Interesse Público

Deferência judicial e o STF: a ADI 6.148

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

12 de maio de 2022, 8h00

Integrava a chamada "pauta verde" do STF, a ADI 6.148, proposta pela Procuradoria Geral da República em 21/5/2019, onde se discutia a constitucionalidade da Resolução 491/2018 do Conama, que "Dispõe sobre padrões de qualidade do ar". O debate envolveu uma vez mais a cogitação pela corte, do tipo de aproximação a ser empreendida pelo Judiciário em feitos envolvendo atos normativos resultantes do exercício pela Administração Pública, de discricionariedade técnica.

Spacca
A alternativa da aproximação deferente para com a escolha administrativa empreendida na hipótese tem vindo à luz no Plenário com relativa frequência [1], geralmente associada ao argumento de separação de poderes, e mais recentemente, àquele de respeito às capacidades institucionais de cada estrutura de poder envolvida. Uma primeira observação a se fazer está em que não se pode identificar com precisão nos precedentes já indicados, qual seja a matriz teórica determinante da incidência desse tipo de aproximação à qual esteja se inclinando o STF. Assim, embora na ADI 4.874 a ministra Rosa Weber, então relatora do caso, tenha aludido à doutrina estadunidense cunhada a partir do precedente Chevron [2], essa mesma construção teórica não é mais apontada em qualquer dos precedentes conhecidos em que a corte optou pela aproximação deferente. Mesmo o tema das capacidades institucionais, que tem na obra de Vermeule [3] seu marco teórico mais conhecido, não é explorado em detalhes pela corte. O argumento se apresenta como justificativa para a ausência de expertise de uma estrutura (Judiciário) o que autorizaria a prevalência da formulação originária de outra instituição (normalmente, o agente regulador) que se beneficiaria de uma presunção de acerto na escolha pública formulada, dado sua particular qualificação técnica.

A questão se apresentou no julgamento da ADI 6.148 em toda a sua complexidade — determinando dificuldades à corte para a formulação de seu juízo.

Discutia-se na demanda, a constitucionalidade da já referida Resolução 491/2018 do Conama, que depois de cerca de sete anos de tramitação interna, veiculava padrões de qualidade do ar — componente intrinsecamente relacionado à proteção aos direitos fundamentais ao meio ambiente equilibrado, à saúde e à vida. O ato normativo impugnado, por sua vez, substituía anterior (Resolução Conama nº 5, de 15 de junho de 1989), editado a cerca de 30 anos atrás.

A inicial proclamava o avança resultante na edição em si de critérios minimamente atualizados no tema do controle da qualidade do ar, o que por si afastava a cogitação na hipótese, de vedação ao retrocesso social. Não era disso de que se cuidava. O ponto de sensibilidade estava em que o sistema da Resolução Conama 491/2018 se revelava por demais aberto no que toca em especial às consequências do não atingimento dos padrões de qualidade do ar que ali se traçava. Ilustrariam essa afirmação a circunstância de que inexistiam prazos específicos para o alcance dos padrões de qualidade do ar ali desenhados; e no extremo, o artigo 4º § 4º da Resolução Conama 491/2018 preconizava que "caso não seja possível a migração para o padrão subsequente [de qualidade do ar], prevalece o padrão já adotado" — comando que constituiria em verdadeiro desincentivo à adesão pelos entes federados, dos critérios mais restritivos trazidos no ato normativo.

Também se discutia na demanda, a superveniência de novos critérios editados pela Organização Mundial de Saúde, atinentes ao controle da qualidade do ar [4] — não observados, naturalmente, pela Resolução Conama 491/2018, eis que a ela supervenientes, mas tidos por de observância desejável.

A sessão de julgamento [5] revelou a repetida evocação dos já referidos argumentos de deferência para com as escolhas técnicas, considerada ainda a capacidade institucional de cada qual dos players envolvidos. A decisão, contudo, ao final, hesita entre a efetiva aproximação deferente, e o velho modelo interventivo, em que o Judiciário atua de forma substitutiva à administração. Explico.

O ponto de crítica que mais sensibilizou à corte residiu na circunstância de que, sem prazos fixados para o avanço em relação aos critérios de qualidade do ar; e sem mecanismos que operassem na implementação destes mesmos critérios — especialmente no caso de omissão ou insucesso de parte dos entes federados — o modelo preconizado pela Resolução Conama 491/2018 se revelava inapto a gerar o efeito de adesão desejado. Comando sem sanção restaria esvaziado na sua aptidão a induzir condutas — e nisso se teria o malferimento aos valores constitucionalmente protegidos.

A solução proposta pelo STF envolveu a improcedência do pedido [6], com uma "determinação" [7] ao regulador para que revisasse a norma discutida no prazo de 24 meses. Destaco ponto sutil atinente ao espectro de análise que à corte se reconhece, mesmo quando se cuide de aproximação judicial deferente para com as escolhas da administração.

O ponto de fragilidade que mais afligiu à corte, como já referido, foi a debilitação de todo o sistema, tendo em conta a ausência de prazos a serem observados pelos destinatários da norma, e de consequências que efetivamente funcionassem como incentivo à adesão pelos entes federados, aos novos padrões. Assim, ainda que se tenha na construção da Resolução Conama 491/2018 elementos reveladores da adequada aplicação de sua capacidade institucional [8]; o ato normativo não continha um sistema íntegro no que toca a seus componentes indispensáveis — comando, prazos e mecanismos de implementação e sanção pelo eventual descumprimento. Identificando a fragilidade do sistema, mas devolvendo a matéria à consideração do órgão técnico, a corte se alinha com uma aproximação deferente, evitando a substituição da esfera revestida de aptidão institucional no tema.

O deslize veio depois.

Receosos de que o Conama não venha a empreender aos ajustes orientados pela decisão que se construía, o Plenário — neste ponto, impulsionado pela insistência do ministro Ricardo Lewandowsky — entendeu de estabelecer de já consequências para essa eventual omissão ou demora. E nisso se deu o retorno às velhas práticas substitutivas, com a previsão de que da omissão do Conama em deliberar em 24 meses, resultará a aplicação "imediata" das novas guidelines estabelecidas pela OMS.

O adendo é em tudo e por tudo incompreensível.

Primeiro, porque os guidelines da OMS editados em 2021 não contém os elementos indicados como faltantes na Resolução CONAMA 491/2018 para que ela pudesse se revestir de eficácia, em especial, prazos e consequências para os entes federados infratores. E isso é assim pela simples circunstância de que o documento da OMS pretende ser um parâmetro, um referencial — mas ressalva a todo tempo em seu próprio texto, que é preciso que se promova à adequação entre o que ali se prevê, e as condições ambientais, sociais e econômicas de cada Estado. Assim, a solução que o STF aponta não é (também ela) apta a dar resposta problema que a corte identificara como fragilidade da Resolução Conama 491/2018.

Segundo, depois de discorrer longamente sobre a ausência de expertise do Judiciário para a análise da matéria, e da superior capacidade institucional do Conama, o que se faz é acenar com a não deferência e com o juízo de deliberação substitutivo de uma estrutura institucional que vinha de se reconhecer inapta na matéria.

Dois últimos comentários — observados os limites do possível nesta coluna.

Frequentemente, a referência à possibilidade de aplicação de uma aproximação deferente pela corte às escolhas da administração, vinha a ressalva de que, quando se cuidasse de ofensa a direitos fundamentais, o Tribunal via aberto todo o espectro de deliberação, inclusive a ativista e substitutiva. Assim, é clara a preocupação em não se comprometer mais fortemente com autocontenção. Afinal, no sistema brasileiro, quase sempre será possível entrelaçar a demanda com um direito fundamental — e com isso afastar a deferência.

Finalmente — mas não menos importante — em algumas passagens do debate, se aludiu à importância de se buscar, em decisões como a que se construía, o exercício de um diálogo institucional. O diálogo, todavia, há de compreender a capacidade de escuta das partes envolvidas. Antecipar-se à resposta do Conama depois de transcorridos os 24 meses, para dizer que seja qual for a causa da inexistência da nova resolução, o resultado é a "aplicação imediata" das guidelines da OMS é ao contrário, a negação da escuta. E diálogo sem escuta não é diálogo, é cacofonia.


[1] A título de ilustração, cite-se as decisões do Pleno nas ADI 4.874 (min. Rosa Weber), SL 1.425 Agr (min. Luiz Fux); ADPF 825 (min. Marco Aurélio, Redator p/ acórdão min. Nunes Marques). Na 1ª Turma, são expressivos os precedentes, normalmente de relatoria do min. Luiz Fux – MS 37.178, MS 36.062 AgR, MS 36.884 AgR, MS 35.409, etc.

[2] Para percurso do que se tenha na construção americana da deferência, consulte VALLE, Vanice Regina Lirio. Deferência judicial às escolhas regulatórias: o que podemos aprender com standards aplicados pela Suprema Corte estadunidense. Revista de Direito Administrativo, v. 280, n. 2, p. 137-164, 2021.

[3] VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty: an institutional theory of legal interpretation. Harvard University Press, 2006.

[5] O acórdão não se tem ainda por disponibilizado, eis que o debate em Plenário se deu nos dias 4 e 5 de maio passado.

[6] A resposta a se veicular no dispositivo foi objeto de intensa controvérsia contemplando as alternativas de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade; declaração de que a norma estivesse em trânsito para a inconstitucionalidade; declaração de inconstitucionalidade por omissão e declaração de constitucionalidade. A última opção prevaleceu como mecanismo apto a evitar a repristinação da norma anterior, sabidamente mais atrasada.

[7] Também aqui a controvérsia se estabeleceu, com o abando da expressão tradicional — "apelo" — eis que não se cuidava do legislador, e a “mensagem” que se pretendia transmitir era de que não se cuidava de débil postulação da corte, mas de comando mesmo.

[8] Os votos noticiavam extensos debates, múltiplas reuniões do Conama, a busca de informações de fato, e vários outros elementos que orientaram a deliberação final.

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    é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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