Opinião

Hermenêutica em tempos de escuridão

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9 de maio de 2022, 21h15

As questões de interpretação das regras de direito postas pela autoridade do Estado adquirem especial relevância quando os intérpretes cruzam certos limites de sua atuação científica, o que às vezes importa em perversão dos preceitos mais altos do sistema jurídico, como os que são de nível constitucional.

A agressão a tais preceitos pode se dissimular sob diversas máscaras e uma das mais facilmente utilizadas é a que solapa a Constituição, aparentando sorrateiramente dar-lhe adequado e exato cumprimento. Essa forma de descumprir a Constituição é uma maneira ardilosa de praticar uma inconstitucionalidade ou de disseminar a desestima constitucional, na expressão do jurista mineiro professor Raul Machado Horta.

Não há dúvida que o impacto direto à Constituição materializa de maneira clara e evidente a inconstitucionalidade mais frequente e a de mais fácil identificação, porque o agente que a pratica faz o oposto do que ela prevê. Esta é uma inconstitucionalidade acintosa.

Contudo, na lição do ministro Ayres de Britto, do STF, a violação de preceitos e garantias constitucionais não só violam toda uma coletividade, ou, a transindividualidade protegida tutelada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, em suas palavras que ainda ecoam nos corredores no STF, nos trazendo as suas sempre atuais reflexão e sabedoria, como a de seu conterrâneo Tobias Barreto, sergipano também, que dizia que a justiça não é algo que se sabe, mas algo que se sente e se pratica. Em sua obra "O Humanismo como Categoria Constitucional" faz-se o registro de tão valiosa lição:

"Diga-se mais: toda essa perspectiva do humanismo até hoje conserva o seu originário caráter político-civil de prevalência do reino sobre o rei. Que outra coisa não significou senão a consubstanciação de três paulatinas e correlatas ideias-força: (a) o direito por excelência é o veiculado por uma constituição política, fruto da mais qualificada das vontades normativas, que é a vontade jurídica da nação; (b) o estado e seu governo existem para servir a sociedade; (c) a sociedade não pode ter outro fim que não seja a busca da felicidade individual dos seus membros e a permanência, equilíbrio e evolução dela própria" (O Humanismo como Categoria Constitucional. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016).

Essa outra forma de inconstitucionalidade a que se alude se opera mediante uma prática jurídica deveras sofisticada, que consiste em não fazer o que a Constituição determina, mas sem lhe infringir, no entanto, diretamente a sua letra. Nessa modalidade de inconstitucionalidade, o agente dela praticante simula atuar num pseudo-espaço de vácuo normativo e esse espaço é gerado pela interpretação inconstitucional da Constituição. Diz-se que o ato praticado pelo agente infrator repousa sobre uma base hermenêutica falsa, daí se afirmar que se trata de interpretação inconstitucional.

Um exemplo notável dessa interpretação inconstitucional se acha na elaboração de regras ou de atos administrativos sem apreço às determinações da Constituição e das leis que a complementam. Isso se faz, geralmente, sob o sempre prestante escudo da discricionariedade administrativa, um elemento constitucional estruturante da atuação executiva estatal, como se reconhece, e ao qual não se pode destinar ressalva. Trata-se, na verdade e com certeza, de um elemento essencial aos desempenhos públicos e não há autor que cogite de sua redução ou eliminação.

Nas palavras do jurista argentino professor Oscar Correas:

"Ao mesmo tempo diríamos que é incoerente um texto constitucional que, por exemplo, prescreve o respeito aos direitos humanos e ao mesmo tempo concedera a algum funcionário a faculdade de entrar em domicílios sem uma ordem fundada em serias suspeitas da existência de provas da pratica de um delito em tal lugar.
Mas a palavra coerência, nestes casos, não pode remeter a obediência de regras de ordenação intersubjetivas do mesmo tipo que as da regra de sintaxe. Trata-se de algum tipo de ordem ou inteligibilidade que deve ser encontrada a partir do ponto de vista semântico. Tampouco se trata de coerência logica, pois, a lógica sempre demonstra que os textos relativos à política carecem quase totalmente de lógica" (Crítica da Ideologia Jurídica. Poro Alegre: Fabris, 1995).

A hermenêutica é a relevante maneira de se descortinarem o significado, o alcance e o sentido das regras positivas, trazendo à tona dos atos administrativos praticados pela administração estatal, no âmbito de qualquer dos seus poderes, a percepção que o agente tem da oportunidade, da necessidade da eficiência daquele proceder e como se justifica a sua efetivação. A hermenêutica administrativa se apóia, dessa forma, sobre a liberdade de interpretação do quadro normativo, o que legitima o agente estatal à adoção de qual medida, na sua visão e responsabilidade, é mais servível ao superior interesse público ou ao bem geral. Afinal de contas, como se afirma, todos os atos administrativos somente se legitimam quando (e se) inspirados nesses valores.

Resulta evidente que o trabalho hermenêutico não se confina na leitura das palavras das regras positivas, indo muito além delas. Enclausurar a interpretação na leitura das regras é postura de todo afinada com a forma positivista de ver o Direito, o que foi denunciado veemente pelo imortal cearense professor Paulo Bonavides, criticando a atual fase dos estudos jurídicos que tendem as fazer coincidir a compreensão do Direito com a dimensão legalista. Os nossos mestres mais exímios, como os professores Lourival Vilanova ("As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo"), Nelson Saldanha ("Legalismo e Ciência do Direito") e Eros Roberto Grau ("Direito: Conceito e Normas Jurídicas") nos dão poderosas lições (e solenes advertências) sobre isso, mostrando que a falência do Direito sempre ocorre quando a regra positiva lhe toma indevidamente o lugar.

Essa postura leva à inevitável afirmação de que as leis retiram a sua autoridade delas próprias, que a sua existência objetivada na sua escrita é suficiente para assegurar a sua eficácia, que a ética das coisas e a moral da vida não têm papel algum na aplicação das leis. Tudo isso tem o desabono do filósofo, jurista e magistrado inglês professor Herbert Hart, que nos legou estudo essencial em que disserta sobre a regra de reconhecimento, legitimadora das regras positivas ("O Conceito de Direito"). A regra de reconhecimento dá à regra positivada o seu substrato de legitimação, coincidente com a sua finalidade de promover o bem comum e combater a injustiça.

Conforme escrevi em trabalho doutrinário ("A Justiça das Coisas"), quando os juristas, administradores ou julgadores, se afastam por qualquer motivo da regra de reconhecimento do professor Herbert Hart e se fecham solenemente na função roteirizada de aplicar as leis escritas, nem que o mundo pereça, o exercício jurídico, de pronto, se empobrece verticalmente e a burocracia toma conta da atividade estatal normatizadora e reguladora, que deveria ser sempre inovadora e igualmente prospectiva.

O jurista e magistrado estadunidense Benjamin Nathan Cardozo também nos mostrou que a atividade do jurista julgador não é encontrar, mas criar. Com isso, se iniciava a ruptura do pensamento absolutista legalista, de tão longa vigência; assim preconizava o professor Benjamin Cardozo:

"Insignificante é o poder de inovação de qualquer juiz, quando comparado ao vulto a pressão das regras de direito que o circundam. Ele deve, entretanto, inovar em certa medida, pois as novas condições devem corresponder novas regras de direito. Tudo que o método da sociologia exige é que dentro dessa pequena esfera de escolha ele procure conseguir justiça social. Houve estádios na história do direito em que se precisou menos psicológico. As velhas provas quantitativas de verdade não deixaram, então, de servir as necessidades sociais. Há muito passou o seu dia. O pensamento jurídico moderno, voltando-se para ele próprio, sujeitando o processo judicial a uma pesquisa introspectiva, pode dar-nos nova terminologia e atribuir importância maior a novos pontos" (A Natureza do Processo e a Evolução do Direito. São Paulo: Editora Nacional de Direito, 1956).

Não se devem fechar os olhos para esse absolutismo legalista, que se pôs no lugar do velho absolutismo de nascentes medievais, depois se insinuando nos sistemas jurídicos posteriores ocidentais, inclusive nos de perfil democrático. Essa observação é do mestre lusitano professor Paulo Otero. Para ele, o Estado totalitário, procura definir novas categorias morais, segundo o princípio de que os fins justificam os meios, e elevando o próprio Estado a um verdadeiro Deus.

Segundo ele explana, isso se assenta em quatro preferências estruturais: (1) prefere a disciplina à justiça; (2) a autoridade à liberdade; (3) a obediência à consciência e (4) a violência à tolerância ("A Democracia Totalitária"). E também leva à espetacularização do processo sancionador, como foi bem descrito pelo magistrado do Rio de Janeiro professor Rubens Casara ("O Processo Penal do Espetáculo"), e como igualmente percebido pelo jurista e filósofo italiano professor Francesco Carnelutti ("As Misérias do Processo Penal").

Em livro que trata da importância e atualização da linguagem jurídica, o jurista sueco Karl Olivercrona provoca para uma atual e persistente reflexão: Quando e com quais fins será necessário falar de situações factuais tão enormemente complicada? (Linguagem Jurídica e Realidade. São Paulo: Quatier Latin, 2005).

É mais do que o momento para se impulsionar a hermenêutica humanista do Direito, resgatar a supremacia da regra de reconhecimento do professor Herbert Hart e afirmar que o Direito não está na lei, mas nos fatos que são os conteúdos das questões.

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