Opinião

Cara de bandido: o efeito da aparência nas decisões judiciais

Autor

6 de maio de 2022, 6h02

Imagine que ocorreu um crime violento na cidade em que você mora. A polícia apresentou dois suspeitos, cujas fotos foram anexadas abaixo.

Reprodução
Reprodução

Se você tivesse que dar um palpite despretensioso, usando apenas a sua intuição, qual desses dois suspeitos você diria que foi o autor do crime violento? Quem você diria que tem mais "cara de bandido"?

Se você for como um dos participantes de um estudo desenvolvido por Alexander Todorov, provavelmente indicaria o suspeito B como o possível perpetrador do crime. De fato, cerca de 86% das pessoas consideram que o suspeito B aparenta ter uma feição menos confiável, mais ameaçadora e, portanto, mais provável de ser, em tese, um criminoso violento do que o suspeito A.

Spacca
O objetivo de Todorov, com esse estudo, era demonstrar que as pessoas, em geral, extraem informações relevantes sobre uma pessoa após uma rápida e superficial análise de suas expressões faciais, mesmo sem ter consciência dos reais motivos dessas inferências.

Ao olhar as duas fotografias, o cérebro humano capta vários estímulos sutis que estão presentes em ambos os rostos. Nosso sistema visual percebe o tamanho e o posicionamento dos olhos, o formato do queixo e da boca, as dimensões do nariz, da sobrancelha e da face. De cara, o cérebro deduz o gênero, a idade estimada e a cor da pele. Mas vai além.

De modo inconsciente, o cérebro faz julgamentos sobre a confiabilidade, a periculosidade e a dominância apenas com base na impressão facial. A partir daí, mesmo com poucas informações, a mente categoriza, rapidamente, o sujeito B como mais provável de ter sido o autor de um crime violento.

E o curioso é que, com uma sutil manipulação das imagens, Todorov fez com que um rosto aparentemente mais confiável (suspeito A) se tornasse mais perigoso (suspeito B), influenciando substancialmente a impressão inicial sobre os atributos daquela pessoa!

Esse julgamento automático, inferido com base na impressão facial, é, em muitos sentidos, importante para o convívio social. A toda hora, estamos em contato com estranhos e precisamos formar algum tipo de juízo sobre o seu caráter, até para que possamos definir o tipo de interação que iremos ter. Por isso, mesmo sabendo que é errado julgar as pessoas apenas com base na aparência, desenvolvemos uma natural propensão para formar impressões, classificando automaticamente os indivíduos como mais ou menos confiáveis, mais ou menos agressivos, mais ou menos introvertidos apenas olhando rapidamente para o seu rosto.

O problema é que nossas primeiras impressões são enganosas, porque se baseiam em generalizações apressadas, nem sempre precisas. Não será um olhar rápido, de milésimos de segundos, que irá definir a personalidade de um ser humano. Mesmo assim, temos uma ilusão de que somos bons leitores de face e de que o rosto pode ser uma janela para alma de um indivíduo.

Essa ilusão pode ter efeitos perversos no sistema de justiça, como sugere a teoria da decisão com base no perigo (Dangerous Decision Theory), desenvolvida por Porter e Ten Brinke (2009).

O pressuposto da teoria é que as pessoas extraem conclusões sobre a credibilidade e a periculosidade de um réu apenas olhando o rosto rapidamente. Essa  impressão inicial tende a ser duradoura e é capaz de exercer uma influência poderosa na análise das provas produzidas sobre ele. Assim, as inferências subsequentes sobre culpabilidade serão racionalizadas na mente do decisor, podendo culminar em uma avaliação equivocada de culpa ou de inocência.

Para entender melhor, vale analisar um estudo empírico, conduzido por Natasha Korva, intitulado "Dangerous decisions".

No experimento, os participantes receberam um documento contendo os fatos e as provas de um crime de roubo, com a fotografia do respectivo réu anexada no papel. O detalhe é que os participantes foram divididos em quatro grupos, de acordo com a manipulação da foto: (1) acusado "mais confiável"; (2) acusada "mais confiável"; (3) acusado "menos confiável"; (4) acusada "menos confiável".

Reprodução
As imagens são estímulos usados por Natasha Korva em seu experimentoReprodução

 

Apesar de todos os elementos do caso serem idênticos em todos os cenários, mudando apenas a fotografia de um grupo para outro, o resultado demonstrou que a interpretação das evidências foi influenciada pelas avaliações intuitivas de confiabilidade facial extraída a partir da fotografia. Os acusados com rostos "menos confiáveis" (fotos 3 e 4) foram condenados com mais frequência e receberam penas mais altas do que os acusados com rostos "mais confiáveis" (fotos 1 e 2).

A conclusão é estarrecedora: "rostos que variam em percepção subjetiva de confiabilidade ativam preconceitos particulares e uma atitude de visão de túnel para a tomada de decisões que podem levar a condenações injustiças em um contexto legal" (KORVA E OUTROS, 2013 — tradução livre).

Isso acontece porque o cérebro funciona como uma rede de associações implícitas e explícitas, que se conectam automaticamente e produzem efeitos na memória, nos julgamentos e nas decisões. Estamos constantemente construindo categorizações mentais, até mesmo inconscientes, para facilitar o processo de tomada de decisão.

Dessa maneira, a aparência e as características a ela automaticamente associadas funcionam como etiquetas que irão influenciar o modo de se interpretar o comportamento humano, podendo distorcer a percepção e enviesar o julgamento.

O que ocorre, de fato, é a produção de uma visão de túnel, motivada pelo viés de confirmação, em que o julgador só enxergará aquilo que a sua mente está preparada para enxergar.

Em outras palavras, a aparência ativará associações mentais automáticas que tenderão a influenciar o julgamento em direção às expectativas criadas. Assim, se a mente rotula um rosto como "menos confiável", o cérebro irá perceber com muito mais facilidade a culpa. Por sua vez, se o rosto ativar um "gatilho de inocência", o cérebro terá mais facilidade de perceber e processar as provas absolutórias em detrimento das incriminatórias.

Essa distorção pode gerar uma injustiça em duas direções. Por um lado, prejudica as pessoas com rostos "menos confiáveis", que serão condenadas mais facilmente e receberão penas mais altas. Por outro lado, favorece pessoas que têm rostos "mais confiáveis", gerando um julgamento mais leniente, inclusive com penas mais baixas.

Assim, aquelas pessoas que têm a infelicidade de terem rostos que não inspiram confiança aos olhos do julgador estão em desvantagem em nosso sistema de justiça. Para essas pessoas, é muito mais difícil provar a inocência, pois já existe uma propensão em vê-las como culpadas e merecedoras de uma sanção mais grave. É como se a “cara de bandido” fosse, por si só, um indício de culpabilidade!

Tal dificuldade é ainda maior quando há fatores interseccionais que possam contribuir para aumentar a percepção de culpa, como a raça, a (falta de) atratividade ou o pertencimento a algum grupo estigmatizado. Nesses casos, a aparência associada com outros fatores prejudiciais podem se combinar para gerar sentenças ainda mais enviesadas.

Essa avaliação enviesada compromete a realização da justiça e precisa ser enfrentada com mecanismos adequados de desenviesamento e de controle do processo decisório.

O tema é novo e desafiante em várias dimensões, mas uma coisa é certa: a discriminação por preconceito implícito em desfavor das pessoas com rostos “menos confiáveis” produz injustiças. Essas injustiças são inaceitáveis em um modelo jurídico que pretende ser imparcial e alicerçado no valor do igual respeito e consideração para todos os seres humanos. A pseudociência lombrosiana precisa ser varrida não só da consciência popular, mas também do inconsciente dos juristas!

PS. Se quiser saber mais sobre esse tema, recomendo enfaticamente este livro, de Alexander Todorov, que foi um dos livros mais impactantes que já li. Apesar de ser uma edição com estoque limitado, com poucas unidades, é uma obra de extrema utilidade para qualquer jurista que queira entender como a aparência influencia os julgamentos.

PS2. Para saber mais sobre discriminação por preconceito implícito, a fonte principal, no Brasil, é meu livro "Discriminação por Preconceito Implícito". Pode ler sem medo! Você conhecerá, com uma linguagem bem clara, os fundamentos da revolução nas ciências cognitivas que está transformando o sistema de justiça no mundo todo!

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!