Cada um por si

Com polêmica do aborto, estados dos EUA estão mais desunidos do que nunca

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7 de maio de 2022, 9h34

O vazamento da minuta do ministro Samuel Alito indicando que a Suprema Corte dos Estados Unidos vai revogar o precedente estabelecido por Roe vs. Wade, que legalizou o aborto em todo o país, em 1973, aprofundou acentuadamente a divisão entre os estados democratas (Blue States) e os republicanos (Red States). Os estados em que há um certo equilíbrio partidário (Purple States) lidam com sua divisão interna. Enfim, pelo menos desde a Guerra Civil, os estados dos EUA estão mais desunidos do que nunca.

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A eleição para o Congresso pode ser afetada pela polêmica questão do aborto
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As repercussões foram muitas. Manifestações de protesto contra a deslegalização do aborto tomaram as ruas, barreiras foram montadas em volta da Suprema Corte, o volume de notícias, comentários e editoriais na mídia sobre o aborto superou as notícias sobre a guerra Rússia-Ucrânia, preocupações com possíveis revogações de outros direitos individuais surgiram, questionamentos sobre a credibilidade da Suprema Corte e propostas para reformá-la foram apresentadas, Samuel Alito cancelou participação na Conferência Judicial, ideias para "contornar" a proibição do aborto em cerca de metade dos estados foram expressas e, por fim, ocorreu uma mudança inesperada nas perspectivas das eleições de novembro, por causa da decisão.

Os conservadores-republicanos do país celebraram o provável fim da legalização do aborto, mas o vazamento da minuta de Alito teve um efeito colateral indesejável para eles: a vantagem que tinham nas pesquisas de intenção de voto praticamente desapareceu, porque tudo indica que a Suprema Corte vai votar contra a opinião pública: 69% dos eleitores do país se declararam contra a revogação de Roe vs. Wade, segundo pesquisa da CNN, feita em janeiro. Isso inclui, além da maioria dos democratas e uma minoria de republicanos, 72% dos eleitores independentes (ou sem partido) — e são esses que, no final das contas, decidem as eleições nos EUA, para um lado ou para o outro.

Antes do vazamento da minuta de Alito, as pesquisas de indicação de voto indicavam um favoritismo do Partido Republicano, porque a maioria dos eleitores está descontente com a condução da economia pelo presidente Joe Biden e com a inflação. Os preços da gasolina subiram muito com a guerra Rússia-Ucrânia e a muita gente acredita que a culpa disso é de Biden.

Enfim, as notícias sobre a revogação de Roe vs. Wade trouxeram um equilíbrio a esse quadro. Os eleitores democratas, entre os quais existem muitos "apáticos", que normalmente não se dão ao trabalho de enfrentar as filas dos locais de votação, porque o voto não é obrigatório nos EUA, e muitos eleitores independentes encontraram motivação para ir às urnas e votar em candidatos a favor da liberdade de escolha das mulheres — ou seja, a favor do aborto —, mesmo que tenham de passar horas ao sol, se for necessário.

As eleições de novembro são extremamente importantes porque estará em jogo o controle do Senado e da Câmara dos Deputados. Hoje, as duas casas são controladas pelo Partido Democrata — no Senado, por um fio: o Partido Republicano tem 50 senadores, o Partido Democrata tem 48, mais o voto confiável de dois senadores independentes e mais o voto de minerva da presidente do Senado, a vice-presidente Kamala Harris, em casos de empate.

O Partido Republicano sonha com a reconquista da maioria no Senado, que perdeu nas últimas eleições. Em nível federal, estão em disputa 34 cadeiras no Senado (ou um terço dos senadores) e todas as 435 cadeiras da Câmara. Em nível estadual, haverá eleições para governadores de 36 dos 50 estados do país, 30 vice-governadores, 30 procuradores-gerais e 27 secretários de estado — além de eleições para senadores e deputados de todas as assembleias legislativas, o que é mais importante, porque são eles que vão legislar sobre o aborto, após a revogação de Roe vs. Wade, segundo a Ballotpedia.

Onde morar?
O provável fim da legalização do aborto levou muitos americanos a pensar em alternativas de vida — uma das quais é onde morar. Para o cidadão liberal-democrata, será duro morar em um Red State porque, com maioria republicana na Assembleia Legislativa e governador republicano, não só o aborto será proibido ou restrito, mas outras liberdades individuais poderão desaparecer, se a moda de anular precedentes pegar. Para o cidadão conservador-republicano é o contrário.

Embora o ministro Samuel Alito tenha escrito em seu voto que a decisão de revogar o precedente só vale para o aborto, o fato é que os Red States e os Purple States que tenham governador republicano e maioria republicana na Assembleia Legislativa irão atacar outros precedentes que garantam direitos de que eles não gostam.

Estão na lista, por exemplo, os direitos ao casamento gay (marriage equality), de não discriminação de gays no trabalho e na recusa de confeccionar bolos de casamento, de controle da natalidade, ao Obamacare (o seguro-saúde de quem não pode pagar um seguro particular), leis que regulam a posse e porte de armas, questões que violam o princípio da separação igreja-estado, o controle das emissões de dióxido de carbono e outras leis ambientais (como as que restringem a produção de carvão e o consumo de energia derivada do petróleo), leis que regulamentam o voto etc.

A estratégia dos estados republicanos poderá ser a mesma que funcionou na questão do aborto: aprovar leis que violam jurisprudências, serem processados e levar o caso à Suprema Corte, que tem seis ministros conservadores contra três liberais. Embora não possam contar com o voto do presidente da corte, ministro John Roberts, que é avesso à revogação de precedentes, a probabilidade de uma vitória por 5 a 4 é alta.

Além de pensar sobre o estado em que querem viver, os defensores do aborto também avaliam as possibilidades de sabotar a proibição ou as restrições nos estados republicanos. Uma "saída" já é realidade: a do "turismo do aborto", uma solução encontrada por mulheres que têm recursos para viajar para estados em que o aborto ainda não é proibido ou restrito. Para as mulheres sem recursos financeiros, há duas alternativas em consideração: uma, a ideia do governo Biden de custear a viagem e a estada delas por meio de um programa de governo; outra, a da criação de fundos por cidadãos para a mesma finalidade.

Para a revista The Economist, o que os americanos estão mais matutando, no momento, é na possibilidade de mudarem para um estado mais afinado com suas consciências. O problema, segundo a revista, é o de que, em um país em que a grande maioria em um estado é republicana e que a grande maioria do estado vizinho é democrata, não se pode esperar que eles se unam em qualquer projeto nacional. "Estados que convivem nessas circunstâncias dificilmente serão unidos", diz a revista.

Outra alternativa considerada pelos liberais-democratas é reformar a Suprema Corte. Só que não há uma unidade de pensamentos, nem determinação política para seguir um caminho. Alguns querem aumentar o número de ministros para 11, a fim de restabelecer, de certa forma, o equilíbrio: cinco ministros que sempre votam com base na ideologia conservadora, cinco ministros que sempre votam com base na ideologia liberal e John Roberts com voto de minerva. Essa alternativa é desmerecida com o jargão de "empacotamento da corte".

Outra alternativa seria acabar com o mandato vitalício dos ministros e estabelecer a aposentadoria compulsória após 18 anos de serviço, com o quadro sendo renovado a cada dois anos. Isso daria oportunidade a cada presidente de nomear dois novos ministros em cada mandato de quatro anos. Outra ideia seria a de se ter 15 ministros: cinco conservadores, cinco liberais e cinco sem ideologias conhecidas, escolhidos pelos outros dez ministros.

À ideia de uma comissão de juristas apresentar uma lista tríplice de juízes para o presidente indicar um deles para a confirmação no Senado nenhum político dá importância. Ninguém quer perder a oportunidade de aparecer na mídia durante o processo de confirmação do juiz indicado, televisionado ao vivo por várias cadeias de televisão.

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