Opinião

Guarda civil municipal não é polícia de segurança pública

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7 de maio de 2022, 11h06

A Constituição da República, em seu artigo 144, elenca os órgãos que comporão a segurança pública, sendo eles a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal (atualmente inexiste), as polícias civis estaduais, as polícias militares e corpos de bombeiros militares estaduais, além das polícias penais federais e estaduais (estas incluídas pela Emenda Constitucional nº 104/2019).

Outrossim, em relação aos municípios, dispôs, em seu § 8º, que estes poderão instituir guardas municipais destinados à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

Nesse diapasão, a lei federal mencionada na Constituição é a de nº 13.022/2014, a qual dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais.

O próprio Estatuto Geral das GCMs estabelece, em seu artigo 4º, em consonância com a Carta Magna, que "é competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município".

Aliás, em seu artigo 5º, o Estatuto prescreve que a competência específica das guardas municipais deverá respeitar "as competências dos órgãos federais e estaduais".

Dentre as competências dos órgãos estaduais, está a da Polícia Militar de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, conforme o § 5º do artigo 144 da Lei Maior.

Portanto, vemos de antemão que as guardas municipais não exercem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, pelo menos não com a mesma amplitude e intensidade das polícias militares, sob pena de invasão de competência constitucional.

Aliás, esse é o entendimento esposado pelo Ministério Público de São Paulo, através da nota técnica nº 8 sobre a Guarda Municipal e a lavratura de TCO, de autoria da Secretaria Especial de Políticas Criminais e do Centro de Apoio Operacional Criminal CAOCrim [1], segundo o qual

"Na qualidade de agentes de segurança, salvo no caso de flagrante – repise-se – devem exercer um papel de cooperação, jamais de protagonismo. Essa impressão parece se reforçar a partir da edição da Lei n° 13.022/2014, que, em seu artigo 5°, estabelece competências específicas que abrem espaço para que as guardas municipais atuem em colaboração com os demais órgãos de segurança." (g. n.)

Nessa senda, o professor Pedro Lenza enfatiza, no capítulo sobre "Polícias dos Municípios" de sua obra, que fora ajuizada no Supremo Tribunal Federal a ADI nº 5.156 contra a Lei nº 13.022/2014, a qual não foi conhecida em virtude da ilegitimidade ativa para a propositura. Contudo, ressaltou que, como bem anotou José Afonso da Silva [2],

"Os constituintes recursaram várias propostas no sentido de instituir alguma forma de polícia municipal. Com isso, os Municípios não ficaram com qualquer responsabilidade específica pela segurança pública. Ficaram com a responsabilidade por ela na medida em que, sendo entidades estatais, não podem eximir-se de ajudar os Estados no cumprimento dessa função. Contudo, não se lhes autorizou a instituição de órgão policial de segurança, e menos ainda de polícia judiciária. A Constituição apenas lhes reconheceu a faculdade de constituir Guardas Municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Aí, certamente, está uma área que é de segurança pública: assegurar a incolumidade do patrimônio municipal, que envolve bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens patrimoniais, mas não é de polícia ostensiva, que é função da Polícia Militar. Por certo que não lhe cabe qualquer atividade de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, que a Constituição atribui com exclusividade à Policia Civil (art. 144, § 4º), sem possibilidade de delegação às Guardas Municipais (…) Em relação às competências (geral e específica) previstas no art. 5º do estatuto, a sua interpretação deverá sempre levar em conta os parâmetros constitucionais de proteção dos bens, serviços e instalações do Município." (g. n.)

Nesse espírito, escreveu Rogério Tadeu Romano em artigo no site Jus Navigandi que "não pode, pois, a guarda municipal, executar tarefa inerente às Polícias Militares nos Estados. Se assim fizer estará extrapolando de sua missão constitucional" [3].

Em sentido semelhante, o professor Bernardo Gonçalves Fernandes assentou que o STF definiu, nos MI nº 6.515, 6.770, 6.773, 6.780 e 6.874 em 2018, que [4]

"A proximidade da atividade das guardas municipais com a segurança pública é inegável, porém, à luz do § 8º do art. 144 da CR/88, sua atuação é limitada, voltada à proteção do patrimônio municipal." (g. n.)

Nada obstante, o STF, em 2015, nos autos do RE nº 658.570/MG, fixou a tese, de ser constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas.

Nessa esteira, no RE nº 846.854/SP, o Tribunal Constitucional entendeu que "as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF)", proibindo esses servidores de exercerem o direito de greve.

Porém, a despeito do exercício de atividade de segurança pública, dela não são órgãos.

Além disso, em 2021, na ADC nº 38/DF, a Corte Máxima definiu que as guardas municipais possuem direito ao porte de arma independente do número de habitantes da cidade.

Nada obstante a Suprema Corte tenha reconhecido a essencialidade da guarda municipal nas atividades de segurança pública, em nenhum momento o tribunal afirmou que a instituição exerceria função de polícia ostensiva, tampouco em concorrência com a polícia ostensiva dos estados.

Aliás, conforme ressalta Eduardo dos Santos na linha do quanto definido neste trabalho [5],

"Os Municípios não possuem polícias, pelo menos não enquanto órgãos policiais de segurança pública. Entretanto, podem instituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (proteção do patrimônio público municipal), conforme dispuser a lei. A Lei 13.022/2014 regulamenta a instituição das guardas municipais, afirmando tratar-se de instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, que têm função de proteção municipal preventiva, estando subordinadas aos respectivos chefes do Poder Executivo Municipal, o que nos revela sua natureza de 'polícia administrativa' e não de órgão policial de segurança pública, já tendo o STF decidido, por exemplo, que a apreensão de entorpecentes por guardas municipais é inválida" [20].

De forma idêntica assinala o ministro do STF Alexandre de Moraes, para quem "a Constituição Federal concedeu aos Municípios a faculdade, por meio do exercício de suas competências legislativas, de constituição de guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária" [6].

De forma semelhante ensina a professora Nathalia Masson, quando escreve que "os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (art. 144, § 8°, CF/88). Referidas guardas, porque responsáveis pelo policiamento preventivo e ostensivo, possuem natureza de 'polícia administrativa' e não de órgão policial de segurança pública. Visam, portanto, impedir a realização de atos lesivos por infrações a regras do Direito Administrativo, não aplicando sanções de privação de liberdade. Nesse sentido, a missão dessas guardas é zelar pela boa conduta dos administrados no que se refere às leis e aos regulamentos administrativos concernentes à realização dos direitos de liberdade e propriedade" [7].

Destarte, a doutrina constitucionalista é unânime em não reconhecer as guardas civis locais como órgãos de segurança pública, pelo menos não no sentido estrito, exercendo, outrossim, atribuições de polícia administrativa na mesma intensidade que outros órgãos de fiscalização administrativa, nas sendas do artigo 78 do Código Tributário Nacional.

De seu turno, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na trilha do quanto aqui exposto, possui julgados que dão guarida à literalidade do texto constitucional. Vejamos trechos de alguns de julgados:

"Não se afigura razoável que a legislação municipal altere essa denominação para polícia municipal, quebrando a uniformidade da expressão adotada pela Constituição Federal e pelo próprio Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei Federal nº 13.022, de 8 de agosto de 2014), ainda que se argumente com a semelhança das funções, pois, os próprios dispositivos constitucionais diferenciam as atribuições da Guarda Municipal e as atividades policiais (exercidas para preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio)." (ADI nº 2098711-45.2019.8.26.0000)
"Guardas civis não são porque não devem mesmo ser policiais. Nossa ordem constitucional e legal é claríssima nesse sentido (…) Não podem os guardas municipais, sob o argumento de dispor de tais informações ou denúncias anônimas, procurar por veículos na cidade e, avistando-os, determinar ao condutor respectivo embora sem certeza visual alguma de crime, o que aí sim poderia ensejar a atuação de qualquer um do povo a parada imediata, sujeitando, como se policiais fossem, seus ocupantes e o próprio carro a procedimento invasivo de revista. Se o fizerem, a prova assim obtida e toda a investigação daí subsequente estarão contaminadas pela ilegalidade." (Apelação Criminal nº 0002974-40.2018.8.26.0079)

De outro vértice, o Superior Tribunal de Justiça, com o mesmo entendimento do Tribunal de Justiça paulista, possui julgados que anulam processos penais por contarem com atuação ostensiva e investigativa da Guarda Metropolitana. Vejamos algumas ementas de acórdãos:

"HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. PRISÃO EM FLAGRANTE. PROVA ILÍCITA. REVISTA PESSOAL REALIZADA POR GUARDA MUNICIPAL. ATIVIDADE DE INVESTIGAÇÃO. AUSÊNCIA DE ATRIBUIÇÃO. SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. JUSTA CAUSA NÃO VERIFICADA. ILEGALIDADE. OCORRÊNCIA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO.
(HC nº 561.329/SP)

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. QUANTIDADE DE DROGAS E GERENCIAMENTO DO TRÁFICO NA LOCALIDADE. PRISÃO EM FLAGRANTE. GUARDA MUNICIPAL. DENÚNCIA ANÔNIMA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. ILEGALIDADE. INEFICÁCIA DA PROVA. ORDEM CONCEDIDA. EFEITO EXTENSIVO." (HC nº 667.461/SP)

Portanto, o que se percebe é a invasão de competência por consequência de uma atuação açodada dos agentes das guardas municipais, em flagrante violação ao princípio da legalidade que rege a administração pública (artigo 37, caput, CF).

Além do mais, como muito bem lembrado pelo delegado de Polícia Federal Rodrigo Perin Nardi [8],

"Mais recentemente, ao julgar a ADI nº 2.575/PR (Info 938) o STF, mais uma vez, reafirmou seu posicionamento sobre a taxatividade dos integrantes dos órgãos de segurança pública, que estão previstos nos incisos I a VI do caput do artigo 144 da CF/88." (g. n.)

Contudo, existem projetos de lei, como o de nº 5.488/2016 na Câmara de Deputados, que visam efetivamente incluir as guardas civis no rol do artigo 144 da Constituição Federal, tornando-os de fato "polícias municipais".

Nada obstante, não há como concordar com a proposta apresentada.

Com efeito, como muito bem asseverou o advogado Marcelo Silva Souza em trabalho publicado na revista Jus Navigandi [9],

"Cumpre destacar que a proteção definida no § 8º do artigo 144 da Constituição refere-se à zeladoria do município, ou seja, à proteção ao patrimônio municipal, pois se contrário fosse à vontade do legislador constituinte originário, teria definido a guarda municipal como órgão de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas (…) E, ainda, jamais, evidentemente, podemos equiparar pessoas a bens, portanto, há uma limitação constitucional nas atribuições das guardas municipais." (g. n.)

Portanto, não se pode querer consertar o problema da segurança pública criando um outro problema, no caso para o erário e a gestão financeira municipal.

O ideal, no caso do policiamento ostensivo, é o investimento nas polícias militares por meio dos recursos estaduais.

Ademais, ousaríamos dizer que, nem mesmo por emenda constitucional seria possível alterar o atual esquema constitucional de segurança pública para incluir as guardas no rol do artigo 144, sem grave prejuízos ao seu harmônico e sistêmico funcionamento, principalmente tendo em vista os recursos disponíveis no âmbito dos municípios para fazer frente aos seus serviços.

Igualmente, não vemos como o julgado na ADI nº 6.621/TO possa alterar o entendimento aqui esposado, visto tratar exclusivamente sobre o quadro dos servidores da polícia científica do Estado.

Concluindo, para evitarmos maior insegurança jurídica sobre a sua natureza jurídica e atribuição, sugerimos que as guardas municipais fossem retiradas do artigo 144 e postas como competências dos municípios no artigo 30 da Carta Política Federal, pacificando-se de vez a questão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 13ª Ed – Salvador. Juspodivm. 2021.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 26ª Ed – São Paulo. SaraivaJur. 2022.
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 8ª Ed – Salvador. Juspodivm. 2020.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª Ed – São Paulo. Atlas. 2020.
NARDI, Rodrigo Perin. Direito Constitucional. Carreiras Políciais. Salvador. Editora Juspodivm. 2020.
ROMANO, Rogério Tadeu. Guarda Municipal. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55308/guarda-municipal Acesso em: 26/4/2022.
SANTOS, Eduardo dos. Direito Constitucional Sistematizado. – Indaiatuba/SP: Editora Foco. 2021.
SOUZA, Marcelo Silva. As guardas civis: um dilema na gestão municipal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, nº 5935, 1 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76371. Acesso em: 26/4/2022.


[2] Op cit. Pág. 1.909.

[3] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55308/guarda-municipal Acesso em: 26/4/2022.

[4] Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. Juspodivm. 2021. Pág. 1.972.

[5] Direito Constitucional Esquematizado. Editora Foco. 2021. Pág. 1.537.

[6] Direito Constitucional. 36ª ed. Atlas. 2020. Pág. 1.545

[7] Manual de Direito Constitucional. 8ª ed. Juspodivm. 2020. Pág. 1.647.

[8] Direito Constitucional. Ed. Juspodivm. 2020. Pág. 690.

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