Opinião

Fraude nas eleições: caso Pescaria Brava e a jurisprudência do TSE

Autores

  • Karina Kufa

    é sócia da Kufa Advocacia palestrante e autora de diversos livros.

  • Pierre Vanderlinde

    é advogado graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina pós-graduado em Direito Eleitoral (Universidade Anhanguera — UNIDERP) pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos) pós-graduado em Licitações e Contratos pela Escola Mineira de Direito membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e vice-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SC.

13 de maio de 2022, 6h09

A eleição realizada no pacato município catarinense de Pescaria Brava, em outubro de 2016, rende, até os dias atuais, comentários e especulações das mais diversas, como demonstra a reportagem do jornal O Globo, de 4 de maio de 2022[2].

É que após a devida apuração e processamento dos votos pela Justiça Eleitoral, o prefeito que se sagrou vitorioso, foi eleito com apenas um voto de vantagem em relação ao segundo colocado.

Para apimentar ainda mais o cenário político local, sobreveio a informação de que uma das eleitoras votantes havia falecido há pelo menos sete anos antes do pleito. Diante do sigilo do voto, não era possível saber em quem a falecida, ou melhor, a pessoa que se passou por ela, havia escolhido para comandar o paço municipal.

Fato é que diante da inconsistência do cadastro eleitoral, a finada eleitora ainda constava no rol dos aptos a votar e, portanto, o resultado da eleição estava viciado: ou seriam dois votos de diferença, ou teria havido um empate. O imbróglio, precisava ser resolvido pela Justiça Eleitoral.

O que deveria ser feito: Anular toda a eleição municipal? Anular os votos somente da seção em que ocorreu a fraude? Manter o resultado da eleição? Renovar a votação daquela seção?

No caso, até o término da votação (emissão do boletim de urna) nenhum mesário, fiscal, delegado, candidato ou eleitor impugnou tempestivamente a identidade da pessoa que votou em nome da falecida. O processamento dos votos ocorreu logo após o término da eleição, ou seja, no dia 2/10/2016 às 19h20m53[3].

No entanto, algum caminho precisava ser trilhado. Como não se tratava de uma fraude generalizada e não havia relatos de problemas nas urnas eletrônicas ou em outras seções eleitorais, eventual decisão se concentrava em resolver o embaraço ocorrido na 90ª Sessão Eleitoral.

Diante da situação posta, o Juízo Eleitoral local determinou a instauração de inquérito policial eleitoral para apuração das responsabilidades e, a Junta Eleitoral, decretou a anulação da votação ocorrida na seção em que houve a fraude, com base no artigo 221, III, "c", do Código Eleitoral.

Como, após a anulação dos votos, o resultado do pleito se manteve inalterado, inclusive aumentando a diferença de votos entre os candidatos (de 1 para 76), não foi renovada a votação naquela seção, afastando-se a aplicação do artigo 187[4] do Código Eleitoral.

O assunto, contudo, foi parar no Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina. A Corte Regional, à unanimidade, entendeu:

  1. Manter a decisão da 1ª Junta Eleitoral/Laguna, que anulou a votação da 90ª Seção do Município de Pescaria Brava, na forma do artigo 221, inciso III, alínea "c", do Código Eleitoral, diante da constatação de que terceiro haveria votado por eleitor já falecido lá inscrito (fl. 23);
  2. Manter a decisão do Juízo da 20ª Zona Eleitoral/Laguna, a qual indeferiu o pedido de designação de nova votação na 90ª Seção Eleitoral, com base no artigo 187 do Código Eleitoral, "por total insubsistência das alegações invocadas" (fl. 80), pois diante da anulação da referida urna e retotalização dos votos verificou-se que o resultado do pleito restou inalterado.

O Acórdão regional restou assim ementado:

ELEIÇÕES 2016 – RECURSO ELEITORAL – VOTAÇÃO PELO SISTEMA ELETRÔNICO – ALEGAÇÃO DE FRAUDE NA VOTAÇÃO – RETOTALIZAÇÃO DOS VOTOS – PEDIDO DE ANULAÇÃO INTEGRAL DAS ELEIÇÕES MAJORITÁRIAS – ART. 222 DO CÓDIGO ELEITORAL – AUSÊNCIA DE LASTRO PROBATÓRIO – INDEFERIMENTO – RENOVAÇÃO DA VOTAÇÃO EM SEÇÃO ELEITORAL ANULADA – ART. 187 DO CÓDIGO ELEITORAL – RESULTADO DO PLEITO INALTERADO – INDEFERIMENTO. (TRE-SC – APURACOES DE ELEICOES nº 27989, Acórdão nº 32201 de 30/11/2016, Publicação: DJE – Diário de JE, Tomo 216, Data 07/12/2016, Página 2-3)

O Tribunal Regional Eleitoral concluiu ser "acertada a decisão da Junta Apuradora, ao declarar especificamente a nulidade da urna questionada, em não havendo a necessária certeza de que todo o processo eleitoral tenha sido maculado, sendo inviável presumir-se a ocorrência de fraude com base em suspeitas não confirmadas, seguindo-se, aliás, orientação do Tribunal Superior Eleitoral que, em situação similar", e, com relação a aplicabilidade do art. 187 do Código Eleitoral, por unanimidade, acolheram o voto condutor, do qual extrai-se:

"[…] o resultado da retotalização em Pescaria Brava não teve o condão de interferir no cálculo dos coeficientes observados para determinar os candidatos vitoriosos nas eleições proporcionais, muito menos nas majoritárias, como alegado.
O quadro de eleitos permaneceu inalterado, como atestam os boletins coligidos às fls. 95-111, mantendo-se o candidato Deyvisonn da Silva de Souza como primeiro colocado, constatada tão só a majoração de 75 votos em relação ao seu adversário, e a mesma classificação dos vereadores, inclusive José Eraldo Francisco do PSDB.
Assim, ao contrário do que afirmam os recorrentes, não há que incidir a regra do artigo 187 do Código Eleitoral somente porque constatado o aumento no cômputo dos votos favoráveis ao então eleito.
Como muito bem exposto pelo Juiz sentenciante, se o inverso sucedesse, seria aplicável a referida norma […]”

A Procuradoria Regional Eleitoral, posto ocupado pelo Ministério Público Federal, bem delineou o assunto em seu parecer:

Não obstante a gravidade da situação ocorrida em Pescaria Brava, onde comprovou-se que realmente houve o registro do voto de eleitora falecida há anos, a providência tomada pela Junta Eleitoral local foi acertada, ao anular apenas a votação ocorrida na seção eleitoral apontada na inicial — a 90ª —, diante da ausência de prova material a atestar a ocorrência de fraude a desvirtuar deliberadamente a vontade do eleitorado local, aventada pelos recorrentes, que por óbvio pretendem beneficiar-se com a declaração de nulidade do pleito majoritário.

Ainda, a Corte Regional, que está próxima aos fatos e a realidade local,  demonstrou grande preocupação em não conseguir garantir a liberdade do voto em caso de renovação do pleito na Seção anulada:

Demais disso, a designação de eleições suplementares neste caso seria atentatória aos pilares da democracia e da liberdade do voto, pois, com o reduzido contingente de eleitores, além de possibilitar a fácil identificação, permitiria ainda a ocorrência de negociações espúrias, em detrimento das instituições de direito e da lisura do próprio certame.
O sigilo do voto deve ser preservado acima de tudo, não só por constituir uma garantia constitucional, mas sobretudo por salvaguardar o eleitor, ao conferir-lhe a ampla liberdade na escolha de seus representantes políticos.
A soberania do voto, para ser desconsiderada, há que estar claramente, e não presumivelmente, ofendida (fls. 160-162).

No mesmo sentido manifestou-se o Parquet, consignando que "não há espaço, por conseguinte, para a renovação das eleições na seção eleitoral em questão, providência que, aliás, caso ocorresse, poderia comprometer a lisura de toda a eleição no referido município, viciando o seu resultado, já que a totalização das demais urnas já é conhecida do eleitorado e dos candidatos envolvidos".

O candidato derrotado, contudo, insistiu perante o Tribunal Superior Eleitoral[5] para a renovação da votação da seção eleitoral anulada, postulando pela aplicação do art. 187[6] do Código Eleitoral.

Nada obstante, o Tribunal Superior Eleitoral, decidiu por não renovar o pleito apenas na sessão em que a fraude ocorreu, visto que os poucos eleitores daquela sessão se tornariam "supercidadãos" com a tarefa de escolher o próximo Chefe do Poder Executivo. Tal poderio, entregue nas mãos de pouco mais de 200 munícipes facilmente identificáveis, afetaria de sobremaneira o voto livre, secreto e consciente. Vejamos a ementa do julgado:

RECURSO ESPECIAL. FRAUDE EM URNA. ANULAÇÃO DE VOTAÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 187 DO CÓDIGO ELEITORAL.INVIABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE CONCRETA COM A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.1. O Tribunal de origem confirmou a anulação dos votos oriundos da 90ª Seção Eleitoral do Município de Pescaria Brava/SC,com fundamento no art. 221, III, c, do Código Eleitoral, ante a constatação de que terceiro teria votado por eleitor falecido, mas não determinou a realização de eleições suplementares por considerar que a retotalização dos votos não acarretou a alteração da ordem de classificação dos candidatos ao pleito majoritário nem modificou a representação de qualquer partido político nas eleições proporcionais.2. O número de votos obtidos pelos candidatos na seção anulada foi suficiente para a modificação do resultado da eleição majoritária no município a qual foi decidida por apenas um voto de diferença , o que, em tese, conduziria à aplicação do art.187 do Código Eleitoral.3. A realização de eleições suplementares no caso, em apenas uma seção da circunscrição eleitoral e após ultimada a apuração provisória das demais urnas, estaria em descompasso com preceitos constitucionais alusivos ao voto, notadamente o seu caráter igualitário e sigiloso, bem transformaria os respectivos eleitores em supercidadãos. Incompatibilidade constitucional in concreto que afasta a incidência do artigo187 do Código Eleitoral.Recurso especial a que se nega provimento. Ação cautelar julgada improcedente. (TSE – Recurso Especial Eleitoral nº 27989, Acórdão, Relator(a) Min. Admar Gonzaga, Publicação:  DJE – Diário da justiça eletrônica, Data 27/11/2017)

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes destacou:

No caso concreto, os eleitores da 90a Seção de Pescaria Brava/SC voltarão às urnas com plena ciência do resultado provisório da eleição para prefeito e vice-prefeito do município, o que, além de mitigar o caráter livre do voto, que exige simultaneidade na realização das eleições, também resvala em uma possível relativização da igualdade do voto quanto ao resultado, pois os eleitores identificados daquela seção terão um poder de decisão, antes do pleito, que os demais eleitores não tiveram quando se deslocaram para o cumprimento da obrigação eleitoral de votar nas Eleições Municipais de 2016.
[…]
Ocorre que, considerando os limites objetivos do recurso, que pede a realização de eÍeição apenas em uma seção, entendo que a exclusão de alguns eleitores de uma seção (universalidade do voto) é uma solução menos ruim que fazer dos eleitores da 90a Seção de Pescaria Brava/SC verdadeiros "Super Soberanos", que voltariam às urnas cientes do resultado provisório do pleito, em detrimento do caráter livre e igual do voto.

Ao passo que não seria prudente a renovação da eleição em apenas uma sessão eleitoral, também não havia espaço para se falar em renovação total do pleito, pois os votos anulados representavam apenas 2,72%[7] dos votos totais e 2,39% dos eleitores aptos a votar.

A renovação das eleições em sua integralidade tem lugar sempre que tenha ocorrido a anulação de 50% (cinquenta por cento) dos votos válidos nos termos do artigo 224 do Código Eleitoral, o que como visto não sucedeu em Pescaria Brava, ou quando o candidato eleito ao Executivo for cassado pela Justiça Eleitoral.

Isso não quer dizer que caso haja uma fraude deliberada em alguma eleição, que comprometa o resultado do pleito e a vontade do eleitorado, com anulação de mais de 50% dos votos, que a eleição não deva ser renovada. Pelo contrário, nestes casos o Código Eleitoral prevê como regra a renovação do pleito, e deve ser aplicada pela Justiça Eleitoral, caso a situação fática ocorra.

Assim, como no caso de Pescaria Brava houve a anulação pela Justiça Eleitoral de todos os votos efetivados na seção que demonstrou a irregularidade e não tendo notícia de fraude em outras seções, já que provavelmente a fraude se instaurou por conluio de mesários de uma única seção e candidato, nada mais haveria o que ser feito.

Renovar a eleição em apenas uma urna, daria superpoderes a um grupo pequeno e identificável de eleitores, e referendar esse pleito, seria abrir a oportunidade para que fraudadores, em caso de insucesso no resultado geral das eleições, pudessem vir a questionar o resultado das urnas que eles mesmos tenham efetivado um conluio ilegal.

Como a anulação da seção em questão não alterou o resultado do pleito, mas ao contrário, elevou a diferença do vencedor, o que é indício de que não seria ele o favorecido de votos da falecida ou eleitores ausentes, bem fez a Justiça Eleitoral de anular apenas onde foi identificada a fraude, mas não a eleição, já que o número de votos anulados foi inexpressivo. 

Cabe ressaltar, ao contrário do que mencionou a reportagem do O Globo, que a coautora deste artigo, a advogada Karina Kufa, jamais foi contra a anulação da votação em razão da ocorrência de fraude, e, nesse caso concreto, defendeu a razoabilidade, a segurança jurídica e a economicidade, já que, como bem detalhado, não se tratava o caso de uma fraude generalizada e a Justiça Eleitoral tomou as medidas adequadas para o problema ocorrido em uma única seção eleitoral.


[1] A defesa do candidato eleito foi feita em conjunto pelos advogados Pierre Vanderlinde (Vanderlinde & Jeremias Advogados) e Karina Kufa (Kufa Advocacia)

[2] aqui.

[3] aqui

[4] Art. 187. Verificando a Junta Apuradora que os votos das seções anuladas e daquelas cujos eleitores foram impedidos de votar, poderão alterar a representação de qualquer partido ou classificação de candidato eleito pelo princípio majoritário, nas eleições municipais, fará imediata comunicação do fato ao Tribunal Regional, que marcará, se for o caso, dia para a renovação da votação naquelas seções.
§ 1º Nas eleições suplementares municipais observar-se-á, no que couber, o disposto no Art. 201.
§ 2º Essas eleições serão realizadas perante novas mesas receptoras, nomeadas pelo juiz eleitoral, e apuradas pela própria Junta que, considerando os anteriores e os novos resultados, confirmará ou invalidará os diplomas que houver expedido.
§ 3º Havendo renovação de eleições para os cargos de prefeito e vice-prefeito, os diplomas somente serão expedidos depois de apuradas as eleições suplementares.
§ 4º Nas eleições suplementares, quando ser referirem a mandatos de representação proporcional, a votação e a apuração far-se-ão exclusivamente para as legendas registradas.

[5] RESP Nº 0000279-89.2016.6.24.0020

[6] Art. 187. Verificando a Junta Apuradora que os votos das seções anuladas e daquelas cujos eleitores foram impedidos de votar, poderão alterar a representação de qualquer partido ou classificação de candidato eleito pelo princípio majoritário, nas eleições municipais, fará imediata comunicação do fato ao Tribunal Regional, que marcará, se fôr o caso, dia para a renovação da votação naquelas seções.
§ 1º Nas eleições suplementares municipais observar-se-á, no que couber, o disposto no Art. 201.
§ 2º Essas eleições serão realizadas perante novas mesas receptoras, nomeadas pelo juiz eleitoral, e apuradas pela própria Junta que, considerando os anteriores e os novos resultados, confirmará ou invalidará os diplomas que houver expedido.
§ 3º Havendo renovação de eleições para os cargos de prefeito e vice-prefeito, os diplomas somente serão expedidos depois de apuradas as eleições suplementares.
§ 4º Nas eleições suplementares, quando ser referirem a mandatos de representação proporcional, a votação e a apuração far-se-ão exclusivamente para as legendas registradas.

[7] Eleitores Aptos = 7.655. Votos válidos = 6.528. Votos anulados Seção 90ª = 183. aqui.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!