Opinião

Defender a Justiça Eleitoral é defender a democracia

Autor

  • Sérgio Monteiro Medeiros

    é mestre em Ciências Jurídicas (área de concentração: Direito Econômico) pela UFPB procurador regional da República (MPF/PRR3ª) e ex-procurador regional eleitoral em São Paulo (biênio 2019/2021).

9 de maio de 2022, 10h11

Durante as eleições municipais de 2020, enquanto no cargo de procurador regional eleitoral, a pedido do TRE-SP, conversei com um advogado mexicano sobre como se organizavam e funcionavam a Justiça Eleitoral e o Ministério Publico Eleitoral brasileiros. Impressionou-o a cumulação das funções administrativas e jurisdicionais pela Justiça Eleitoral; ele queria entender se na prática isso funcionava bem.

Não há maiores dificuldades, ou confusão, no exercício das funções, seja pela experiência acumulada pela Justiça Eleitoral, no que se inclui a sua jurisprudência, seja pela especialidade do seu corpo de servidores. As funções podem, eventualmente, tangenciar-se, mas não se confundem, pois se preserva a atuação jurisdicional típica para os casos de provocação.

Desde sua criação, a Justiça Eleitoral foi incumbida de competências jurisdicionais e atribuições administrativas. Cabe-lhe organizar e manter o cadastro de eleitores (alistamento eleitoral, transferência de domicílio), julgar os pedidos de registro de candidatura, realizar as eleições, a apuração, proclamar os eleitos e resolver toda sorte de litígios decorrentes do processo eleitoral, até mesmo os de natureza criminal. Detém poder de polícia e normativo, e função consultiva, esta atípica quanto aos demais órgãos do Judiciário. A função normativa é exercida exclusivamente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio da expedição de instruções necessárias à fiel execução da lei (Código Eleitoral, artigo 23-IX e Lei nº 9.504/1997, artigo 105).

Essa discussão foi encetada, de modo incipiente, no Twitter, a partir de um post em que um usuário criticava o trabalho do TSE por conta da instabilidade no sistema do título eleitoral, às vésperas do prazo do término (dia 2 versus 4 de maio) para regularização da situação de eleitores e emissão de novos títulos; afirmava ele que se a Justiça Eleitoral não consegue realizar bem nem essa atividade, o que dizer da segurança na apuração.

O argumento, com a devida vênia, é todo ele falacioso. Explico.

A uma porque todo sistema informatizado, quando submetido à sobrecarga, pode enfrentar instabilidade, e isso se deu, haja vista que muitos cidadãos e cidadãs concentraram a procura da Justiça Eleitoral próximo ao dia de expiração do prazo. E o atendimento, na realidade, foi recorde para o período. Isso sem falar que antes era tudo presencial, sendo o on-line um legado dos tempos de pandemia. Contudo, isso nada tem a ver com votação eletrônica e apuração dos votos, que se dá em circunstâncias completamente diversas, de ambiente e acessos. Apesar de, novamente, nas eleições de 2020, haverem sido registradas tentativas de ataques hackers ao sistema do TSE, os resultados não foram afetados [1]. Para bem se desincumbir da tarefa, o TSE investe constantemente, havendo contratado, por exemplo, naquele ano, a utilização de dois supercomputadores [2].

A duas, a Justiça Eleitoral realiza esse hercúleo trabalho, de organização e apuração das eleições, em país de dimensões continentais, com excelência. Para roborar a assertiva, imagine-se a logística para distribuir e recolher as urnas em rincões da Amazônia. No plano geral, trata-se de receber e computar os votos de cerca de 150 milhões de eleitores aptos a votarem.

Quem insiste em críticas que tais quer levantar dúvidas sobre o nosso processo digital de votação. Esse sistema é extremamente seguro, compreendendo, de ponta a ponta, um processo completamente auditável, do qual participam partidos políticos, candidatos, o Ministério Público Eleitoral, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Departamento de Polícia Federal, a Controladoria-Geral da União (CGU), a Sociedade Brasileira de Computação (SBC), o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e departamentos de Tecnologia da Informação de universidades.

As urnas eletrônicas não são interligadas ou interligáveis via internet, e fraude alguma, em 25 anos de funcionamento, jamais foi confirmada. Durante todo esse tempo, aperfeiçoamentos vêm sendo continuamente introduzidos. Os dados enviados ao TSE, para totalização, são criptografados, da origem ao destino, e essa criptografia não pode ser quebrada. A "urna" é protegida por mais de trinta camadas de segurança [3].

O sistema brasileiro de votação eletrônica enterrou muitas deformações que, infelizmente, acompanhavam o processo eleitoral da velha "urna de lona", como o "mapismo" e o "voto de cabresto", tornando-se, em sua concepção e concreta existência, um garante do sigilo do voto, da vontade soberana do eleitor e da própria democracia. Das urnas eletrônicas já saíram candidaturas vitoriosas que vão da esquerda à extrema-direita, passando pelo centro, sem, como não poderia, qualquer filtro ideológico.

Debalde isso, para quem ataca, os fatos, a realidade, não interessam. Assim como Donald Trump tentou fazer com o voto pelo correio, arrostando o resultado das urnas, o que ocasionou explosão de violência na invasão do Capitólio, como chance derradeira de reversão fraudulenta da derrota, o objetivo aqui é deslegitimar o processo eleitoral de votação eletrônica, tumultuá-lo, estressando o argumento e a sociedade, desinformando, tentando descredibilizar a Justiça Eleitoral e cavar, quando menos, alguma nulidade, e até, quem sabe, a ruptura democrática.

Na mesma linha, não se pode deslembrar a pretensão, ousada, desarrazoada e inconstitucional, de contagem paralela de votos pelas Forças Armadas [4]. Isso cheira à provocação e tensionamento institucional. Parece busca de realização da tal "intervenção militar" que, algumas quimeras, seguem reivindicando nas manifestações antidemocráticas, como visto na avenida Paulista em 7/9/2021 e 1º/5/2022.

Não se revela estéril a preocupação quando se observa a movimentação de chefes de Poderes em Brasília. Dia 3 de maio os chefes dos Poderes Judiciário e Legislativo Federal reuniram-se e se manifestaram em defesa da harmonia entre os Poderes e do processo eleitoral [5]. A sabotagem à normalidade democrática parece não ter limite e, num ano eleitoral, agrava-se.

Esse estado de agitação constante não aproveita aos brasileiros, o perigo de ruptura anda à espreita e precisa ser rechaçado. Todos e todas, que temos compromisso com a democracia, devemos sempre nos apresentar, repondo a verdade dos fatos e repudiando intenções maliciosas e manobras golpistas.


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