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Cremoneze e Aguiar: Responsabilidade por danos de incêndio

13 de maio de 2022, 18h06

Por Paulo Henrique Cremoneze, Márcio Sebastião Aguiar

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Sabem todos que não devem causar danos. E numa sociedade marcada pelos riscos compete a nós tomar os devidos cuidados para evitá-los. Tanto assim que, a cada dia que passa, se fala mais em direito a não ser lesado e em dever geral de não lesar. Não que isso seja um pensamento novo. Pelo contrário: é o legítimo recrudescimento de um antigo ideal.

Diz Bruno Miragem a respeito:
"Desde os romanos, é reconhecido um dever geral de não causar danos (neminem laedere). Essa ordem de abstenção geral fundamenta a responsabilidade civil. Pode haver situações em que a lesão decorre do ilícito, tanto quanto outras em que decorrem de fatos lícitos, hipótese em que o dever de indenizar terá por fundamento o sacrifício de determinado interesse, ainda que inexistente a ilicitude (artigo 188, II, do Código Civil).
O dever de não causar danos é dever de conduta, tendo por conteúdo uma abstenção. Define-se como proibição a que se interfira na esfera jurídica alheia de modo a prejudicar interesses juridicamente protegidos causando-lhes uma lesão antijurídica. Nesse sentido, bastará a violação do preceito alterum non laedere para que se constitua a obrigação de indenizar, sendo desnecessária a remissão a outras normas do ordenamento.
Nesse contexto, observe-se que a proteção da pessoa humana e os interesses que a cercam, de natureza patrimonial e extrapatrimonial, concentram a disciplina da responsabilidade civil"
[1].

Sobre o tema, leciona o desembargador Francisco Loureiro que "a responsabilidade decorrente do direito de vizinhança, para gerar o dever de cessar a interferência prejudicial ou de indenizar, é objetiva e independe de culpa ou dolo do proprietário ou possuidor" [2] (LOUREIRO, Francisco Eduardo, "Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência", 6ª edição, Manole, p. 1288).

Esse dever de não lesar, que em quase tudo se confunde com o direito de não ser vítima de dano, tem muitos aspectos e se aplica aos mais diferentes campos do Direito.

Quanto ao tema da responsabilidade indireta (objetiva) do proprietário enquanto guarda da coisa, vale mencionar o que preleciona Sergio Cavalieri Filho:

"(…) não se pode responsabilizar arbitrária e indiscriminadamente qualquer pessoa, mas somente aquela que tem relação de fato com a coisa, isto é, que tem um certo poder sobre ela… Cabe, normalmente, ao proprietário o poder de direção sobre a coisa, pelo que é o guarda presuntivo da coisa, (…) parece-nos correto concluir que pelo Código Civil de 2002 não há mais dúvida de que a responsabilidade por fato das coisas é objetiva, tal como no caso de dano causado por animais e pela ruína do edifício…
Responsável repita-se é o guardião da coisa, aquele que tem o poder de comando ou de direção sobre ela; responsabilidade, essa, que presuntivamente cabe ao dono da coisa, e que só pode ser afastada mediante prova de que, no momento do fato, não mais detinha seu comando ou direção, quer porque a transferiu jurídica e validamente, quer por motivo de força maior
" [3].

Interessam-nos, aqui, os deveres do dono de bem imóvel, o direito de vizinhança e a responsabilidade civil por danos derivados de incêndios. E o interesse decorre de situação especialmente importante para o Direito dos Seguros. Explicamos: não raro, os seguradores indenizam seus segurados, vítimas de danos e prejuízos de incêndios, mas não conseguem buscar o ressarcimento. Em muitos casos a prova de responsabilidade não existe e, noutros, a Justiça ainda é tímida em imputá-la a donos de imóveis onde os incêndios se deflagraram.

Entendemos que há uma necessidade urgente de repensar o assunto e, com ele, a responsabilização (objetiva, mesmo) dos proprietários desses mesmos imóveis. Com isso, situações desconfortáveis, como as experimentadas pelo mercado segurador, talvez sejam corrigidas e os devidos cuidados, abraçados por quem de direito.

Afinal, não é justo, tampouco saudável, que o colégio de segurados arque com os prejuízos de incêndios sendo certa a existência de responsáveis, senão de fato, ao menos de direito. Além disso, ousamos afirmar, a função social da propriedade, prevista na Constituição Federal, não é mero dogma político-ideológico, fundado em suposta visão redistributiva de riquezas, mas realidade jurídica a ser concretamente aplicada no mundo dos fatos.

E, sendo assim, entende-se também por função social da propriedade os mais rigorosos cuidados para que danos sejam evitados aos outros. Daí o entendimento de que o dono tem de arcar, por um incêndio surgido na propriedade que mantém, com os prejuízos que outros, que não têm nada a ver com a história, acabaram tendo de suportar. Esta responsabilização há de ser, sim, objetiva, competindo-lhe o direito de regresso caso a culpa de outrem tenha sido identificada no episódio.

Essa objetiva imputação ao proprietário do bem imóvel onde se iniciou o incêndio nasce da responsabilidade civil pelo fato da coisa. Fala-se nessa modalidade de imputação com fundamento legal no artigo 1.277 do Código Civil, ainda que por engenharia reversa.

"Artigo 1.277 O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando- se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança."

No amplo campo da responsabilidade civil, distingue-se a responsabilidade direta, ou por ato próprio, de um lado, da responsabilidade civil indireta, ou complexa, de outro. E com fundamento nesse artigo, ainda que por inversão, levando-se em conta o preceito constitucional da função social da propriedade, que se defende que a responsabilidade pelos danos experimentados pela vítima, vizinha do bem imóvel onde o incêndio se iniciou, independe da comprovação da conduta culposa ativa ou omissiva do proprietário.

A propósito do dano ao patrimônio da vítima que o incêndio no imóvel vizinho provocou, a responsabilidade decorre da simples violação do dever geral de não lesar e, ainda mais especificamente, do direito de vizinhança, de que trata o artigo 1.277. Esse princípio-regra confere ao possuidor o direito de fazer cessar interferências danosas que tenham origem na propriedade vizinha. No caso de incêndio, objeto do nosso breve e modesto estudo, ele impõe ao proprietário ou possuidor do bem imóvel epicentro de incêndio a obrigação de indenizar seu vizinho, vítima.

Há então o consórcio de figuras legais e/ou princípios jurídicos: dever geral de não lesar, direito de não ser sofrer danos, função social da propriedade, direito de vizinhança e, claro, a responsabilidade civil pelo fato da coisa. Tudo isso se agrava quando o interessado não é nem a vítima original do dano, mas o segurador sub-rogado. Isso porque o pagamento de indenização de seguro à vítima do dano protegida por apólice dá ao caso uma dimensão nova e especial.

Essa dimensão une princípios e regras de Direito Civil aos de Direito dos Seguros e coloca em cena um protagonista coletivo: o mútuo. Por força do princípio do mutualismo, talvez o mais importante do contrato de seguro, a busca do ressarcimento em regresso contra o causador do dano é um direito dos segurados e um dever do segurador.

Num caso com acervo probatório indicando a origem do sinistro, sem qualquer fortuidade externa, e os imensos estragos que o incêndio fez ao vizinho (muitas vezes, também segurado), concebe-se perfeitamente, como pressuposto necessário para o nascedouro das chamas, a má utilização da propriedade e, portanto, um atentado contra o direito de vizinhança, contra os direitos de outrem. Fala-se da vítima da indiligência de seu vizinho.

Pelo espectro do direito de vizinhança, é possível afirmar que, pelo mau uso presumido da propriedade, sem o qual o incêndio não teria sido possível, o proprietário ou possuidor direto responde objetivamente, devendo ser comprovado apenas o nexo de causalidade.

O imputado é quem deverá, mediante inversão da carga dinâmica, provar a existência de eventual situação excludente da responsabilidade. Essa inversão de ônus não é vulgar casuísmo jurídico, porém ferramenta importante para a preservação de direitos e valores, os quais bailam da ampla defesa dos interesses da vítima (ou do segurador sub-rogado) para o sistema de proteção geral da sociedade.

O incêndio, não é ocioso dizer, é interferência prejudicial à segurança da propriedade vizinha, que não pode se ver injustificada e subitamente onerada pelo que as demais permitem que nelas aconteça, culminando, por analogia, na responsabilização objetiva prevista no artigo 938, do Código Civil [4]. O mesmo sentido se extrai do artigo 927 do Código Civil: Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Cabe-nos lembrar que o parágrafo único do citado artigo prevê a imputação objetiva de responsabilidade ao causador de dano que exerce atividade de risco.

Reiteramos que, num caso de incêndio em que o fogo se propaga para o imóvel vizinho, a imputação da responsabilidade do proprietário (ou possuidor direto) do prédio no qual o evento foi iniciado decorre do próprio fato da coisa, do direito de vizinhança, incumbindo ao imputado afastá-la, mediante comprovação de caso fortuito (força maior), culpa exclusiva da vítima ou de terceiro (CPC, artigos 350 e 373, inciso II) [5], sendo que neste último caso ainda será possível se falar em responsabilização efetiva, garantindo-se o direito de regresso.

Esse entendimento encontra perfeita equivalência no Superior Tribunal de Justiça "notadamente porque aplicável a responsabilidade objetiva decorrente da violação de direitos de vizinhança, os quais coíbem o uso nocivo e lesivo da propriedade" [6].

A jurisprudência aponta para a responsabilização objetiva do estabelecimento contíguo ao bem imóvel danificado, fazendo-o com amparo, sobretudo, no direito de vizinhança, aliado aos preceitos da responsabilidade civil [7].

Por isso, sem receio algum, afirmamos que todo incêndio em bem imóvel, se não decorrer de fato da natureza, sempre terá por trás imprudência, imperícia ou ao menos a negligência do proprietário ou do possuidor direto, as quais, por lei presumidas, prescindem de comprovação pela vítima (muito menos pelo segurador sub-rogado).

Essa imputação, se reiteradamente aplicada pela Justiça, poderá transformar situações adversas e muito onerosas às vítimas e ao mercado segurador, contribuindo para a fortalecimento da economia, a proteção das pessoas e, ainda, ao menos isso se aspira em boa-fé, onda de condutas acautelatórias e de evitamento de danos, que é, em primeira e última análises, um profundo marco civilizatório.


[1] "Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 98.

[2] LOUREIRO, Francisco Eduardo, "Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência", 6ª ed., Manole, p. 1288).

[3] "Programa de Responsabilidade Civil", 9ª Ed., São Paulo, Atlas, 2010, pp. 213/220 grifou-se).

[4] Artigo 1.938. Nos legados com encargo, aplica-se ao legatário o disposto neste Código quanto às doações de igual natureza.

[5] Artigo 350. Se o réu alegar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, este será ouvido no prazo de 15 (quinze) dias, permitindo-lhe o juiz a produção de prova.

Artigo 373. O ônus da prova incumbe:

II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

[6] RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO (REsp 1.381.211/TO, rel. ministro MARCO BUZZI, 4ª Turma, DJe 19/9/2014)”

[7] (TJ-SP; APELAÇÃO CÍVEL 0000423-53.2014.8.26.0168; RELATOR (A): ANA LUCIA ROMANHOLE MARTUCCI; ÓRGÃO JULGADOR: 33ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO; FORO DE DRACENA – 2ª VARA; DATA DO JULGAMENTO: 15/2/2021; DATA DE REGISTRO: 15/2/2021)”

(TJ-SP; Apelação Cível 1095662-77.2014.8.26.0100; relator (a): Edgard Rosa; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 29ª Vara Cível; data do julgamento: 5/4/2018; Data de Registro: 6/4/2018)

(TJ-SP; Apelação Cível 1012941-19.2016.8.26.0320; relator(a): Luis Fernando Nishi; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro de Limeira – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/3/2022; Data de Registro: 17/3/2022)