Opinião

Audiência de conciliação nas ações de família em casos de violência doméstica

Autor

  • Lize Borges

    é advogada professora de Direito Civil de graduação e pós graduação especialista em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador doutoranda em direito pela Universidade Federal da Bahia presidente da Comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA e presidente do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

12 de maio de 2022, 10h02

O Código de Processo Civil em atenção às formas alternativas de resolução de conflito, prevê que o primeiro ato processual se constatados os requisitos da petição inicial é a marcação de audiência de conciliação ou mediação, devendo o réu ser citado para comparecimento. Pelo procedimento comum, essa audiência poderá ser dispensada se ambas as partes manifestarem desinteresse na composição ou quando não for admitida autocomposição (artigo 344, § 4º, I e II do CPC), devendo o(a) autor(a) informar na petição inicial o interesse ou não na realização da assentada (artigo 319, VII do CPC), dando início em regra ao prazo para oferta de defesa em 15 dias úteis contatos a partir da realização da última cessão da audiência conciliação ou mediação ou do protocolo do pedido de cancelamento pelo réu, caso o autor tenha manifestado desinteresse também (artigo 355, I e II do CPC).

Contudo, quando falamos de ações de família, o Código de Processo Civil reservou um capítulo específico que prioriza a resolução dos conflitos por meio de mediação ou conciliação, determinando um rito próprio nesse aspecto. Assim, nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, como expresso no artigo 694 do mesmo Diploma Legal — e veja, a disposição legal representa o imperativo, é poder, é o uso da linguagem em prol do constrangimento das partes à resolução consensual.

A ênfase à resolução amigável é tamanha que a referida legislação determina que a citação seja entregue ao requerido(a) sem a cópia da petição inicial, apesar de assegurar que tenha acesso ao seu teor a qualquer momento (artigo 695, § 1º do CPC). Em se tratando da celeridade da justiça no Brasil, há morosidade inclusive no acesso ao processo de família, que em sua maioria corre em segredo de justiça e depende da atividade cartorial para liberação da habilitação de advogado(a) nos autos ou do atendimento prévio às partes para que seja garantido o acesso.

Além disso a lei permite o desdobramento desse momento processual em quantas vezes for necessário para se atingir o objetivo da resolução consensual (artigo 696 do CPC). O computo do prazo para apresentação da defesa somente se iniciará após a audiência, caso não haja acordo (artigo 697 do CPC).

Sendo bastante otimista, acredito que a intenção do legislador foi dar autonomia (e incentivo) às partes para resolução dos conflitos familiares, mas certamente não analisou a cultura machista e patriarcal que ainda resiste e se ramifica em nossa sociedade e no próprio judiciário. Certamente você conhece alguém ou já ouviu falar de mulheres que, para se livrar da perseguição, ameaças, superexposição e beligerância, além do custo emocional de um processo litigioso, aceitou firmar acordos que a colocavam em situações pessoalmente desfavoráveis ou em perda patrimonial expressiva.

O brocardo jurídico "mais vale um mau acordo que uma boa demanda" ainda é muito utilizado na esfera familiar para tentar aliciar mulheres — que muitas vezes desconhecem seus direitos — a preferirem um acordo que as prejudiquem, renunciando direitos que lhes são inegociáveis. Às vezes, uma boa demanda colabora com a recuperação da dignidade, da autoestima da mulher, proporciona a si própria e a seus filhos uma vida mais confortável, mais digna.

Por que são as mulheres em sua maioria que devem abdicar de seus direitos em prol do encerramento de uma ação judicial? Não pretendo aqui incentivar o litígio, que é, de fato, muito custoso, mas não concordo em absoluto com renúncia à direitos tão fundamentais por medo do que o outro pode fazer com as informações íntimas que tem após anos de convivência, por chantagem, por receio de perder a guarda do filho se não concordar em desistir do patrimônio comum. Isso não é o que Soraia Mendes e Isadora Dourado chamam de lawfare de gênero[1], onde o processo judicial se torna uma verdadeira arma de aniquilação do inimigo, nesse caso, as mulheres.

A questão da obrigatoriedade da audiência de conciliação nos processos de família consiste em um verdadeiro desserviço, principalmente às mulheres que estão em situação de violência doméstica ou familiar e são submetidas a um ambiente beligerante e hostil, sentando-se à mesa com seu algoz para negociar questões como guarda dos filhos, convivência, alimentos e patrimônio.

O legislador não pensou nas mulheres quando deixou de contemplar exceções expressas ao desinteresse na conciliação na parte específica dedicada às ações de família no Código de Processo Civil. Apesar dessa omissão, os tribunais vêm admitindo a dispensa da assentada em casos de violência doméstica ou familiar[2], no intuito de evitar quaisquer constrangimentos ou mesmo a revitimização da vítima.

Nesse sentido, ao julgar um dos precedentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), desembargador José Carlos Ferreira Alves asseverou[3]:

"Faltaria a ela, pela debilidade demonstrada, o necessário empoderamento, tão necessário para que uma conciliação ou mediação possa, com efetividade, resolver a crise de direito material instalada. 
Não se trata de estabelecer uma medida protetiva ou de restrição, a qual deverá ser buscada na esfera criminal, e sim, de evitar um constrangimento desnecessário à agravante."

O entendimento jurisprudencial se alinha com o escopo da Lei 14.321/2022, que alterou a Lei 13.869/2019 para tipificar dentre os crimes de abuso de autoridade o crime de violência institucional, que consiste em submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização.

Sendo assim, é necessário interpretar os dispositivos do Código de Processo Civil à luz da Constituição Federal, da Lei Maria da Penha e da própria Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), para que, nesses casos, sejam aplicadas as normas do procedimento comum, facultando às mulheres a opção pela não realização de audiência de conciliação ou mediação nas ações de família.


[1] MENDES, Soraia. DOURADO, Isadora. LAWFARE DE GÊNERO:  o uso do direito como arma de guerra contra mulheres. Disponível aqui. Acesso em 01 de maio de 2022.

[2] Agravo de instrumento. Divórcio. Audiência de conciliação. Presença da parte, em favor de quem se deferiu medida protetiva da Lei Maria da Penha. Mesmo em face da realização do ato pela via remota, quadro de hipervulnerabilidade havido se toma não apenas do ponto de vista físico, mas também psicológico e que recrudesce com o contato imposto, mesmo telepresencialmente, da ofendida com o ofensor. Provimento CG 39/2018 e precedentes. Decisão revista. Recurso provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2247595-45.2021.8.26.0000; Relator (a): Claudio Godoy; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bauru – 1ª. Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 01/12/2021; Data de Registro: 01/12/2021)

ANADEP. GO: DPE consegue cancelar audiência de conciliação entre agressor e vítima de violência doméstica. Disponível em < https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=50712 >. Acesso em 25 de out. 2021.

[3] TJ-SP, Vítima de violência doméstica não precisará comparecer a audiência de conciliação, 2017.  Disponível em < https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=38656 >. Acesso em 25 de out. 2021.

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    é advogada, professora de Direito Civil de graduação e pós graduação, especialista em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito, mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador, doutoranda em direito pela Universidade Federal da Bahia, presidente da Comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA, integrante do projeto EcoWomen, vice-líder do subgrupo de pesquisa Direito Civil e Feminismos (DCFEM/UFBA), conselheira executiva da Revista Conversas Civilísticas (UFBA).

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