Opinião

Análise técnica das condutas típicas imputadas ao deputado Daniel Silveira

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

6 de maio de 2022, 11h11

Findo o julgamento do deputado Daniel Silveira pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, foi ele condenado à pena de oito anos e nove meses de reclusão em regime inicial fechado, além de ter sido declarada a perda do seu mandato eletivo e a suspensão dos direitos políticos enquanto durarem os efeitos da condenação, por crime previsto no artigo 18 da Lei de Segurança Nacional (atentado contra o Estado Democrático de Direito) e coação no curso do processo (artigo 344 do CP).

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Uma das questões levantadas foi a revogação da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7170/1983) pela Lei nº 14.197/2021, que tutela o Estado democrático de Direito. Tal fato poderia, em tese, resultar em abolitio criminis, com a consequente absolvição do deputado.

No entanto, isso não ocorreu de forma plena, advindo o fenômeno da continuidade normativa-típica, isto é, novo tipo penal descreve conduta semelhante ao tipo penal revogado, no caso o previsto no artigo 18 da LSN.

Nesta hipótese, segundo o STF, como o novo tipo penal correspondente (artigo 359-L, do CP), comina pena mais severa, aplicou-se a norma penal revogada (artigo 18 da LSN) por ser mais benéfica, ocorrendo a ultratividade da lei penal.

Contudo, a continuidade-normativa típica foi apenas parcial. É que o novo dispositivo tem redação parecida, mas com elementares objetivas a mais, que deverão se fazer presentes na conduta imputada e estarem descritas na denúncia. Só será o caso de se aplicar a norma revogada, mais benéfica, se houver adequação da conduta ao novo tipo penal. Do contrário, é o caso de absolvição pelo fato de a conduta imputada não mais constituir infração penal ou, ao menos, desclassificação para outra infração mais leve, no caso crime de ameaça previsto no artigo 147 do Código Penal.

O tipo penal imputado era previsto no artigo 18 da LSN e tinha a seguinte redação:

"Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos".

Já o novo tipo penal está assim definido:

"Art. 359-L do Código Penal: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência".

O verbo do tipo é tentar, isto é, realizar a conduta para que consiga a abolição do Estado Democrático de Direito, mesmo que não o consiga. A norma não exige que isso ocorra, mas que a ação seja voltada para esta finalidade.

A ação deve ter por propósito abolir o Estado Democrático de Direito, o que se dá mediante o impedimento ou a restrição do exercício dos poderes constitucionais, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com o emprego de violência ou grave ameaça, que são os modos de execução do delito.

Note-se, assim, que a conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, embora possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é "tentar abolir". Com isso, embora não ocorra a abolição do Estado Democrático de Direito, o que dar-se-ia, em regra, com golpe de estado ou revolução e a imposição de um regime totalitário, é exigido pela norma que um dos Poderes da República seja impedido ou ao menos tenha restringido o regular exercício de suas atribuições ou jurisdição.

Com efeito, os elementos objetivos "impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais", não se encontravam presentes no artigo 18 da LSN. Dessa forma, se não ocorreu o impedimento ou, ao menos, a restrição do exercício de um dos Poderes da República, não pode haver a condenação por delito consumado.

Além do mais, para a adequação típica, deve ter havido violência à pessoa ou grave ameaça e que a conduta tivesse o potencial de colocar em risco o Estado democrático de Direito, sendo essa a intenção do agente ao gravar o vídeo.

Meras bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, patacoadas ou desabafos, que não tenham o condão de colocar em perigo a ordem constitucional vigente, podem até configurar crime contra a honra e ameaça, mas não contra o Estado democrático de Direito.

Malgrado seja discutível, por se tratar de crime plurissubsistente, pode, em tese, ocorrer a tentativa, quando o sujeito, tendo como intenção a abolição do Estado democrático de Direito, empregar a violência ou a grave ameaça e não conseguir impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais.

Outro delito pelo qual o deputado foi condenado é o de coação no curso do processo, elencado no artigo 344 do Código Penal. Diz o dispositivo:

"Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral: Pena. Reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência".

A conduta consiste em usar de violência ou grave ameaça contra autoridade (juiz, delegado de polícia etc.), parte (autor, réu, membro do Ministério Público etc.), ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou procedimento do juízo arbitral (testemunha, perito, vítima, jurado, escrivão etc.).

O verbo do tipo é usar, que significa empregar ou utilizar.

O modo de execução do delito é a violência à pessoa ou a grave ameaça endereçada à própria vítima (ameaça direta) ou a pessoa a ela ligada por laços familiares ou de afeição (ameaça indireta).

A finalidade do agente ao empregar esses modos de execução deve ser o favorecimento de interesse próprio ou alheio relacionado com o processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou procedimento do juízo arbitral.

Assim, para que ocorra este delito, deve haver processo ou procedimento em curso, inclusive inquérito policial, e a intenção do agente ao empregar a violência à pessoa ou a grave ameaça é a de favorecer a si ou a terceiro nos referidos feitos (processo ou procedimento).

Como já dito, bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, desabafos ou patacoadas, que não tenham a finalidade de atrapalhar as investigações ou a produção da prova, influir na decisão do magistrado ou no ânimo de testemunha ou de parte em processo judicial de qualquer ordem ou procedimento, podem caracterizar o delito de ameaça ou contra a honra, mas não o de coação no curso do processo.

Resumindo:

Para a condenação pelo delito previsto no artigo 18 da LSN (aplicado em razão da ultratividade da lei penal mais benéfica) devem ser respondidas afirmativamente às seguintes indagações:

1) ocorreu violência à pessoa ou grave ameaça?; 2) a intenção do agente era abolir o estado democrático de direito?; 3) a conduta tinha potencial para colocar em risco o estado democrático de direito?; 4) houve o impedimento do exercício dos poderes constitucionais?; 5) houve a restrição ao funcionamento dos poderes constitucionais? (no caso de não ter havido o impedimento); 6) houve tentativa de impedir ou restringir o livre exercício dos poderes constitucionais? (no caso de não ter havido o impedimento ou a restrição); 7) Neste último caso, a conduta praticada tinha o potencial de impedir ou restringir o funcionamento dos poderes constitucionais?

Para a condenação pelo crime de coação no curso do processo (artigo 344 do CP), devem ser respondidas afirmativamente às seguintes indagações:

1) houve o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça? 2) havia processo judicial ou investigação criminal em curso? 3) a intenção do agente era favorecer a si ou a terceiro ao praticar a conduta? 4) a violência ou a grave ameaça foram endereçadas à testemunha, parte, magistrado ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo ou procedimento em curso?

Enfim, não discuto a correção, ou não, da condenação imposta ao deputado Daniel Silveira por desconhecer as provas contidas nos autos do processo e não ser, a meu ver, ético fazê-lo; simplesmente, com o presente artigo tenho a intenção de trazer à lume os elementos definidores dos tipos penais que embasaram a condenação para conhecimento do público.

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