Opinião

Objetivos do sistema de inteligência artificial: estamos perto de um juiz robô?

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11 de maio de 2022, 6h01

Não há nenhum projeto de juiz robô no Judiciário brasileiro — e não existe, até o momento, tecnologia capaz de substituir juízes por robôs na experiência mundial. A definição de juízes robôs, inspirada nas mais visionárias histórias de ficção científica, se refere a máquinas aptas a tomarem as principais decisões em processos judiciais, sem revisão por um juiz humano.

Spacca
Ministro Luis Felipe Salomão
Spacca

Dados fornecidos pelos tribunais brasileiros e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) comprovam a afirmação que abre este texto. A segunda edição da pesquisa, feita pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário (Ciapj), da Fundação Getúlio Vargas (FVG Conhecimento), intitulada "Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário", publicada em abril deste ano, fez um abrangente levantamento das tecnologias de Inteligência Computacional/Inteligência Artificial e Analytics/Business Intelligence no CNJ, no Supremo Tribunal Federal (STF), no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior do Trabalho (TST), nos Tribunais Regionais Federais, nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais do Trabalho. As informações mapeadas incluíram: equipe, aspectos técnicos, base de dados, avaliação e monitoramento.

Nesta segunda edição da pesquisa, foram identificadas 64 ferramentas de inteligência artificial espalhadas por 44 Tribunais (STJ, STJ, TST, os cinco TRFs, 23 Tribunais de Justiça e 13 TRTs), além da Plataforma Sinapses do CNJ. Estes modelos computacionais, nas suas diferentes fases — em ideação, em desenvolvimento ou já implementadas — podem ser divididos em quatro grupos principais.

Primeiro grupo: uma pequena parcela destina-se a auxiliar nas atividades-meio do Judiciário, relacionadas à administração, objetivando melhor gerir recursos financeiros e de pessoal, e não a auxiliar o magistrado na prestação jurisdicional. Citem-se, como exemplo, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o Chatbot Digep, que responde dúvidas dos servidores quanto aos assuntos relacionados à gestão de pessoas; no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o Judi Chatbot, que fornece orientação ao cidadão para entrada de ações relacionadas ao Juizado Especial Cível; e no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), o Amon, que faz o reconhecimento facial de quem ingressa no tribunal, a partir de fotografias, visando aumentar a segurança do fórum.

Dentre estas ferramentas, a que exige mais acompanhamento ao longo de seu uso é a que realiza reconhecimento facial para fins de segurança, tendo em vista os relatos de efeitos discriminatórios em alguns casos [1], embora em aplicações diversas da presente.

O segundo e o terceiro grupos englobam modelos computacionais que auxiliam na atividade-fim do Judiciário, ou seja, na prestação jurisdicional.

Segundo grupo: a grande maioria dos modelos destina-se à automação dos fluxos de movimentação do processo e das atividades executivas de auxílio aos juízes, por meio da execução de tarefas pré-determinadas. Estes modelos computacionais dão apoio à gestão de secretarias e gabinetes, fazendo triagem e agrupamento de processos similares, classificação da petição inicial, transcrição de audiências etc.

São alguns exemplos destes modelos: no STJ, há o Athos faz a identificação e o monitoramento de temas repetitivos, assim como há a ferramenta que otimiza a identificação e indexação das peças processuais dos autos originários; no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), o Julia (Jurisprudência Laborada com Inteligência Artificial), auxilia na localização de processos sobrestados, cujas decisões devam ser reformadas em função do julgamento do tema de repercussão geral ou recurso repetitivo; no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), há ferramenta que faz o agrupamento de apelações por similaridade de sentença; no Tribunal de Justiça do Amapá (TJ-AP), o Tia auxilia na identificação de demandas repetitivas, assim como a ferramenta do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA); no Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL), o Hércules faz a triagem de petições em processos de execução fiscal; e, nos Tribunais de Justiça do Acre (TJ-AC), do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e do Distrito Federal (TJ-DF), neste nomeada Toth, há ferramentas que auxiliam os advogados na classificação correta das petições.

Pode-se listar neste grupo, ainda, o seguintes modelos: no TJ-DF, o Horus digitaliza o acervo físico das Varas de Execução Fiscal e faz o reconhecimento ótico dos caracteres da peça processual para identificar os tipos de documento; no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), o Berna (Busca Eletrônica em Registros usando Linguagem Natural) analisa petições iniciais e verifica se há outros processos com pedidos semelhantes; no Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA), há a ferramenta que faz migração de processos físicos para o PJe; no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), o Larry reconhece processos similares que ingressam no Estado; no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ-RN), o GPSMed busca identificar, a partir da análise de conteúdo de petições iniciais, o tipo de demanda de processos de saúde pública (tipo de tratamento, medicamento solicitado, tipo de cirurgia e tipo de doença); no Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO), o Peticionamento Inteligente auxilia as delegacias de polícia a enviarem documentos (termo circunstanciado, inquérito policial etc) ao PJe; no Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR), o Mandamus utiliza inteligência artificial para o cumprimento e certificação de mandados judiciais; no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o Grafo transcreve os áudios das audiências e o IA Execução Fiscal auxilia na análise e classificação da petição inicial, tarefa similar, embora não restrito à execução fiscal, à do Sistema de Classificação de Petições Judiciais, do Tribunal de Justiça de Tocantins (TJ-TO); no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), há ferramenta que analisa as guias de recolhimento das custas processuais; e, por fim, no Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (TRF-18) há o Sistema Automatizado de Busca Patrimonial, que faz buscas automáticas nos principais convênios, como Infojud, Renajud, CNIB e Censec.

Terceiro grupo: em menor quantidade, há modelos computacionais de inteligência artificial que dão suporte para a elaboração de minutas de sentença, votos ou decisões interlocutórias.

São exemplos destes modelos: no STF, o Victor auxilia na identificação da presença de temas de repercussão geral; no STJ e nos Tribunais Regionais do Trabalho da 8ª e da 9ª Regiões (TRT-8 e TRT-9), há ferramentas para auxiliar na admissibilidade dos recursos; no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), o Alei (Análise Legal Inteligente), dentre outras tarefas, pretende associar ao processo judicial em análise julgados anteriores e buscar jurisprudência; no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJ-ES), o Argos, e no Tribunal de Justiça do Paraíba (TJ-PB), o Midas, auxiliam nas decisões sobre o deferimento ou indeferimento da justiça gratuita; no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), a ferramenta de Jurimetria com Inteligência Artificial pretende apontar as tendências de julgamento do órgão baseado nos acórdãos e na jurisprudência; no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE), o Elis realiza a triagem das petições iniciais dos processos de execução fiscal e, se não houver inconsistências, elabora automaticamente a minuta e a encaminha para a conferência do magistrado; e, por fim, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) e no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (TRF-9), há ferramentas para incrementar a busca de jurisprudência, como o Magus trabalhista.

Modelos como os do segundo e terceiro grupos trazem vantagens e, a depender de como adotados, alguns pontos que merecem análise cautelosa, os quais, pela extensão do tema, serão tratados em outro momento. Esclareça-se que a divisão entre os grupos foi feita apenas para facilitar a compreensão, mas não é estanque. Modelos computacionais para agrupamento de processos, incluídos no segundo grupo, podem auxiliar na elaboração de minutas de decisão se o agrupamento identificar, por exemplo, causas de prescrição.

Quarto grupo: finalmente, há iniciativas relacionadas a formas adequadas de resolução de conflitos, em que se usam informações de processos similares para auxiliar as partes na busca da melhor solução. Como exemplo, cite-se, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), o Icia (Índice de Conciliabilidade por Inteligência Artificial), que estima a probabilidade de o processo ser conciliado no estágio em que se encontra, tarefa similar à desempenhada pelo Concilia JT, do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRF-12).

Os dados da pesquisa deixam claro que em nenhuma nas iniciativas há a interpretação de textos legais, a elaboração de argumentação jurídica e, muito menos, a tomada de decisão pela máquina. Mesmo nos modelos computacionais que auxiliam na elaboração de minutas com conteúdo decisório, a tarefa da máquina se limita a identificar temas ou fundamentos presentes nas peças, buscar jurisprudência e sugerir decisões simples como de gratuidade de justiça, sendo todos os resultados sujeitos à supervisão do juiz.

É assim que se pode afirmar que, no estado da técnica atual, não existe tecnologia capaz de substituir juízes por robôs na tomada de decisões jurisdicionais no Brasil. Ademais, tais modelos geram a preocupação relativa ao alto risco gerado, sobretudo riscos discriminatórios, a exigir maior cautela e controle na sua eventual adoção.

A situação não é diferente no mundo. A Estônia é um dos países pioneiros na aplicação de automação e inteligência artificial no setor público, visando melhorar a prestação dos serviços públicos para cerca de seu 1.3 milhão de cidadãos. O pequeno país báltico anunciou, em 2019, um projeto para desenvolver um juiz robô para julgar pequenas causas, a fim de reduzir o acúmulo de processos judiciais deste gênero [2]. No entanto, não há qualquer notícia posterior da concretização deste projeto. Fora o marketing que foi feito em torno da questão, nada de concreto foi divulgado.

Os dados apresentados na 2ª edição da pesquisa do Ciapj/FGV Conhecimento confirmam que os projetos de inteligência artificial do Judiciário brasileiro, em ideação, em desenvolvimento ou já implementados, estão voltados à administração do fórum, ao apoio à gestão de gabinetes e a dar suporte para a elaboração de despachos e decisões, assim como à estruturação de dados. Em conjunto, estas iniciativas permitirão melhorar a estrutura, tornar a prestação jurisdicional mais eficiente e identificar os problemas de um dos maiores Judiciário do mundo, elementos que, por ora, merecem mais atenção do que a discussão acerca da substituição de juízes humanos por robôs.

Clique aqui para ler a pesquisa na íntegra

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