Opinião

Inversão do ônus da prova de assédio sexual como garantia de acesso à Justiça

Autor

  • Adriana Manta da Silva

    é juíza substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região mestranda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) coordenadora do Grupo de Estudos de Direito Antidiscriminatório da Escola Judicial do TRT da 5ª Região e orientadora do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (Ibadfem).

10 de maio de 2022, 17h16

O assédio e a violência no mundo do trabalho, além de incompatíveis com o trabalho digno e decente, afeta a saúde física e mental das pessoas trabalhadoras. Há no Direito do Trabalho omissão legislativa em relação à definição do assédio sexual, cabendo à doutrina e jurisprudência desenvolverem a temática.

O assédio sexual é tipificado no Código Penal, artigo 216-A [1], em definição que não considera que a prática assediadora frequentemente não visa a obtenção de favorecimento sexual e nem sempre é cometida por superior hierárquico, podendo o agressor ter intenção puramente discriminatória, intenção de subjugar a mulher demonstrando a sua misoginia, ou de simples exercício de poder do homem sobre o corpo da mulher, presumido disponível por ocupar o espaço público ao ingressar no mercado de trabalho (FERRITO, 2021) [2].

A definição de assédio sexual no Direito do Trabalho tende a ser mais ampla, em comparação ao Direito Penal. O MPT e a OIT conceituam o assédio sexual no ambiente de trabalho como "conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra a sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando sua liberdade sexual" [3]. Distinguem-se, em doutrina, dois tipos de assédio sexual: assédio por chantagem e por assédio por intimidação. Assédio sexual por chantagem é o que ocorre quando há a exigência de uma conduta sexual, em troca benefícios ou para evitar prejuízos na relação de trabalho. Assédio sexual por intimidação ou ambiental é o que ocorre quando há provocações sexuais inoportunas no ambiente de trabalho, com o efeito de prejudicar a atuação de uma pessoa ou de criar uma situação ofensiva, de intimidação ou humilhação.

Recente pesquisa da Organização Think Eva [4] (2020) apontou que 47,12% das mulheres afirmavam ter sofrido assédio sexual no trabalho, através de práticas como solicitação de favores sexuais (92%), contato físico não solicitado (91%) ou abuso sexual (60%). As assimetrias transformam tais práticas assediadoras em clara violência de gênero, facilmente constatada a partir da análise dos números no que tange à sua incidência em relação ao gênero: a) homens assediando mulheres — 90%; b) homens assediando homens — 9%; c) mulheres assediando homens — 1% (KAY, 2002) [5].

Em total dissonância às pesquisas anteriormente citadas, após a entrada em vigor da reforma trabalhista (Lei n.º 13.467/2017), observou-se drástica redução no quantitativo de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho mencionam a ocorrência de assédio sexual no ambiente de trabalho, conforme dados divulgados pelo TST [6]. De acordo com o levantamento, em 2015 foram propostas 7.648 reclamações trabalhistas relatando a ocorrência de assédio sexual, enquanto em 2019 constatou-se apenas 2.805 ações versando sobre a temática. Dentre os principais motivos para a redução das demandas após a reforma trabalhista, se encontra a dificuldade em produzir prova acerca da violência ou assédio sexual sofridos, já que a conduta assediadora por vezes ocorre longe dos olhares de outras pessoas.

A resposta hostil à participação feminina no mundo do trabalho leva a refletir sobre a urgente e necessária ratificação do Brasil à Convenção 190 da OIT (2019), complementada pela recomendação nº 206. A Convenção 190 da OIT, objetiva a eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, dando uma abordagem bastante completa ao tema, incluindo violência e assédio baseado em gênero, em especial, no item "b" do artigo 1°, o qual faz especial menção à violência de gênero. A Recomendação nº 206, que complementa a Convenção n.º 190, estabelece a abordagem "inclusiva, integrada e sensível ao gênero" e traz expressamente em seu texto previsão de inversão do ônus da prova, em processos que envolvam violência e assédio baseado em gênero (item 16, e).

Sob essa perspectiva, a Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) [7] tem por objetivo "a proteção dos direitos das mulheres contra todas as formas de discriminação com vistas a empoderá-las como indivíduos e titulares de direitos", apontando que "o efetivo acesso à justiça otimiza o potencial emancipatório e transformador do direito".

A Recomendação aponta seis componentes essenciais para garantir o acesso à justiça, dentre eles a justiciabilidade, através do qual é possível identificar as premissas básicas da atuação judicial com perspectiva de gênero, dentre elas a determinação de que os Estados ampliem o acesso irrestrito das mulheres aos sistemas de justiça; assegurem que os profissionais dos sistemas de justiça lidem com os casos de uma forma sensível a gênero; adotem medidas para garantir que as mulheres estejam igualmente representadas no judiciário; revisem as regras sobre o ônus da prova, a fim de assegurar a igualdade entre as partes.

Diante da Recomendação nº 128 do CNJ [8], que recomenda aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero [9], lançado em 19 de outubro de 2021, relevante instrumento jurídico que abarca considerações teóricas sobre gênero, discriminação e igualdade, à luz do qual as demandas que envolvam assédio e violência contra mulheres no ambiente de trabalho devem ser analisadas.

Nesse sentido, em face do compromisso internacional do Estado Brasileiro no que tange à promoção e proteção dos direitos humanos, devem as (os) magistradas (os) respeitar e aplicar as normas e a jurisprudência que integram os sistemas internacionais de proteção. O Brasil, como signatário do Tratado de Viena (1969), tem dever de cumprimento dos tratados e Convenções internacionais por ele firmados de boa-fé, ainda que não ratificados.

A redação conferida ao artigo 818 da CLT, pela Lei n.º 13.467/17 [10], embora mantenha a distribuição do ônus da prova fundada em fato controverso, permite a sua distribuição dinâmica, diante "de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo", contemplando, portanto as hipóteses ações envolvendo assédio sexual no ambiente de trabalho.

A análise e aplicação combinada dos dispositivos anteriormente citados, com a inversão do ônus da prova, resulta em garantia de amplo acesso ao Poder Judiciário trabalhista às mulheres vítimas de violência e assédio sexual no mundo do trabalho.


[1] Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

[2] FERRITO, Bárbara. Direito e desigualdade: uma análise da discriminação das mulheres no mercado de trabalho a partir dos usos dos tempos. São Paulo: Ltr, 2021.

[3] MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO; OIT. Assédio Sexual no Trabalho – Perguntas e Respostas. Brasília, 2017. p. 9. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—ilo-brasilia/documents/publication/wcms_559572.pdf. Acesso em 8/3/2022.

[5] KAY, Herma Hill; WEST, Martha S. Sex-based Discrimination: text, case and materials. Saint Paul: West Group, 2002.

[10] Art. 818. O ônus da prova incumbe:
I – ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao reclamado, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante.
§ 1º. Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º. A decisão referida no § 1º deste artigo deverá ser proferida antes da abertura da instrução e, a requerimento da parte, implicará o adiamento da audiência e possibilitará provar os fatos por qualquer meio em direito admitido.
§ 3º. A decisão referida no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

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    é juíza substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Associação dos Magistrados do Trabalho da 5ª Região - Amatra5 (2021/2023), coordenadora do Grupo de Estudos de Direito Antidiscriminatório da Escola Judicial do TRT da 5ª Região e orientadora do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (Ibadfem).

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