Opinião

"Jus postulandi" na Justiça do Trabalho: revogar é preciso

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12 de maio de 2022, 16h13

Por ocasião do aniversário de 80 anos da Justiça do Trabalho, o Tribunal Regional de São Paulo produziu vídeo comemorativo que traz depoimentos de diversos atores da comunidade jurídica, bem como da sociedade civil. Dentre estes, chamaram-me a atenção — a ponto de inspirarem a revisitação de antiga discussão, porém com novo ingrediente trazido pela reforma trabalhista — as sempre sábias e ponderadas considerações do advogado Luis Carlos Moro, que, com a lucidez e argúcia que lhe são peculiares, afirmou: "É uma justiça cujo conhecimento técnico ganhou em importância de forma exponencial. É um ramo do Poder Judiciário que recomenda especialização. Não é mais um campo de teste. A Justiça do Trabalho precisa de conhecimento profundo".

Pois bem, referida discussão, de reexame necessário e urgente, fundamenta-se no controverso tema da capacidade postulatória processual conferida às próprias partes, pela CLT de 1943, nos artigos 791 e 839 "a".

A questão que está a merecer nova análise, em face da edição da Lei 13.467/17, é se esta autorrepresentação por leigos, concebida para uma Justiça que, na era Vargas, pertencia à esfera administrativa, em um Brasil agrícola de dimensões continentais, com relações de trabalho simples e poucos advogados, ainda faz sentido em processos judiciais que tramitam em cortes trabalhistas cada dia mais técnicas e complexas, mas, principalmente, se vem, de fato, ao encontro do princípio constitucional do acesso à Justiça.

"Ter acesso à Justiça" e "obter Justiça" são conceitos, clara e absolutamente, distintos.

O primeiro, através do instituto do jus postulandi, pretende aproximar o cidadão do judiciário, permitindo que ele se dirija à Justiça do Trabalho para, pessoalmente, com pouquíssimo ou nenhum conhecimento de institutos jurídicos, leis, cláusulas convencionais, regras processuais, prazos, normas, portarias, orientações jurisprudenciais, apresentar reclamação para atermação. Pode, também, fazê-lo virtualmente, por meio de página do próprio TRT-2.

A obtenção de justiça, por sua vez, enquanto busca pela preservação dos direitos em sua forma legal, dificilmente será alcançada sem que haja paridade de armas, ou seja, sem que ambas as partes estejam assessoradas por advogado.

Na arena do direito laboral, a cultura e o conhecimento jurídico dos profissionais especializados, como alerta o dr. Moro, são decisivos para que o êxito seja alcançado.

Precioso, neste sentido, o ensinamento de um dos maiores juslaboralistas brasileiros, professor Amauri Mascaro Nascimento, de saudosa memória: "Com efeito, a presença do advogado consciente valoriza o processo, facilita a exata formação do contraditório e é realmente indispensável. A advocacia é inerente aos propósitos de boa realização da justiça, daí serem baldadas, na história, as tentativas da sua supressão, como a de Frederico, O Grande, da Prússia, em 1781, que entendia que o melhor sistema para restabelecer a justiça era a supressão dos advogados… também a revolução russa de 1917 voltou atrás do seu propósito de substituir os advogados por um colégio de procuradores empregados do Estado. Hoje, em todos os países civilizados, a presença do advogado é uma arma de liberdade e de valorização do homem, em nada diferindo esse panorama no âmbito trabalhista" (negritos acrescidos) [1].

O desembargador e professor de Direito do Trabalho Jorge Luiz Souto Maior, também reconhecendo a essencialidade da assistência advocatícia para a efetiva distribuição de Justiça, assim se manifestou: "Sob a perspectiva do conceito de processo efetivo, ou seja, aquele que é eficiente para dar a cada um o que é seu por direito e nada além disso, a presença do advogado é fator decisivo para a consecução deste ideal" [2].

Ainda, no mesmo artigo, após listar diversos temas e institutos afeitos ao Direito do Trabalho (interrupção da prescrição, litispendência, ação monitória, desconsideração da personalidade jurídica, política salarial, salário in natura, dentre outros) conclui: "Saber sobre direitos trabalhistas, efetivamente não é tarefa para leigos. Juízes e advogados organizam e participam de congressos, para tentar entender um pouco mais a respeito desses temas e muitas vezes acabam saindo com mais dúvidas. Imagine o trabalhador".

Faz coro o magistério do festejado tratadista e inesquecível magistrado trabalhista Valentin Carrion: "Estar desacompanhado de advogado não é direito, mas desvantagem; a parte desacompanhada de advogado era caricatura de Justiça; a capacidade de ser parte ou a de estar em Juízo não se confunde com a de postular. Já na reclamação verbal, a parte ficava na dependência da interpretação jurídica que aos fatos dava o funcionário que reduzia a termo suas afirmações. Depois vinham as dificuldades do leigo na instrução e nos demais atos processuais, onde o arremedo de Justiça mais se acentua" [3].

E a pá de cal vem através da lição do mestre Mozart Victor Russomano: "O Direito Processual do Trabalho está subordinado aos princípios e aos postulados medulares de toda a ciência jurídica, que fogem à compreensão dos leigos. É ramo do direito positivo com regras abundantes e que demandam análises de hermenêutica, por mais simples que queiram ser. O resultado disso tudo é que a parte que comparece sem procurador, nos feitos trabalhistas, recai de uma inferioridade processual assombrosa. Muitas vezes o juiz sente que a parte está com o direito a seu favor. A própria alegação do interessado, entretanto, põe por terra sua pretensão, porque mal fundada, mal articulada, mal explicada e, sobretudo, mal defendida. Na condução da prova, o problema se acentua e agrava. E todos sabemos que a decisão depende do que os autos revelarem o que está provado. Não há por que fugirmos, no processo trabalhista, às linhas mestras da nossa formação jurídica: devemos tornar obrigatória a presença de procurador legalmente constituído em todas as ações de competência da Justiça do Trabalho, quer para o empregador, quer para o empregado" [4].

O próprio Tribunal Superior do Trabalho, aliás, rendendo-se à impossibilidade de o leigo transpor a tecnicidade do atual processo do trabalho, aprovou súmula limitando o alcance do jus postulandi às primeira e segunda instâncias. Senão vejamos, Súmula nº 425: "O jus postulandi das partes, estabelecido no artigo 791 da CLT, limita-se às Varas do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho, não alcançando a ação rescisória, a ação cautelar, o mandado de segurança e os recursos de competência do Tribunal Superior do Trabalho".

Importante destacar, no entanto, que esta limitação, por mais bem intencionada que possa ser, colide frontalmente com o disposto no próprio obsoleto artigo 791 consolidado, que garante poderem as partes "acompanhar as suas reclamações até o final".

O entendimento do TST está longe, convenhamos, de equacionar o anacronismo da legislação, e, em verdade, parece apenas querer livrar a corte superior do constrangimento de precisar analisar queixumes e lamúrias sem qualquer rigor técnico-científico. Será mesmo que a tecnicidade do sistema processual do trabalho só se verifica em "ações especiais" ou quando os "processos ordinários" reclamam análise do Tribunal Superior do Trabalho?

Será, verdadeiramente, que estes últimos conseguirão alcançar o terceiro grau de jurisdição, sem que no primeiro e no segundo o leigo tenha articulado adequadamente seus pedidos, requerido manifestação expressa acerca de pontos controversos e pré-questionado matérias-chave? Os operadores do Direito sabem, perfeitamente, que não.

E se a toda esta dificuldade técnica, decorrente do intrincado cipoal legislativo trabalhista, acrescentarmos os desafios tecnológicos de acesso e utilização de um processo judicial eletrônico (PJe) em constante aperfeiçoamento? Será que o trabalhador hipossuficiente, quiçá desempregado e sem renda, com pouca ou nenhuma capacitação, terá condições de ter um certificado digital, a fim de se habilitar, acompanhar publicações e peticionar nos autos? Parece inverossímil e altamente improvável.

Muito já se discutiu, necessário relembrar, se a Constituição de 1988, em face do artigo 133, segundo o qual "o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei", recepcionou os malsinados artigos 791 e 893 "a" da Consolidação, mas o Supremo Tribunal Federal — privilegiando um edulcorado conceito de "acesso à Justiça", que não raro se transforma em amargo remédio, empurrado goela abaixo do incauto jurisdicionado desamparado do adequado aconselhamento jurídico — optou por ignorar o vocábulo "indispensável" instalado na Carta Maior pelo legislador constituinte, que classificou, sem margem a dúvidas, o exercício da advocacia como fundamental à prestação jurisdicional.

Também se travou discussão acerca da possível revogação dos artigos da CLT relativos ao jus postulandi, quando da promulgação do Estatuto da Advocacia, afinal a lei 8.906/ 94 é de clareza meridiana ao estadear que "são atividades privativas da advocacia: 1- A postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais". Debateu-se lei no tempo, lei geral e lei especial: "Legis speciali per generalen non derregatur", para, ao final, permanecer "tudo como dantes no quartel d'Abrantes".

O ponto nevrálgico desta discussão reside, no entanto, na incapacidade econômica do hipossuficiente para arcar com os custos da contratação de um advogado e a consequente privação de parte de seu crédito, de natureza alimentar, para satisfazer tal encargo.

Seria, então, preferível abandonar o cidadão, réu ou autor, à própria sorte em uma disputa judicial? Recuso-me a acreditar nisso, em uma sociedade que se pretenda civilizada.

Incomodamente cômoda, aliás e bem a propósito, a postura do Estado brasileiro que, ao invés de efetivar a implementação de uma Defensoria Pública Laboral, nomeando advogados dativos para reclamações trabalhistas, não se opõe a que o leigo, sem recursos, defenda-se por conta própria, contrariando o comando constitucional contido no artigo 5º, inciso LXXIV, segundo o qual: "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".

Inelutável a conclusão à qual se aporta de que a perversa combinação de obsolescência legislativa e omissão estatal está, diariamente, atentando contra o direito de ampla defesa nas cortes trabalhistas.

Mas e a reforma trabalhista, mencionada no início deste artigo?

Pois bem. A lei 13.467/17, entre erros e acertos, parece haver desatado este cabuloso nó, ao trazer para a seara trabalhista, de forma plena (e não apenas para os beneficiários da justiça gratuita, assistidos pela entidade de classe), o instituto da sucumbência honorária.

De fato, a partir da recente lei, os honorários sucumbenciais "sobre o valor que resultar da liquidação da sentença", de natureza processual e restitutiva, passam a ser de responsabilidade da parte vencida em benefício da vencedora, em percentual que, de acordo com o novo artigo 791-A, pode variar de 5 a 15%. Ou seja, os honorários advocatícios que antes eram satisfeitos integralmente pela parte que contratou o advogado, independentemente do resultado da reclamação trabalhista, agora são, total ou parcialmente, satisfeitos pela parte vencida.

Não se pode também deixar de registrar que o legislador reformista, ciente da imprescindibilidade do assessoramento jurídico para que as partes alcancem resultado justo e equilibrado, não pestanejou em determinar, no artigo 855-B consolidado, ser "obrigatória a representação das partes por advogado" em processo de jurisdição voluntária, quando da homologação de acordo extrajudicial.

Nada mais, portanto, justifica a manutenção do pernicioso instituto do jus postulandi na Justiça do Trabalho, que se tornou incompatível com a realidade pós-reforma trabalhista, sendo imperiosa a revogação, ou reformulação, do caput do artigo 791, bem como do 839 "a", ambos da Consolidação das Leis do Trabalho.

Finalmente, e para que dúvidas não pairem, não se discute ou se põe em xeque o exercício do direito constitucional de ação, muito pelo contrário, o que se pretende é que este direito fundamental seja exercido pelo titular em sua plenitude, de forma a garantir a efetivação de outros direitos, como os trabalhistas.

Sem advogado é ilusório acreditar que isto venha acontecer de forma integral ou mesmo satisfatória. Não é por outra razão, insiste-se, que o legislador constituinte, reconhecendo o múnus público do advogado, declarou-o, de forma expressa e inequívoca, como indispensável à administração da Justiça.

A revogação do jus postulandi na Justiça do Trabalho é medida que se impõe.


[1] Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 19. Ed. São Paulo, Saraiva. 1999, p. 330.

[2] Souto Maior, Jorge Luiz. Honorários Advocatícios no Processo do Trabalho: Uma Reviravolta Imposta Também Pelo Novo Código Civil – Rev. TST, Brasília, Vol.69, nº1, Jan/Jun 2003.

[3] Carrion, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 18ª Edição, 1994, pag.565.

[4] Russomano, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1983, pág. 853.

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