Observatório Constitucional

Indulto, trânsito em julgado e o Supremo Tribunal Federal

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7 de maio de 2022, 14h34

Do ponto de vista político, o indulto de Bolsonaro a Daniel Silveira é inegável afronta ao STF. Ato de um governante que, em vez de se posicionar em defesa das instituições democráticas, agracia um indivíduo condenado por as atacar. Do ponto de vista jurídico, há pelo menos três diferentes dimensões em debate: (i) sua validade, (ii) seus efeitos sobre os aspectos secundários da condenação e (iii) a possibilidade de se extinguir a punibilidade antes do trânsito em julgado.

A constitucionalidade do decreto de indulto é objeto de quatro ADPFs, de relatoria da ministra Rosa Weber. As duas outras questões devem ser decididas no curso do mesmo processo em que Silveira foi condenado, conforme decisão do ministro Alexandre de Moraes. Assim, mesmo que a constitucionalidade do decreto seja reconhecida, o STF deverá se pronunciar sobre a questão da inelegibilidade e sobre a eventual incidência do indulto antes mesmo do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Quanto a esse último ponto, o ministro Alexandre de Moraes estruturou o debate colocando doutrina (exigindo o trânsito em julgado) contra jurisprudência (com decisões do STF relativizando essa exigência). Nesses termos, exigir o trânsito em julgado aparentemente dependeria de o STF decidir rever seu posicionamento, com implicações para diversos outros réus que se beneficiem de indultos presidenciais. Como se, para encontrar uma solução juridicamente adequada para o caso, tivéssemos que sacrificar jurisprudência reiterada do tribunal e os interesses de réus futuros.

Mas não precisaria ser assim.

Essa discussão é prejudicada pelo tratamento genérico do instituto, sem distinguir entre o indulto individual e coletivo. Algumas das razões que justificam a desnecessidade do trânsito em relação ao indulto a este, não se materializam da mesma maneira em relação àquele.

Os diversos precedentes citados por Moraes sobre a desnecessidade do trânsito em julgado dizem respeito a indultos coletivos. É natural que seja assim. O indulto individual é significativamente mais raro, não havendo notícia de seu uso após 1988. Além disso, o indulto coletivo afetando diversas pessoas indeterminadas, que podem estar ou não incluídas conforme se encaixem ou não nos seus critérios, levantam maiores possibilidades de dúvidas, injustiças e judicialização.

Quais seriam os motivos para se exigir ou não o trânsito em julgado em indultos coletivos? De um lado, o indulto estabelece certos critérios objetivos relativos ao crime específico e à pena e seu cumprimento, dependendo a concessão do benefício de o indivíduo se enquadrar ou não especificamente nessas hipóteses. Assim, é natural que se leve em consideração a pendência de recurso da acusação que poderia levar a diferente enquadramento, mudando a situação do indivíduo de forma a que ele não mais se enquadre nos critérios para o indulto.

De outro, diferentes indivíduos em situações praticamente idênticas podem ter suas sentenças transitado em julgado ou não a depender do julgamento mais ou menos célere de um recurso que em nada afetaria a sua situação, ou que poderia apenas beneficiá-lo. Seria difícil de justificar, manter essa pessoa sob os efeitos de uma condenação apenas porque o processamento de seu recurso não se deu de maneira tão célere quanto a de outro apenado.

Note-se, no entanto, que esses problemas não se manifestam da mesma maneira no caso de um indulto individual.

No indulto individual, à primeira vista, poderia parecer que faria ainda menos sentido exigir o trânsito em julgado. Afinal, uma vez manifesta a intenção do presidente em agraciar o condenado de tudo aquilo que ele é acusado, independentemente de ele ser efetivamente condenado ou não, a dúvida colocada no caso de indulto coletivo não se manifesta. Não haveria cenário no qual esperar o trânsito em julgado seria necessário para se ter certeza de que o agraciado de fato se encaixa nas condições do indulto. Mas essa é uma compreensão do instituto que não leva a sério a ideia de que, no caso do indulto individual, por ter destinatário certo, é fundamental que haja uma manifestação final do poder judiciário que deixe claro pelo que, afinal, aquele indivíduo específico foi condenado, para que os cidadãos e o Poder legislativo, únicos que podem responsabilizar politicamente o presidente diante de sua decisão de agraciar uma pessoa, possam julgar por si próprios a razoabilidade dessa decisão.

No caso do indulto coletivo, não há necessidade de escrutínio político do caso concreto, mas apenas do caso abstrato, cabendo ao judiciário verificar se a situação se materializou ou não em relação a indevidos concretos, mas indeterminados (e à opinião pública, avaliar politicamente se os critérios gerais estabelecidos pelo presidente foram adequados). No caso do indulto individual é o contrário: temos um indivíduo concreto determinado, que o presidente pretende agraciar independentemente de uma decisão final sobre o seu caso. Mas justamente aqui é fundamental que o judiciário estabeleça pelo quê, de fato, esse indivíduo deveria ter sido responsabilizado, não fosse a intervenção presidencial. É preciso haver clara contraposição entre condenação e indulto. Solução diferente seria análoga a permitir que o presidente vetasse uma lei em meio a sua tramitação legislativa, quando ainda não se sabe ao certo qual será sua configuração final.

Essa proposta de diferenciação tem duas vantagens. A primeira é que tal entendimento, necessário para preservar a autoridade e dignidade do judiciário quando em um confronto específico sobre um caso concreto com o presidente da república, não afetaria negativamente outros réus. Não afetaria aqueles indivíduos em situação específica que preenchem os critérios de um indulto coletivo, mas que não obtiveram ainda uma decisão final por motivos arbitrários e fora de seu controle.

A segunda vantagem é permitir que o STF se pronuncie sobre o caso concreto, não para reverter precedentes cuja lógica reafirmada reiteradamente faz todo sentido, mas para se posicionar sobre uma situação distinta, que exige seu posicionamento, porque não foi objeto de consideração pelo tribunal na vigência da Constituição atual. Assim, em vez de reverter seu posicionamento, o STF estaria apenas fazendo uma distinção relevante entre casos em relação aos quais há jurisprudência reiterada e uma nova hipótese em que isso não se verifica. Afinal, em um contexto em que o STF exige respeito de outras instituições à autoridade de suas decisões, seria salutar que o tribunal também tivesse essa atitude diante de seus próprios precedentes.

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