Opinião

A graça de Jair Bolsonaro: conflito entre Poderes do Estado e desvio de finalidade

Autor

  • Daniel Guimarães Zveibil

    é mestre e doutor em Direito Processual pela USP com trabalhos no campo do Direito Processual Constitucional membro do Ceapro e do IBDP professor de pós-graduação e defensor público no estado de São Paulo com atribuições no Tribunal do Júri da capital.

6 de maio de 2022, 10h04

Em virtual nulificação do abusivo decreto que concede graça (indulto individual) ao deputado federal Daniel Silveira, é indispensável que o Supremo Tribunal Federal evite o efeito ou dano colateral de se desmantelar longeva jurisprudência dos tribunais superiores que protege o indulto como legítimo mecanismo de controle no sistema de freios e contrapesos, por reconhecer, nele, importante instrumento na defesa de direitos humanos de quem sente o peso do poder punitivo do Estado [1].

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Em linhas gerais, o que a jurisprudência decide há muitos anos em matéria de indulto e comutação (indulto parcial)?

Superior Tribunal de Justiça [2] e Supremo Tribunal Federal [3] são firmes no sentido de que a análise judicial de pedido de indulto ou de comutação de pena deve restringir-se unicamente ao exame do preenchimento dos requisitos previstos no decreto presidencial, pois os requisitos para concessão desses mecanismos despenalizadores são de competência privativa do presidente da República [4]. O voto vencedor do ministro Alexandre de Moraes, na ADI 5.874/DF, faz minucioso inventário sobre o tema revelando que o tribunal enxerga o poder constitucional de indultar e comutar penas como ato de governo do presidente da República com ampla discricionariedade, asseverando que nem lei ordinária pode restringir tal poder, e que ao estabelecer os requisitos para concessão de indulto e comutação o presidente da República deve observar somente os limites impostos pela própria Constituição em seu artigo 5º, inciso XLIII.

A posição jurisprudencial consolidada em nossos tribunais superiores contribuiu, ao longo dos anos, para que nosso caótico sistema penitenciário não fosse pior do que já está. Lembrando que o próprio Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF MC 347, reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" de nosso sistema prisional devido à superlotação carcerária, às condições terrivelmente desumanas de custódia e violação massiva de direitos fundamentais de presos. O trágico seria mais trágico, se assim é permitido dizer.

Por isso, todo o cuidado é pouco na operação de se declarar (a justa) nulidade do decreto de graça do presidente da República que beneficia seu aliado político, devendo o Supremo Tribunal Federal atentar em sua motivação para que não acarrete alteração da jurisprudência consolidada a respeito do tema em prejuízo de milhares de condenados em todo o Brasil.

Para se atingir esse objetivo, é fundamental que o Supremo Tribunal Federal realize distinção (distinguish) deixando de aplicar a tese central da jurisprudência dos tribunais superiores, que é bem representada pela decisão majoritária na ADI 5.874. O tribunal deve reconhecer que a graça concedida em favor de Daniel Silveira é situação específica, de singularidade inequívoca, por dizer respeito a anormalidade político-institucional não se podendo aplicar como precedente a jurisprudência consolidada sobre o tema e construída principalmente de 1988 em diante considerando presos comuns e normalidade institucional.

A diversidade da situação explica-se principalmente porque a graça concedida vai além de acenar a aliados políticos do presidente da República e parte de seu eleitorado absolutamente fiel. O decreto de graça potencializa que extremistas se entreguem a condutas criminosas visando destruir instituições democráticas e nosso Estado democrático de direito, possibilitando que acreditem no perdão do presidente da República por supostamente "lutarem pela liberdade".

Ademais, é absolutamente revelador o fato de a graça ter sido concedida antes do trânsito em julgado, pois segundo comentador da Constituição de 1891, "o indulto antes da condemnação passada em julgado é a abolição do crime, característico da amnistia". Curiosamente, narra que "o Supremo Tribunal Militar, assim considerando, entre outros por accordam de 22 de maio de 1896, não admittindo no Presidente da República autoridade para conceder amnistias, não tem reconhecido legaes os indultos conferidos n'aquellas condições" [5].

Se a situação fática é política e bastante diversa dos indultos natalinos costumeiramente concedidos aos presos comuns, anualmente, desde o início dos anos 1980, estão corretas as vozes que vem asseverando "desvio de poder" ou de "desvio de finalidade" na concessão do indulto individual ao aliado político do presidente da República.

Somado a isso, leve-se em conta a pendência de grave conflito de atribuição entre Poderes do Estado (especialmente entre o Supremo Tribunal Federal e o Poder Executivo) com potencial de ruptura do sistema constitucional. Conflito de atribuição entre Poderes do Estado pode ser definido como "controvérsia (dúvida objetiva) envolvendo centros autônomos de poder, relevante ao sistema constitucional de freios e contrapesos, a respeito de investidura de atribuição (isto é, investidura de poder —meio— para a consecução de determinada tarefa pública —fim)".[6]

A dúvida objetiva no caso do decreto de graça reside no seguinte: o presidente da República pode fazer uso da graça beneficiando aliado político e esvaziando a competência do Supremo Tribunal Federal prevista no artigo 102, I, "b", da Constituição, no processamento e julgamento de crimes contra o Estado democrático de direito?

Essa perspectiva possibilita especularmos limites constitucionais ao poder de indultar que estão além da literalidade do artigo 5º, XLIII, da Constituição. Em outras palavras, abre a oportunidade para entrevermos limitação constitucional voltada a obstar tentativas de ampla destruição do sistema constitucional em vigor.

Sobre limitação constitucional ao poder de indultar, é interessante o exemplo do HC 72.391/DF. O paciente pediu clemência ao presidente da República para não ser extraditado, e o plenário do Supremo Tribunal Federal discerniu a impossibilidade do presidente da República do Brasil indultar crime de competência jurisdicional de Estado estrangeiro [7], da competência do presidente da República avaliar a conveniência e oportunidade da extradição prevista no Estatuto do Estrangeiro [8]. Essa limitação constitucional (de não indultar crime de competência jurisdicional de Estado estrangeiro) não está expressa no aludido inciso XLIII, do artigo 5º da Constituição, decorrendo de princípios pelos quais nosso país deve se reger nas relações internacionais: independência nacional e igualdade entre os Estados [9].

Deve haver cautela na tese jurídica do desvio de poder ou de finalidade, pois foi pensada em cima da ideia de ato administrativo, apurando-se se a valorização do motivo e a determinação do objeto estão alinhadas à finalidade do ato administrativo, elemento este devidamente fixado por meio de lei formal e vinculante ao administrador público. Por isso a terminologia "desvio de poder", segundo Caio Tácito, "procura indicar, graficamente, o movimento ilícito da vontade que, descumprindo a ordem legal, se dirige a alvo diverso daquele que lhe é determinado" [10].

O poder de indultar e comutar manifesta-se por meio de ato de governo, com ampla liberdade e sem a idêntica estruturação do ato administrativo, mesmo o ato administrativo dotado de aspectos discricionários. Portanto, deve-se extrair o desvio de poder ou de finalidade tendo como perspectiva os dispositivos constitucionais voltados para previsão, implementação, funcionamento e proteção do Estado democrático de direito.

O artigo 1º da Constituição — desdobrado por muitos outros ao longo do texto constitucional [11] — é suficiente para apuração desse desvio de poder, porque resume bem a submissão de todos ao império da lei pela cláusula "Estado democrático de direito", atraindo os objetivos fundamentais da República gravados no artigo 3º, sem os quais o "democrático" perderia sentido. Merece especial destaque o fato de a Constituição prever os estados de defesa e de sítio, os chamados "poderes emergenciais", em defesa do Estado e das instituições democráticas em seu Título V, e atribuir ao presidente da República participação decisiva no recurso a esses "poderes emergenciais" [12] em defesa do Estado Democrático de Direito — o que torna particularmente grave sua conduta de erodir princípios e regras decorrentes do Estado Democrático de Direito.

A partir desse conciso recorte normativo verifica-se limitação implícita na Constituição em matéria de indulto que não está expresso no texto do inciso XLIII, do artigo 5º. As atribuições constitucionais do presidente da República obviamente não podem ser utilizadas para violentar o Estado democrático de direito ao impedir o pleno funcionamento de outros Poderes em suas atribuições e potencializando que extremistas se aventurem em crimes contra o Estado Democrático de Direito, colocando o país à beira de gravíssima ruptura do sistema constitucional. O poder de indultar não pode ser excetuado dessa conclusão; simplesmente não há argumento racional para outra.

Tudo isso para dizer que é indispensável ao Supremo Tribunal Federal restaurar a ordem democrática, respeitado o devido processo legal, nulificando o mal-acabado decreto de graça à luz da gravíssima crise institucional entre Poderes do Estado. Porém, nesse grave mister deve lembrar-se da desditosa massa de condenados negros e pobres periféricos em geral, e que dependem da longeva jurisprudência consolidada em matéria de indulto.

Sendo assim, preconiza-se que o tribunal sobressaia a distinção do caso do deputado federal Daniel Silveira na fundamentação da decisão declaratória de nulidade do decreto de graça. Ou seja, que a decisão se refere a específica situação de anormalidade institucional, e não deverá ser aplicada às cotidianas controvérsias cotidianas na execução penal se não existir similaridade fática com o lamentável caso do aliado do presidente da República.


[1] Confira um apanhado crítico sobre o tema em: JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020, item n. 26.4, p. 745/746.

[2] AgRg no REsp 1.960.472 /R, rel. min. JESUÍNO RISSATO (Desembargador convocado do TJDFT), 5ª Turma, DJe 13/12/2021; AgRg no HC 623.203/SC, 5ª Turma, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 1/3/2021; HC 468.737/RS, rel. ministra LAURITA VAZ, 6ª Turma, Dje 10/4/2019; HC 456.119/RS, rel. ministro FELIX FISCHER, 5ª Turma, DJe 15/10/2018; Hc 333.859/SP, rel. min. NÉFI CORDEIRO, 6ª Turma, DJe 15/3/2016; AgRg no HC 266.785/SP, rel. min. JORGE MUSSI, 5ª Turma, DJe 2/2/2014; HC 207.570/SP, rel. min. LAURITA VAZ, 5ª Turma, DJe 2/10/2012; HC 164.149/SP, rel. min. Og Fernantes, DJe 16/11/2010; HC 103.983/SP, 5ª Turma, DJe 6/10/2008 etc.

[3] RHC 71.400, min. rel. ILMAR GALVÃO, 1ª Turma, DJ 30/9/1994; HC 81.565/SC, rel. min. SEPÚLVEDA PERTENCE, 1ª Turma, DJ 22/03/2002; MC em ADI 2795-6/DF, rel. min. MAURÍCIO CORRÊA, Plenário, DJ 20/5/2003; HC 84.829, rel. min. MARCO AURÉLIO MELLO, 1ª Turma, DJ 10/3/2005; HC 90.364, rel. min. RICARDO LEWANDOWISKI, Plenário, DJ 30/11/2007; HC 96431/RJ, rel. min. CEZAR PELUSO, 2ª Turma, DJ 15/5/2009; AI 701.673 AgR, rel. min. RICARDO LEWANDOWSKI, 1ª Turma, DJ 5/6/2009; HC 118.213, rel. min. GILMAR MENDES, 2ª Turma, DJ 4/8/2014; AP 83 AgR, rel. min. EDSON FACHIN, 1ª Turma, DJ 4/9/2019 etc.

[4] Constituição, art. 84, XII.

[5] CAVALCANTI, João Barbalho Uchoa. Constituição Federal Brasileira (1891). Prefácio de Walter Costa Porto. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, comentário ao art. 48, 6º, p. 189.

[6] ZVEIBIL, Daniel Guimarães. Revisitando nosso sistema de freios e contrapesos: conflito de atribuição, Poderes do Estado e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, Infraestrutura, Regulação e Compliance, n. 20, ano 6, São Paulo, RT, jan./mar. de 2022, p. 198.

[7] HC 72.391 QO/DF, rel. min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, DJ 17/3/1995, p. 05 do voto do relator: "o exercício da clemência soberana do Estado não se estende, em nosso direito positivo, aos processos de extradição, eis que o objeto da indulgentia principis restringe-se, exclusivamente, ao plano dos ilícitos penais sujeitos à competência jurisdicional do Estado brasileiro".

[8] Decisão foi baseada na revogada Lei nº 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro), artigo 89; atual Lei n.º 13.445/2017, artigo 95.

[9] Constituição, art. 4º, I e V.

[10] TÁCITO, Caio. O Desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. In: Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres). 1.º Volume. Renovar, 1997, p. 182. Mais adiante Caio Tácito diz que "o desvio de poder é, por definição, um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcada no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal" (Ibidem, p. 182 e 183.). Bandeira de Mello define desvio de poder como "utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a instituição" (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2.ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, cap. II, item “II”, p. 56).

[11] Dentre outros exemplos, o artigo 17 da Constituição é pertinente porque impõe à política partidária observância aos princípios e regras decorrentes do Estado democrático de direito. O Presidente da República, segundo artigo 85, incisos II e IV, comete crime de responsabilidade caso impeça o livre exercício de Poderes constituídos da União e demais unidades federativas e descumpra leis e decisões judiciais, competindo ao Legislativo o juízo a respeito de crime de responsabilidade, conforme artigo 86 da Constituição. Compete ao sistema de Justiça apurar crimes comuns contra o Estado democrático de direito.

[12] "Poderes emergenciais" é a nomenclatura adotada por Virgílio Afonso da Silva, para distinguir da expressão "estado de exceção" que normalmente é usada como sinônima de ausência de controle ou arbítrio. Sobre o tema: SILVA, Virgílio Afonso. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021, cap. 31, p. 617/626.

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    é defensor público do estado de São Paulo, mestre e doutor em Direito Processual pela USP com temas no campo do direito processual constitucional, membro do Ceapro e do IBDP e professor de pós-graduação lato sensu.

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