Opinião

Efeitos das novas disposições da LIA na sanção de suspensão de direitos políticos

Autores

11 de maio de 2022, 9h12

A retroatividade da lei mais benéfica ao acusado é garantia fundamental disciplinada no artigo 5º, XL da Constituição [1] e no artigo 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos, recepcionada pelo Brasil por meio do Decreto 678/1992[2].

Há destaque na doutrina e na jurisprudência quanto à intersecção entre a esfera persecutória relativa aos atos de improbidade administrativa (de natureza eminentemente punitiva, embora comporte pedidos de reparação de danos ao erário e de anulação de atos ou contratos administrativos) e a esfera penal, de modo a constituí-la um verdadeiro subsistema do ius puniendi estatal. Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Rcl 41.557, consignando que “a ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do ‘jus puniendi estatal’ e do sistema criminal"[3].

Se ambos os ramos (o penal e o administrativo) constituem-se subespécies do ius puniendi estatal, ao tratar de preceitos fundamentais assegurados ao acusado, os princípios do direito penal são inexoravelmente aplicáveis ao direito administrativo sancionador. Não por outro motivo que, por meio da promulgação da Lei 14.230/2021, o legislador inseriu o §4º no artigo 1º da LIA, determinando expressamente a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema da improbidade.

Esse entendimento não objetiva tornar a ação de improbidade administrativa uma ação de natureza penal, mas sim buscar o adensamento das garantias processuais previstas na Constituição e na Convenção Americana na ação em que se exerce o jus puniendi estatal, em que se constata — assim como nas ações penais — o desequilíbrio da relação jurídica processual e a previsão de aplicação de sanções com intensa restrição de direitos fundamentais, por vezes mais graves que as aplicadas na esfera penal.[4]

Decorre disso que as novas disposições da LIA, introduzidas com a promulgação da Lei 14.230/2021, quando em benefício dos réus, devem incidir imediatamente nas ações de improbidade administrativa, uma vez que (i.) tais ações são consideradas extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal, e (ii.) a imposição de previsões legais mais benéficas ao acusado é prevista na Constituição e na Convenção Americana de Direitos Humanos, encontrando pacífico assento na doutrina administrativista/penal e na jurisprudência.

Revela-se aqui, então, uma questão importante, que é a aplicação das novas disposições da LIA ao cumprimento de sanções em curso após o trânsito em julgado da decisão condenatória, especificamente a suspensão de direitos políticos, notadamente nas situações em que os réus foram condenados com base na antiga redação do artigo 11 da LIA, em razão de ter se tornado atípica a conduta que justificou a sua penalização ou simplesmente por ter sido revogada a aplicação de determinada pena, ou do artigo 10 da LIA, que previa a possibilidade de condenação da conduta culposa que causasse lesão ao erário, ambas disposições alteradas com a publicação da Lei 14.130/2021.

A título de exemplo, suponha-se que certo réu tenha sido condenado antes da reforma da LIA pela prática de determinada conduta ofensiva aos princípios da Administração Pública e esteja cumprindo a pena de suspensão de direitos políticos. Com a vigência da Lei 14.230/2021, que alterou substancialmente o artigo 11 da LIA, substituindo o anterior rol exemplificativo por um rol taxativo e extinguindo a pena de suspensão de direitos políticos, a conduta ímproba e a pena restam revogadas, eis que não se mostra razoável que o condenado continue a cumprir a pena aplicada, ao passo em que os sujeitos que estão sendo processados pelos mesmos fatos não serão penalizados.

Além de os princípios da isonomia, da razoabilidade e da legalidade (sob o viés da tipicidade da conduta) indicarem não ser legítimo que alguns, à luz da antiga norma, continuem a cumprir sanções oportunamente aplicadas, ao passo que outros, processados sob à égide do novo texto legal (mais benigno), sejam absolvidos, tem-se que deve haver uma interpretação analógica da Súmula 611 do STF e do artigo 66, inc. I da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) a fim  de se estabelecer que o juiz da execução aplique a lei posterior mais benigna aos casos já julgados.

Na prática, entende-se que a lógica aplicável é semelhante àquela utilizada na esfera penal com o abolitio criminis, situação em que a coisa julgada é relativizada para beneficiar aqueles que foram condenados por delitos que, por alguma razão, tornaram-se atípicos no ordenamento jurídico.

No caso das ações de improbidade em que se afigure em curso o cumprimento da suspensão de direitos políticos por atos enquadrados na antiga redação do artigo 10 (atos culposos) ou do artigo 11 da LIA, passíveis de revisão face às novas disposições, tem-se que os réus podem suscitar a questão via petição simples ao juízo da causa responsável pelo cumprimento da sentença ou da execução. Entende-se ser essa a via adequada vez que, se tais sanções estão em cumprimento, é porque já transpassou o prazo para impugnação (artigo 525, §1º, inciso III do CPC) ou oposição de embargos à execução (artigo 917, inciso I do CPC).

De todo modo, tratando-se de matéria de ordem pública, é mandatório que o juízo aprecie a questão ainda que entenda ser inadequado o meio processual utilizado pela parte, pois se aplica às ações de improbidade o princípio da instrumentalidade das formas previsto no artigo 188 do CPC, por força do artigo 17, caput da LIA.

Portanto, os réus que estiverem com sanções em curso de suspensão de direitos políticos derivadas de condenação imposta com base na antiga redação do artigos 10 (em se tratando de conduta culposa) e 11 da LIA podem e devem ter suas penas revistas pelo juízo responsável pela execução das sanções, havendo possibilidade de se recobrar o pleno exercício dos direitos políticos[5].


[1] “Art. 5º (…) XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”.

[2]Artigo 9.  Princípio da legalidade e da retroatividade. Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável.  Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito.  Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado.”

[3] Min. Relator Gilmar Mendes, Segunda Turma do STF. Sessão Virtual de 04/12/2020 a 14/12/2020.

[4] Teoria do Processo Judicial Punitivo Não Penal. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 121/122.

[5] Destaca-se que por força do art. 1º, inc. I, alínea “l” da Lei Complementar 64/1990, em casos de conduta culposa prevista na antiga redação do art. 10 e atentatória a princípios administrativos prevista no art. 11 da LIA, a condenação à suspensão de direitos políticos não implica a inelegibilidade do réu, o qual somente poderá se tornar inelegível se for condenado, por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, pela prática de ato de improbidade administrativa doloso que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!