Processo Tributário

Coisa julgada sobre a decisão interlocutória de mérito na execução fiscal

Autor

  • Fernanda Donnabella Camano

    é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo advogada professora dos Cursos de Especialização e Extensão em "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisadora do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

8 de maio de 2022, 8h00

Continuemos a explorar o "macrotema" da coisa julgada em matéria tributária em suas diversas nuances, não sem antes advertir que o fio que nos conduz é a ideia de instrumentalidade ("o processo não é um fim em si mesmo"), uma postura de evidentes contornos pragmáticos.

No correr dos tempos, a execução fiscal passou a ser vista como um processo sincrético, como bem definido em artigo de Luis Claudio Cantanhêde, publicado nesta coluna [1]. Dito de forma simplificada, se no passado o conflito no bojo do processo executivo girava tão somente em torno das medidas expropriatórias destinadas à realização do crédito tributário, a prática nos mostra que, hoje, discussões as mais variadas migraram para esse âmbito.

Cite-se, como exemplo, as defesas suscitadas pelo contribuinte em ataque à exigibilidade do crédito tributário ou as relativas à corresponsabilização de terceiros, além daquelas envolvendo a oferta de garantias, essa última a hipótese concreta a ser trabalhada como objeto central deste artigo.

Tal cenário nos convoca para refletir a respeito da seguinte pergunta: as decisões derivadas do caldeirão de temas em que se transformou a execução fiscal configuram "decisões interlocutórias de mérito", passíveis de sofrer a incidência de coisa julgada?

O CPC dispôs em seu artigo 502 que a coisa julgada material torna imutável e indiscutível a decisão de mérito — excluindo o termo "sentença" como constava no CPC/1973 [2]. Nas palavras de Paulo Cesar Conrado [3], deu-se ênfase ao conteúdo decisório desprezando-se o veículo por meio do qual tal conteúdo é produzido (prestígio à substância do ato decisório).

Ao artigo 502 soma-se o conteúdo do artigo 356, II c/c artigo 355, I, dispositivos que prescrevem que o mérito pode ser parcialmente resolvido quando não houver necessidade da produção de outras provas [4].

A primeira questão que se coloca é: qual o conteúdo semântico da expressão "decisão de mérito" contida no artigo 356, II do CPC quando se está diante de execução fiscal? Em outros termos: seria possível admitir que "mérito", em tal categoria, significa satisfação do crédito tributário (via expropriação do patrimônio do devedor), de modo que as decisões interlocutórias envolvendo a oferta de garantias, porque destinadas a assegurar o crédito tributário inadimplido, estariam compreendidas na acepção semântica do referido artigo 502?

Esse é nosso ponto focal.

Tomemos como exemplo, para clarear a cena, decisão que rejeita a oferta do devedor de assegurar o crédito tributário via apólice de seguro, fazendo-o com fundamento na necessidade de obediência à ordem legal prevista no artigo 11 da LEF e sem qualquer referência aos dados concretos do caso [5].

Esgotados os recursos, se a tomarmos como "decisão interlocutória do mérito executivo", o efeito prático advindo do trânsito em julgado será, num primeiro olhar, bastante "forte": tal decisão vincularia contribuinte e Fisco-credor em relação a todos os demais processos em que o primeiro pretendesse apresentar garantia fora da ordem legal de nomeação.

Assim seria em razão do que dispõem o § 1º, I a III, e o § 2º, ambos do artigo 503 do CPC, preceitos que prescrevem a formação da coisa julgada sobre questão prejudicial [6]. Ou seja, se a decisão de rejeição da apólice de seguro, porque configuradora do "mérito" executivo, tornou-se definitiva (trânsito em julgado), apresentando na sua fundamentação argumentos abstratos no sentido de que a ordem legal é inviolável, tal porção do decisum é questão prejudicial sujeita a trânsito e, assim, "transcenderia" para as demais execuções fiscais propostas em face daquele contribuinte.

Pragmaticamente, isso importaria, já sinalizamos, na impossibilidade de apresentação, por aquele devedor, de qualquer bem/direito fora da ordem legal para assegurar outros créditos tributários exigidos em execuções fiscais diversas — uma solução que, a despeito da abstrata submissão da decisão sobre a oferta de garantia ao conceito de decisão interlocutória de mérito no bojo da execução fiscal, faz-nos pensar sobre a imperatividade do isolamento dessas interlocutórias "periféricas" daquelas que se relacionam diretamente com a ideia de exigibilidade, objetiva e/ou subjetivamente falando.

Com efeito, não nos parece que o CPC, ao atrair a figura da coisa julgada para o campo das interlocutórias de mérito (inclusive determinando sua incidência sobre a questão prejudicial), tenha pretendido tornar a realidade dos executivos engessadas — como no exemplo apresentado.

Se possível for afirmarmos que a locução "decisão de mérito" contida no artigo 502 do CPC é gênero, haveremos de ter no âmbito da execução fiscal o "mérito periférico" (ou "impróprio") e o "mérito propriamente dito" como duas espécies, dentre as quais a matéria relacionada às garantias enquadrar-se-ia na primeira categoria ("periférica"), porque descolada da questão da exigibilidade do crédito tributário.

Assim procedendo, concluiríamos que a interlocutória de mérito atinente à etapa procedimental de oferta de garantia faz coisa julgada, mas com a geração de estabilidade "fraca", assim entendida a que se atém aos limites do processo em que é decidida — intraprocessual, portanto (a contraposta "estabilidade forte" relacionar-se-ia às decisões interlocutórias de "mérito propriamente dito", assim consideradas as que abordam a exigibilidade do crédito tributário tanto em sua porção objetiva, como subjetiva, sendo definível como "forte" justamente porque espraiar-se-ia sobre outras relações processuais que tomassem a mesma realidade fática como foco).

Revendo o exemplo trazido, teríamos, ao cabo de tudo, que, ao transitar em julgado a decisão prolatada na execução fiscal a respeito da recusa da oferta da apólice de seguro, sob o fundamento da desobediência à ordem legal de nomeação, o decisum não apresentaria o efeito de se impor para além daquele caso concreto (relembremos que, no exemplo cogitado, a decisão foi abstrata, portanto, meramente normativa).


[2] Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

[3] Artigo "Redefinição do conceito de litispendência a partir da 'nova' coisa julgada" (art. 502 do CPC/2015: impacto no confronto de execução fiscal e medidas antiexacionais (embargos, exceção de pré-executividade e anulatória). In Processo Tributário Analítico. Vol. IV. São Paulo: Noeses, 2019, p. 4.

[4] Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles:

II – estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355.

Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando:

I – não houver necessidade de produção de outras provas;

[5] Art. 11 – A penhora ou arresto de bens obedecerá à seguinte ordem:

I – dinheiro;

II – título da dívida pública, bem como título de crédito, que tenham cotação em bolsa;

III – pedras e metais preciosos;

IV – imóveis;

V – navios e aeronaves;

VI – veículos;

VII – móveis ou semoventes; e

VIII – direitos e ações.

[6] Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:

I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;

II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia;

III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.

§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.

Autores

  • Brave

    é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogada, professora dos cursos de especialização e extensão em "Processo Tributário Analítico" do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professora do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGVLAW) e pesquisadora do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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