Opinião

O cancelamento como instrumento do terceiro cúmplice

Autor

  • Marcelo Dias Freitas Oliveira

    é advogado empresarial parecerista pós-graduado em Advocacia Cível especialista em Políticas Públicas e Controle Externo e em Direito Tributário e sócio do escritório Batalha & Oliveira.

12 de maio de 2022, 21h15

Diz-se que o cancelamento, ou a "cultura do cancelamento", seria uma manifestação orgânica e natural de um repúdio coletivizado que, quando chega a um estágio mais avançado ou maturado, por meio de junção orgânica de pessoas, externa publicamente a ojeriza contra pessoa ou pessoas, por posicionamentos ideológicos ou condutas, públicos ou não, sendo possível que essa coletividade exija posturas agressivas, principalmente o "cancelamento" — em outras palavras, inadimplemento, resilição ou denúncia contratual — em detrimento do "cancelado".

Contudo, e como já nos posicionamos anteriormente, nos parece que é possível que haja conjunção entre interesses espúrios de terceiros para fazer com que contratos sinalagmáticos ou plúrimos, estabelecidos sob a égide da lei civil e perfeitos do ponto de vista do negócio jurídico sejam efetivamente desfeitos (no sentido genérico de desfazimento).

Ainda neste sentido, também já nos posicionamos pela possibilidade de existir ilícito civil dentro do contexto do "cancelamento" como acima descrito, vez que pode ser imbuído de dolo de alguns agentes inseridos no coletivo "cancelador".

Partindo de tais premissas, podemos tecer considerações quanto aos terceiros, como aqui tratados.

Portanto, necessário se faz excluir certos tipos de "terceiros" para o estudo em comento, como leciona Otávio Luiz Rodrigues Junior, amparando-se em Junqueira de Azevedo e Orlando Gomes, no sentido de que aqueles que possam ser afetados por efeitos jurídicos normais, ou seja, mesmo que afetados por fator de atribuição da eficácia mais extensa.

Diz o professor Rodrigues Junior que "(…) o contrato não se pode converter em fonte de direitos e obrigações para terceiros sem que estes consintam. O terceiro estaria colocado numa posição de indiferença aos contratos firmados por outras pessoas" [1]

Ou seja, tratamos de terceiros que não são contemplados ou alcançados por qualquer estipulação da vontade das partes, ou, em outras palavras, não são aqueles que estejam dentro da "res inter alios acta tertiis nec prodet, nec nocet", como o caso de terceiros contemplados em contratos “com pessoa a declarar” (artigos 467 a 471 CC/02) ou estipulação em favor de terceiros (artigos 436 a 438 do CC/02).

Em suma, os terceiros que poderiam utilizar o cancelamento como instrumento de desfazimento do contrato estipulado entre o "cancelado" e seu par sinalagmático, são aqueles terceiros que não aproveitam ou teriam prejuízo em relação aos efeitos do contrato.

Daí, percebe-se que este terceiro, apesar de ser razoável que não tenha conhecimento das cláusulas contratuais, possa ter ciência do seu conteúdo parcial ou da existência do mesmo.

Ora, em muitos dos casos em que ocorre o cancelamento de pessoas expostas publicamente existe um pedido, um pleito ou mesmo uma exigência de que o "cancelado" tenha contrato de trabalho ou emprego, ou que advenha verba existencial do instrumento, para que este "cancelado" tenha sua subsistência ameaçada e seus proventos diminuídos, como forma de uma punição à conduta ou posicionamento adotados por aquele.

O terceiro cúmplice é aquele alheio aos efeitos contratuais, mas que, por algum motivo fático, tem conhecimento da existência do contrato e possivelmente de seus termos, e ativamente trabalha para que o instrumento contratual não tenha fruição completa, ou seja, não seja adimplido ou até mesmo resilido.

Chama-se de cúmplice pois diz-se que o terceiro "seduz" um dos contratantes a se tornar inadimplente, como comenta Rodrigues Junior[2]: "O papel do terceiro, que atua nas sombras, de modo não-ostensivo, mas assegurando uma rede de proteção ao contraente seduzido, é que está a necessitar uma correta qualificação jurídica, o que se torna possível mediante o uso da doutrina do terceiro cúmplice(…)".

Arriscamos a ampliar tal possibilidade de assegurar que o inadimplente tenha essa tal rede de proteção, pois é visível que o terceiro também possa ser agente que mira o inadimplemento como forma de punição de um dos contratantes (cancelado), sem necessariamente garantir que o inadimplente tenha uma "proteção", e eventualmente achacando o inadimplente com outras condutas que possam ferir sua marca ou seu bom nome, seus contratos de fornecimento, sua clientela e assim por diante.

Portanto, seria um cúmplice em face da vítima, mas igualmente vitima o inadimplente, que se vê forçado a findar ou inadimplir contrato por pressão do terceiro. Obviamente que o inadimplente pode estar diante de um rompimento contratual que seja relativamente benéfico a si, pois o "cancelado" está publicamente rechaçado, pelo menos por tal coletividade "canceladora".

Esta mesma coletividade pode ser um conjunto de clientes seus, ou seja, clientes do inadimplente, e, assim, seria perfeita a subsunção da teoria do terceiro cúmplice pois haveria um ganho reputacional e midiático. Em outras palavras, premido pela circunstância e pressão de tal coletividade, o inadimplente rompe o vínculo contratual por tal motivo publicamente, disfarçando a real intenção de se beneficiar ou sucumbir à vontade do terceiro cúmplice, seja qual o motivo finalístico do terceiro.

A visualização é mais fácil exemplificando-se: "A" politicamente exposto publica pensamentos seus na internet, sendo massacrado por uma coletividade de canceladores "CC", sendo que ardilosamente se insere ou dela se utiliza o Terceiro "T", para fins de ver "A" cancelado — ou seja, sem renda ou com ela diminuída — e para chegar ao seu objetivo, seduz um contratante "B" para que este seja inadimplente em face de "A" (fazendo-o sofrer o cancelamento), seja por pressão ou achaque de um cancelamento em detrimento de "B" ou seja por vantagens escusas ou subterfugiadas por cancelar "A" (ganho midiático ou reputacional).

Isso se viu publicamente, em termos, em recentes campanhas de cancelamento em plataforma digital de streaming de música, em que diversos artistas ameaçaram se retirar da plataforma, ou seja, ameaçaram resilir contratos firmados, caso a plataforma não resilisse contrato em detrimento de uma pessoa que publicara posição ideológica contrária em podcast.

Então se vislumbra que existe a real possibilidade do terceiro cúmplice se utilizar da dita "cultura do cancelamento", ou de uma coletividade que faz pedidos de cancelamentos, para ter seus interesses velados alcançados, seduzindo, ou pela pressão ou pelos ganhos, o contratante que inadimplirá ou resilirá em detrimento do cancelado.

Ora, é possível visualizar com certa facilidade que competidores dos cancelados, por exemplo, possam se utilizar de tal ardil para tomarem fornecedores ou contratados, ou mesmo infligir dano aos rivais.

Ainda, vendetas particulares poderiam vir à fruição por meio deste expediente ardiloso, sendo possível, nos dias atuais, que os inadimplentes prefiram resilir a enfrentar as consequências midiáticas ou reputacionais de não sucumbir ao cancelamento exigido pela coletividade, perdendo, certamente a credibilidade para com esta mesma coletividade canceladora.

Desta forma, poder-se-ia responsabilizar tal terceiro que ativamente opera pelo inadimplemento, pela quebra, pelo cancelamento de instrumento contratual utilizando como cortina de fumaça essa "coletividade canceladora", nos limites da responsabilidade aquiliana. A depender da força ou poder exercido relativamente à quebra contratual, visível dano material, na forma de lucros cessantes, ou moral, com hipotética perda de uma chance.


[1] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. A DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE: AUTONOMIA DA VONTADE, O PRINCÍPIO RES INTER ALIOS ACTA, FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E A INTERFERÊNCIA ALHEIA NA EXECUÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS. Revista dos Tribunais. Vol. 821, p. 80. Março/2004.

[2] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Idem.

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