advertir para que não atribuam peso indevido a reconhecimentos de confiabilidade questionável.

A conclusão final da Suprema Corte no caso Perry a respeito do caso levou em consideração a verificação de se o conjunto informativo disponível ao júri — em cujo contexto a prova de reconhecimento se encontrava inserida — fora adequado para proporcionar o alcance de uma decisão racional. Conforme o voto condutor de Ginsburg:

"Durante sua declaração de abertura, o advogado de Perry alertou o júri sobre a vulnerabilidade do reconhecimento realizado por Blandon. (…) Enquanto interrogava Blandon e o oficial Clay, o advogado constantemente trazia à tona as fraquezas do reconhecimento. Ele destacou: (1) a distância significativa entre a janela de Blandon e o estacionamento; (2) o adiantado da hora; (3) a van que obstruía parcialmente a visão; (4) A concessão de Blandon de que ela estava 'tão assustada que realmente não prestou atenção" ao que Perry estava vestindo; (5) incapacidade de Blandon de descrever as características faciais de Perry ou outras marcas de identificação; (6) o fracasso de Blandon em selecionar Perry em um conjunto de fotos; e (7) a posição de Perry ao lado de um policial uniformizado e armado no momento em que Blandon o apontou.
Após as alegações finais, o juiz presidente leu
ao júri uma
longa instrução sobre a prova de reconhecimento pessoal e os fatores que o júri deve considerar ao avaliá-la. O tribunal também instruiu o júri de que a culpa do réu deve ser provada além de qualquer dúvida razoável, e advertiu especificamente que 'uma das coisas que o Estado deve provar [além de uma dúvida razoável] é a identificação do réu como a pessoa que cometeu o delito'.
Dadas as salvaguardas geralmente aplicáveis em julgamentos criminais, proteções que foram utilizadas pela defesa no caso de Perry, sustentamos que o reconhecimento realizado por Blandon, sem uma avaliação judicial preliminar de sua confiabilidade, não tornou o julgamento de Perry fundamentalmente injusto."

Como se verifica a partir da dinâmica exposta, enquanto no sistema adversarial é possível identificar uma clara separação entre os planos da admissibilidade da prova e de sua valoração, os quais se encontram a cargo de sujeitos distintos, no sistema de tradição romano-germânica esses planos se confundem por restarem ambos sob o encargo de um juiz. Daí porque aquilo que é considerado, por vezes, uma questão de admissibilidade probatória na common law, se consubstancia em uma questão de força probante no contexto da civil law, a ser analisada no momento da valoração da prova[9]. Ainda, enquanto na dinâmica do júri da common law o juiz exerce um papel de paternalismo diante dos jurados, a fim de selecionar e avaliar as provas que podem ser submetidas à sua apreciação, no juiz profissional da civil law é depositada grande confiança em sua capacidade de desconsiderar provas suspeitas e de baixa fiabilidade. A expectativa de uma imunidade a esses efeitos fica evidente pela inexistência de paralelo à classe de limitações probatórias anglo-americanas típicas, voltadas para estabelecer critérios de admissibilidade.[10]

Uma análise mais apurada sobre as vantagens e desvantagens de cada um dos modelos sob o aspecto epistêmico é iniciativa cuja complexidade não é comportada por estas breves linhas.

No entanto, após a análise dos aspectos estruturais relevantes ao caso Perry vs. New Hampshire, especialmente aqueles destinados a assegurar um conjunto informativo confiável e a estabelecer um contexto de racionalidade ex ante[11] para subsidiar a decisão dos jurados, não poderia encerrar o texto sem deixar no ar uma reflexão. Se é cabível uma crítica àquela decisão, colocando em suspeita o potencial que a prova de reconhecimento exerceu sobre o convencimento dos jurados de modo a determinar a condenação de Perry a despeito da fragilidade manifesta decorrente das circunstâncias sugestivas do ato, o que se poderia esperar de uma decisão tomada por jurados brasileiros em um contexto processual em que não recebem instruções do juiz sobre o direito aplicável; não deliberam; e no qual pouco se preza por garantir as condições para uma cognição adequada?


[1] MATIDA, Janaina. Verdade dos fatos não negocia com opiniões: ainda o reconhecimento de pessoas. https://www.conjur.com.br/2022-mai-06/limite-penalverdade-fatos-nao-negocia-opinioes-ainda-reconhecimento-pessoas

[2] Análise semelhante relacionada à prova pericial já fora feita nesta coluna por Rachel Herdy e Juliana Melo Dias em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-05/limite-penal-devemos-admitir-provas-periciais-baixa-fiabilidade-epistemica 

[3] MIRANDA ESTRAMPES, Manuel. La prueba ilícita… cit., p. 134-135.

[4] BADARÓ, Gustavo. Epistemologia Judiciária e Prova Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 176.

[5] Como aduz Gomes Filho (GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 102).

[6] MIRANDA ESTRAMPES, Manuel. La prueba ilícita: la regla de exclusión probatoria y sus excepciones. In: Revista Catalana de Seguretat Pública. Mai, 2010, p. 136.

[7] MIRANDA ESTRAMPES, Manuel. El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en el processo penal. Barcelona: Bosch, 2004, p. 88.

[8] Tema já bastante abordado em textos anteriores desta coluna. Ver, por exemplo: https://www.conjur.com.br/2022-mar-25/limite-penal-tribunal-juri-valor-epistemico-empatia

[9] MALAN, Diogo Rudge. Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 39.

[10] Ver, sobre o tema: DAMAŠKA, Mirjan. Evidentiary Barriers to Conviction and Two Models of Criminal Procedure: A Comparative Study. In: University of Pennsylvania Law Review, v. 121, 1972-1973.

Autores

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

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