Público & Pragmático

O desafio da regulação multilateral da mudança climática

Autores

  • Maria Eugênia do Amaral Kroetz

    é advogada em Hapner Kroetz Advogados mestre e doutoranda em Direito dos Negócios pela Escola de Direito da FGV-SP bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Atua em operações nacionais e internacionais em seus aspectos regulatórios contratuais e societários com foco em energias renováveis.

  • Otavio Venturini

    é consultor jurídico professor universitário doutorando e mestre em Direito pela Fundação Getulio Vargas-SP presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade) e advogado com destacada atuação em temas de direito público corporativo e compliance.

8 de maio de 2022, 8h00

A mudança climática é reconhecida como um desafio global que requer cooperação entre os países para ser resolvido. Em termos de eficiência econômica, a melhor solução para endereçar esse tipo de questão seria um acordo de diminuição de emissão de carbono entre os países mais emissores, notadamente Estados Unidos e China. No entanto, a situação geopolítica atual impõe a dificuldade de se estruturar uma estratégia nesse sentido.

Diante das demandas e do cenário colocados no mundo real, quais seriam as possíveis soluções regulatórias para o desafio global da mudança climática? Entendemos que algumas dessas soluções poderiam se beneficiar de ferramentas do Law and Economics, explorando-se as potencialidades e limitações dessa chave de análise.

Dada a gravidade da situação climática, organizações internacionais — como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (conhecido pelo acrônimo em inglês IPCC) — sugerem fortemente a participação dos países na organização de políticas organizadas de forma multilateral, que abordam a questão.

Atualmente, as iniciativas se concentram na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (conhecida pelo acrônimo em inglês UNFCCC), a qual desempenha um papel de liderança na coordenação das ações para atingir as metas de mudança climática. O tratado internacional, assinado por 166 países, tem como objetivo "estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que evite interferências antropogênicas perigosas para o sistema climático". Na Conferência de Cancún, de 2010, as partes signatárias acordaram em meta mais concreta de redução da temperatura global em 2º C.

Mais conhecida por seu Acordo de Paris, a UNFCCC não segue, propriamente, uma lógica de eficiência econômica, mas sim critérios objetivos e matemáticos de níveis de emissão e de redução. Por meio de princípio que ficou conhecido como de "responsabilidade comum e diferenciada", o instrumento se baseia na convicção de que todos os governos são igualmente responsáveis por mitigar os danos causados pela mudança climática, fazendo a ressalva de considerar as necessidades e circunstâncias específicas dos países em desenvolvimento, para os quais seria mais oneroso seguir as metas estabelecidas na convenção.

A UNFCCC se operacionaliza de forma bottom up, na qual cada país indica seus compromissos perante os demais signatários, sem prever penalidades em caso de descumprimento dos mesmos. O modelo possibilita ainda que países "peguem carona" ("free riders") nas políticas iniciadas pelos signatários mais proativos, que arcam com os custos das políticas doméstica de redução das emissões. Não apenas por essas razões, a implementação do Acordo de Paris e o alcance das metas estipuladas ficou aquém do esperado e foi motivo de debate na Conferência das Partes, a COP26 em Glasgow.

O fracasso da UNFCCC é preocupante, uma vez que os riscos da ação não-coordenada entre os países são múltiplos. Porém, não é inesperada, dado que decorre das dificuldades enfrentadas por negociações internacionais que tenham por objeto os bens públicos. Como se trata de bens cujos impactos são sofridos em escala global, cria-se um incentivo para que nações individuais apresentem práticas não cooperativas de empobrecimento do vizinho (beggar thy neighbor) e persigam interesses nacionais em vez de ações globalmente vantajosas. É a clássica fórmula do dilema do prisioneiro aplicada à regulação internacional.

A partir desse diagnóstico, as ferramentas do Law and Economics podem ser úteis. Alegando uma miopia quanto à estrutura dos incentivos presentes na lógica de cumprimento voluntário da UNFCCC, William Nordhaus sugere a criação de Clubes do Clima ("climate clubs"). Com base na teoria econômica e na modelagem empírica, Nordhaus conclui que a implementação de um modelo de clube com metas de redução de emissões harmonizadas e pequenas penalidades comerciais para não participantes pode induzir uma grande coalizão estável com altos níveis globais de redução de carbono [1].

No âmbito local, os países se organizam para implementar iniciativas regulatórias, de mercado e econômico-financeiras a fim de contribuir com a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Nessa linha, Bradley Condon afirma que os países costumam escolher entre três categorias de políticas públicas para endereçar a questão: (1) a abordagem "cap-and-trade", no qual governos regulamentam um limite de emissão de carbono por unidade produtora; (2) políticas baseadas em padrões técnicos (standards), que requerem a adoção de medidas específicas ou conjunto de limites de emissões por fontes específicas e (3) impostos de carbono [2].

A opção de tornar mais caro a aquisição de produtos e serviços com alto teor de carbono por meio da implementação de um imposto sobre o dióxido é vista como a mais eficiente por muitos economistas. E já vem sendo adotada. Como exemplo significativo, tem-se o Acordo Verde da União Europeia (Europe Green Deal), que busca reduzir as emissões de gases de efeito estufa da Europa para zero líquido (net zero) até 2050. Dentro da iniciativa, leis indicam a adoção de medidas de taxação de carbono e imposto de fronteira de carbono (no acrônimo em inglês, CBA), como parte de um programa para cumprir a nova meta climática da UE.

Mesmo sob o ponto de vista econômico, a implementação de tributos sobre o carbono é questionável na medida em que cria distorções de mercado, cujo benefício é difícil de ser auferido. Análises de David Weischbach apontam que a tática da tributação pode aumentar os custos para as empresas nacionais, colocando-as em desvantagem competitiva em relação aos concorrentes estrangeiros de países onde não existe custo de carbono [3].

Ademais, a imposição isolada de tais tributos pode causar efeitos como a fuga de carbono (carbon leakage), típico problema de iniciativas locais não-coordenadas no sistema multilateral. Isto é, por razões de custos relacionados a políticas climáticas, tem-se um cenário de estímulo econômico para que empresas transfiram a produção para outros países com restrições de emissões mais brandas, com risco maior em certas indústrias de uso intensivo de energia. Esse processo pode conduzir a um aumento das emissões de carbono totais no agregado global.

Ciente dessas implicações, a Comissão Europeia implementou o já mencionado imposto de fronteira sobre as importações de aço intensivo em carbono, alumínio, cimento, fertilizantes e eletricidade. Essa medida, no entanto, também pode ser utilizada como técnica de "greenwashing" para práticas protecionistas. De acordo com Gary Huffbauer, usando o argumento legítimo de proteção do meio-ambiente, por meio da CBA, a União Europeia poderia criar impedimentos para entrada de produtos estrangeiros em seus mercados internos, o que violaria as regras de comércio internacional – notadamente os princípios de tratamento nacional e de nação mais favorecida, espinha dorsal do sistema da Organização Multilateral de Comércio (OMC) [4]. Esse argumento também é levantado por Tatiana Prazeres [5]. Medida como essa tem efeitos bastante deletérios para países de perfil exportador de commodities, como o Brasil.

A opção dos Estados Unidos foi a de delegar a tarefa de diminuição das emissões do país para o setor privado. De fato, os programas voluntários podem dar uma contribuição importante para um programa doméstico de mudança climática e podem fornecer uma experiência valiosa para projetar esforços futuros, mas o momento político parece exigir respostas mais assertivas dos governos.

Durante a Administração do presidente Obama, foi promulgado o Plano de Energia Limpa (Clean Power Plan), no qual foram estabelecidas metas para cada Estado federado de diminuição das emissões de dióxido de carbono. A ideia era reduzir a emissão causada por usinas elétricas, a partir de valores encontrados na análise comparada de modelos econômicos.

Apesar do relativo sucesso da iniciativa, a incerteza que permeia as previsões dos efeitos causados pelas mudanças climáticas lança dúvidas sobre a eficiência dessa regulação [6]. Para além dos questionamentos teóricos, a indústria norte-americana local também demanda por políticas de incentivo para manutenção de sua competitividade no mercado sustentável global e de disputa da liderança da tecnologia verde. Não é à toa que em março deste ano o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, apresentou uma proposta de infraestrutura massiva para remodelar a economia dos EUA e construir uma infraestrutura de energia limpa como parte de um esforço mais amplo para conter as mudanças climáticas.

Diferentes países têm perfis de emissão diferentes. Considerando seus perfis geográfico, econômico e de desenvolvimento, não existe uma solução única one size fits all para todos os países para a mitigação das mudanças climáticas. No entanto, faz-se necessário que sentem à mesa para coordenar ações de diminuição de emissão do dióxido de carbono.

Como alertado por Nordhaus, o contexto de tensões no cenário internacional, estressado pela pauta industrial e disputa por mercados e tecnologia, gera dúvidas sobre o alcance de uma solução harmoniosamente acordada por todos os players relevantes. Mas, a falta de um compromisso conjunto sério pode comprometer as condições ambientais e sociais do mundo inteiro nos próximos anos.

Entende-se, portanto, que estudos inspirados pelas ferramentas de Law and Economics podem ser facilitadores para a proposição de iniciativas eficientes para um denominador comum nas negociações de um problema que afeta indiscriminadamente todos os países em um momento de crise generalizada do multilateralismo.


[1] NORDHAUS, William. The Climate Club: How to Fix a Failing Global Effort. Foreign Affairs. 2020. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2020-04-10/climate-club

[2] Além disso, requerimentos de divulgação de informações de regulação setorial, de instituições financeiras e de mercado de capitais, acordos voluntários, incentivos à pesquisa e desenvolvimento (P&D) e subsídios a novas tecnologias verdes também são mencionados como formas de contribuição para a agenda de mudanças climáticas. CONDON, Bradly J. Climate Change and Unresolved Issues in WTO Law. Journal of International Economic Law, n.12, vol. 4, 2009 p. 895-926.

[3] STONE, Andy. Carbon Tax Border Adjustments: Good Politics, Bad For Consumers? FORBES. 26 jul. 2020. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/andystone/2020/07/26/carbon-tax-border-adjustments–good-politics-bad-for-consumers/?sh=285808894a8c

[4] HUFBAUER, Gary Clyde. Divergent climate change policies among countries could spark a trade war. The WTO should step in. PIIE. 30/8/2021. Disponível em: https://www.piie.com/blogs/trade-and-investment-policy-watch/divergent-climate-change-policies-among-countries-could

[5] PRAZERES, Tatiana Lacerda; XIE, Zhiyu. What is a carbon border tax and what does it mean for trade? World Economic Forum. 26/10/2021. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2021/10/what-is-a-carbon-border-tax-what-does-it-mean-for-trade/

[6] FOWLIE, Meredith et al. An economic perspective on the EPA's Clean Power Plan. Science, v. 346, nº 6.211. Disponível em: https://www.science.org/doi/abs/10.1126/science.1261349

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    é advogada em Hapner Kroetz Advogados, mestre e doutoranda em Direito dos Negócios pela Escola de Direito da FGV-SP, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Atua em operações nacionais e internacionais em seus aspectos regulatórios, contratuais e societários, com foco em energias renováveis.

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    é advogado, professor universitário, mestre e doutorando em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas/SP e vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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