Opinião

Competência jurisdicional na recuperação judicial: é necessário um juízo universal?

Autor

  • Lucas de Barros Peron Maciel

    é advogado pós-graduado pela Universidade Cândido Mendes e integrante do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar sob a orientação do professor doutor Oreste Laspro.

11 de maio de 2022, 10h03

Com o deferimento do processamento de uma recuperação judicial, ordinariamente será o juízo do principal estabelecimento da devedora o competente para processar a recuperação e dirimir os eventuais conflitos entre os credores concursais (ou seja, aqueles que estarão submetidos aos efeitos da recuperação judicial) e a(s) devedora(s), conferindo-se ao juízo recuperacional a competência para decidir sobre a legalidade das previsões do plano de recuperação judicial quanto a destinação do acervo patrimonial da devedora para a reestruturação de seu passivo com a finalidade de preservação da empresa e seu soerguimento, para, ao final do procedimento, homologar o plano de recuperação judicial, se aprovado pelos credores, ou decretar-lhe a falência.

A instauração do procedimento de recuperação judicial permite a criação de um ambiente processual apto a oportunizar a participação dos credores junto com a devedora na definição de estratégias econômicas e construção de um caminho adequado para a superação da momentânea crise experimentada, atribuindo-se ao juízo a competência jurisdicional necessária para assegurar a maior utilidade do instituto da recuperação, pois também a ele é conferido o dever de fiscalizar o cumprimento do plano de recuperação judicial, tornando-o apto a analisar se a destinação do acervo patrimonial da devedora está adequada ao propósito de seu soerguimento.

Ocorre que, em se tratando de um processo de recuperação judicial, diferentemente do que ocorre com o processo falimentar, ao juiz da recuperação não é conferida a competência universal para decidir sobre todos os conflitos que envolvam a devedora, limitando-se sua atuação somente em relação àqueles credores detentores de créditos líquidos vencidos ou vincendos anteriores ao pedido de recuperação judicial (artigo 6º, §1º, c/c 49, caput, LRF), sendo que os credores extraconcursais (artigo 49, §3º e §4º, LRF) poderão prosseguir com suas ações individuais.

A leitura do artigo 6º, LRF, por exemplo, deixa claro que todo o procedimento recuperacional exclui de seus efeitos os credores extraconcursais, o que implica a não suspensão dos prazos prescricionais, a não suspensão das ações individuais e, dentre outras, a possibilidade de constrição patrimonial da devedora (artigo 6º, III, LRF), que pode ocorrer por ordem proferida em ações de execuções individuais promovidas pelos credores extraconcursais.

Com a possibilidade de os credores extraconcursais darem prosseguimento às suas ações individuais, eventualmente surge a concorrência e o conflito de competência dos juízes das ações de execuções individuais e do juízo da recuperação judicial, na medida em que ambos exercerão suas atividades jurisdicionais para a satisfação da tutela dos credores sobre um mesmo acervo patrimonial, mas cada qual prestigiando e tutelando interesses divergentes e conflitantes. Enquanto o juiz das execuções individuais prestará o serviço jurisdicional de tutela dos interesses do credor-exequente (artigo 797, CPC), o juiz da recuperação prestigiará a preservação da empresa e o interesse dos credores concursais (artigo 47, LRF).

Consequentemente, havendo o conflito divergente sobre a destinação de um mesmo bem jurídico, a jurisprudência já havia se tornado remansosa em solucionar o conflito de competência atribuindo a competência ao juiz da recuperação judicial para decidir sobre a constrição patrimonial da devedora em recuperação judicial, inclusive referente a constrições realizadas anteriormente ao pedido de recuperação judicial (v.g., AgInt no CC 166.811/MA, relator: ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 12/2/2020, DJe 18/2/2020).

A atribuição de competência ao juiz da recuperação se dá por entender-se que ele possuiria proximidade com a recuperanda, seu estado de solvência e seu plano de soerguimento, de modo que deteria melhores condições de avaliar se a constrição do bem, naquele momento durante a recuperação judicial, por ordem do juiz da execução, inviabilizaria o cumprimento do plano de recuperação, possuindo, então, condições de declarar a essencialidade do bem alvo da constrição e impedi-la (v.g., CC 121.207/BA, relator: ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, julgado em 8/3/2017, DJe 13/3/2017).

As reformas implementadas pela Lei Federal nº 14.112/20 promoveram a normatização do entendimento jurisprudencial, conferindo a competência ex lege ao juiz da recuperação para decidir sobre as constrições realizadas pelos juízes de execuções individuais de credores extraconcursais quando estas constrições recaírem sobre bens de capital essencial à recuperanda, detendo a competência para validar, suspender ou substituir a constrição, nos termos do artigo 6º, §7-A e §7-B, LRF:

"§ 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.
§ 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do artigo 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no artigo 805 do referido Código."

À primeira vista, restariam solucionados os conflitos de competência, porquanto, havendo decisão constritiva por juízo individual em processos de execução de credor extraconcursal, deverá a decisão ser submetida ao juízo da recuperação judicial para deliberar sobre a constrição e sobre a essencialidade do bem à recuperação. Agora essa obrigatoriedade de submissão da ordem de penhora ao juízo da recuperação judicial, que antes advinha de uma construção jurisprudencial, é expressa em lei, e em havendo o comportamento de acordo com a disciplina legal, não haverá conflito de competência (p. ex., AgInt no CC 182.741/SC, relator: ministro Antonio Carlos Ferreira, 2ª Seção, julgado em 15/2/2022, DJe 18/2/2022).

Contudo, ao que se vê desta atribuição da competência ao juízo da recuperação judicial, ainda se haverá o impasse já há muito experimentado na prática: os credores extraconcursais, que detêm o direito de verem seus créditos satisfeitos nos termos das obrigações assumidas sem se submeterem ao processo de recuperação judicial, encontravam-se limitados por decisões proferidas pelos juízos da recuperação judicial que impediam a retirada da esfera patrimonial da devedora daqueles bens alvo de penhora, mantendo-a na posse dos bens sob o fundamento de se tratar de bem essencial. Logo, a permissão legal de prosseguimento das ações de execuções individuais se mostrava sem efeito, já que a prática dos atos de constrição não se convertiam em benefício do credor, frustrando a prestação jurisdicional perseguida.

Porém, diferentemente do que se via nos julgados anteriores à publicação da Lei Federal nº 14.112/20, a reforma implementada limitou no tempo a competência do juízo da recuperação judicial para decidir sobre as constrições deferidas pelos juízos das execuções, pois expressamente prevê que a competência estará limitada ao período de suspensão do stay period, no caso de suspensão da constrição praticada pelos credores titulares de direito de propriedade (artigo 49, §3º e §4º, LRF) — hipótese do §7º-A — e ao período de processamento da recuperação judicial para os casos de substituição da penhora aos credores fiscais — hipótese do §7º-B.

Vê-se que no caso de suspensão da constrição (§7º-A), a competência do juízo da recuperação judicial somente poderá ser exercida enquanto estiver vigente o prazo de stay period (artigo 6º, §4º, LRF), inclusive durante seu período de prorrogação, sendo que, findado este prazo, não mais poderá ocorrer a suspensão da constrição ou o impedimento de retirada do bem da posse da recuperanda, devendo ser autorizado o prosseguimento dos atos de penhora sobre o bem, ainda que durante o período de suspensão se tivesse entendido se tratar de um bem de capital essencial à recuperação judicial.

E se acaso se tratar de ordem de constrição deferida posteriormente ao encerramento do período de stay, nem ao menos cogitar-se-á submeter a controvérsia ao juízo da recuperação judicial, já que ele não deterá competência legal para decidir sobre a constrição, porque, se assim o fizer, proferindo decisão cujo conteúdo jurídico e prático tenha a eficácia de uma verdadeira "reforma" da decisão proferida pelo juízo da recuperação judicial, ter-se-á instalado um conflito de competência em afronta direta ao artigo 7º-A, LRF.

Além disso, não se pode ampliar ou fugir à interpretação restritiva do dispositivo que limita a competência do juízo da recuperação judicial para promover a suspensão da constrição do bem declarado como de capital essencial à recuperação, sob pena de criar-se uma "nova jurisdição de sobreposição" ao juiz da execução, ou seja de atribuir ao juízo da recuperação judicial a competência de revisor da decisão do juízo da execução, na medida em que conferir-se-ia ao juiz da recuperação judicial o poder de reformar a decisão de constrição proferida por juízo hierarquicamente de mesma jurisdição.

Outrossim, a disciplina legal é tão somente a de suspender a constrição, não havendo margem para interpretar-se de modo contrário a atribuir ao termo o significado de "cancelar" a constrição ou qualquer outra terminologia cujo efeito prático seja o de impedir a penhora sobre o bem.

Daí que a nova sistemática legal exige "que a lógica de tempo expressa pela Lei n. 11.101/2005 — que gravita em torno do stay period — revela, de modo inequívoco, a necessidade de se impor celeridade e efetividade ao processo de recuperação judicial, notadamente pelo cenário de incertezas quanto à solvibilidade e à recuperabilidade do empresário devedor e pelo sacrifício imposto aos credores, com o propósito de minorar, o quanto mais, os prejuízos por estes já percebidos." (AgInt nos EDcl no REsp 1954239/MT, relator: ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 25/4/2022, DJe 27/4/2022).

Já no caso da hipótese de substituição (§7º-B), a própria substituição servirá tão somente como uma garantia de satisfação do adimplemento da obrigação pelo período de tramitação do processo de recuperação se acaso não se promover a sua liquidação, pois, da mesma forma, não se poderá conferir ao juiz da recuperação judicial a competência jurisdicional para reformar a decisão de constrição proferida pelo juiz da execução fiscal, sendo que ao final do processo de recuperação judicial, encerrada a jurisdição do juízo da recuperação judicial, poder-se-á tornar a constringir tantos bens quantos forem necessários para a satisfação dos créditos extraconcursais.

Com a nova redação legal da lei de recuperações e falência, observa-se não só a normatização do entendimento jurisprudencial, mas o prestígio à defesa dos interesses dos credores extraconcursais, por disciplinar os meios de garantir a satisfação de seu crédito independentemente do processo de recuperação judicial, e a necessidade de respeito à celeridade do processo de recuperação judicial, já que impõe limites de atuação do juízo da recuperação judicial na defesa do patrimônio da devedora pelo período legal necessário para a deliberação de seu plano de recuperação judicial com seus credores.

Porém, essa nova disciplina de preservação dos interesses dos credores e de imposição de celeridade do processo de recuperação judicial poderá se dar ao custo de eventualmente combalir a capacidade patrimonial da devedora, afetando-lhe a recuperação logo após o término do stay period e/ou logo após o encerramento do processo de recuperação judicial, que não necessariamente demandará o período de dois anos de fiscalização (artigo 61, LRF).

E essa afetação se dá justamente porque não necessariamente o soerguimento da devedora se dará dentro do espaço de 360 dias ou de dois anos da concessão da recuperação judicial, de tal forma que, superados esses limites temporais, estariam os credores extraconcursais e o fisco autorizados, sucessivamente, a promover a expropriação patrimonial da devedora, inclusive mediante a retirada daqueles bens declarados como bens de capital essencial, prejudicando a sua capacidade de superação da crise pelo período programado em seu plano de recuperação.

Se acaso a retomada das execuções individuais de credores extraconcursais afetar sua atividade por conta das expropriações, vindo a devedora a deixar de cumprir com suas obrigações estipuladas em seu plano de recuperação judicial, autorizando-se os credores concursais a requerer a sua falência (artigo 61,§1º, LRF) ou a promover execuções individuais (artigo 62, LRF), todo o procedimento de recuperação para preservar-lhe a empresa, será em vão.

A partir dessas breve análises, verifica-se que a nova disciplina agregada à lei de recuperações e falência trouxe nova dinâmica ao processo de recuperação de devedores, mas por si só ainda não foi capaz de criar um ambiente processual e jurisdicional plenamente adequado para a compatibilização de interesses, porque ainda se mantiveram dois ambientes concorrentes de tutelas sobre um mesmo acervo patrimonial, o que exigirá do judiciário, doutrina e partes envolvidas ampla reflexão sobre o tema para que se possa garantir que o processo de recuperação judicial possa ser um efetivo instrumento de preservação da empresa sem mitigar os direitos e interesses dos credores.

Referências bibliográficas
SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
BOMFIM, Daniela Santos, LAMÊGO, Guilherme Cavalcanti. Execução de créditos extraconcursais em face de devedores em recuperação: impacto da lei nº 14.114/2020 nos entendimentos firmados no CC 114.987/SP e no REsp 1.512.118/SP. In Processo Civil Empresarial e o Superior Tribunal de Justiça. Coord. DIDIER JR., Fredie, CUEVA, Ricardo Vilas Bôas. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021.

Autores

  • é advogado, pós-graduado pela Universidade Cândido Mendes e integrante do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar, sob a orientação do professor doutor Oreste Laspro.

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