Opinião

A emenda constitucional 117/2022 anistiou os partidos políticos?

Autor

  • Amanda Guimarães da Cunha

    é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch) juntamente com Luiz Magno Pinto Bastos Júnior.

6 de maio de 2022, 6h29

A dificuldade para se superar o gap da representatividade política da mulher no Brasil está atrelado a uma série de questões, mas sem dúvida a falta de incentivos e recursos financeiros está no cerne do problema. Para fazer frente a falta de apoio, inclusive intrapartidário, duas políticas afirmativas ganham destaque: a obrigatoriedade de repasse de 5% do Fundo Partidário (FP) à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres e de no mínimo de 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do FP para suas candidaturas.

A primeira foi inserida na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95) pela Lei 12.034/2009 e, apesar de uma série de alterações legislativas em sua redação[1], manteve a destinação primária para a qual foi prevista. A segunda, instituída inicialmente com os valores de 5% a 15% do FP e limitada a três legislaturas[2]. Com o julgamento da ADI nº 5.617/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) retirou a limitação temporal, bem como elevou os valores ao patamar mínimo de 30%, proporcionalmente à reserva de candidaturas de mulheres. Tal entendimento foi seguido posteriormente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para destinação do FEFC[3].

Com a promulgação da Emenda Constitucional 117/2022[4], estas regras foram alçadas a nível constitucional, por meio dos §7º e 8º acrescidos ao artigo 17, segundo os quais:

§ 7º Os partidos políticos devem aplicar no mínimo 5% dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários.
§ 8º O montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30%, proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário." (NR)

Não obstante, em que pese o avanço na positivação constitucional destas políticas afirmativas, que, com a devida vênia, já surtiam seus efeitos, a EC 117/2022 trouxe duas regras polêmicas que estão sendo acusadas de anistiar os partidos políticos que não tenham, até então, destinado os recursos conforme determinam essas políticas afirmativas.

A primeira delas, prevista no artigo 2º da EC 117/2022, prevê que os partidos políticos que não tenham ainda utilizado os recursos destinados aos programas de incentivo à participação da mulher na política (5% do FP), podem fazê-lo nas eleições subsequentes, sendo vedada a aplicação de sanções pela Justiça Eleitoral nos processos de prestação de contas de exercícios financeiros anteriores, desde que não tenham transitado em julgado até a sua promulgação[5].

No que diz respeito a esse ponto, a polêmica não é atual. Em outra oportunidade, quando se acusou a Lei 13.831/2019 de também promover uma anistia aos partidos que não tivessem repassados os mesmos recursos, defendemos o contrário[6].

Naquele contexto, em linhas gerais, explicamos que havia sido instituído um regime de transição pela Lei, em respeito aos primados da segurança jurídica e do devido processo legal, pois se estava, como se está novamente, diante de modificações que implicariam em consequências sancionatórias sobre direitos políticos fundamentais. Isso por que havia tido recentemente, e próximo ao pleito eleitoral de 2018, duas alterações jurisprudenciais que afetariam diretamente o uso de recursos públicos nas campanhas: a) a declaração de inconstitucionalidade dos § 5º-A e 7º, acrescidos até então ao art. 44, V, da Lei 9096/95 pela Lei 13.165/2015, na ADI 5.617/DF, os quais permitiam que os recursos de incentivo poderiam ser usados para o financiamento de candidaturas de mulheres (julgamento em 15/03/2018 e publicação em 3/10/2018, há três dias das eleições); e b) a guinada jurisprudencial do TSE em abril de 2019, que passou a entender que o descumprimento dos repasses destes valores ensejaria a rejeição de contas, até então não suficiente, por si só, a fazê-lo.

Dessa forma, os artigo 55-A e 55-B da lei 13.831/2019 previram que os partidos que tivessem utilizado os recursos de incentivo para o financiamento de campanhas de mulheres (conforme até então autorizado pela Lei 13.165/2015) não poderiam sofrer penalidades e, aqueles que ainda os tivessem em caixa, poderiam utilizá-los até as eleições de 2020, como forma de compensação.

Todavia, a polêmica maior se assentou sobre o artigo 55-C, que previu que a não observância do dever de repasse até o ano de 2018 não ensejaria a reprovação de contas. Dessa forma, teria "anistiado" os partidos que não fizeram quaisquer repasses, seja para a finalidade de fomento, seja para as candidaturas. Defendemos na oportunidade que esta norma havia se destinado a consolidar o entendimento do TSE aplicado até o início de 2019, de que a não utilização dos recursos do artigo 44, inciso V da Lei n. 9.096/95 não era considerada grave o suficiente para, por si só, ensejar a rejeição das contas anuais da agremiação partidária, estabelecendo apenas um marco temporal para incidência desse novo entendimento, qual seja o exercício de 2018.

Ressaltamos, também e especialmente, de que essa regra deveria ser interpretada de forma restritiva, ou seja, ela não se destinaria a impedir toda e qualquer forma de descumprimento ao artigo 44, V, da Lei 9096/95, mas tão somente referente ao uso dos recursos de incentivo para as campanhas, como entendo ocorrer com o artigo 2º da EC 117/2022.

A Lei 13.831/2019 não visou proteger, como também não a Emenda Constitucional, toda e qualquer forma de descumprimento da obrigação legal. Ela não pode, por exemplo, servir para anistiar os partidos políticos que, eventualmente, tenham destinados os recursos de fomento para financiar campanhas eleitorais masculinas, seja por meio de repasses diretos, seja de forma indireta por intermédio de candidaturas laranja. Da mesma forma que a norma não isenta de punição as agremiações partidárias que tenham se valido de simulação ou fraude para a utilização indevida de recursos originariamente destinados aos programas de fomento para mulheres.

Assim, segundo concluímos anteriormente, apesar do aparente efeito simbólico de perdão aos partidos políticos, que realmente em muitos casos sistematicamente não se esforçam para destinar os recursos para a finalidade prevista, nem a Lei n. 13.831/19, tampouco a EC 117/2022, realizaram quaisquer anistias aos partidos políticos inadimplentes.

Entretanto, há que se pontuar que, pela Lei 13.831/19, a restrição para a punição se daria apenas sobre a possibilidade de rejeição de contas para os gastos realizados até o pleito de 2018, mas não impediu a aplicação de outras sanções, como por exemplo a de multa prevista no § 5o do art. 44 da Lei dos Partidos Políticos.

Já com a EC 117/2022, agora por conta de seu artigo 3º[7], a vedação é para aplicação de sanções de quaisquer naturezas, e não somente a de rejeição de contas, prevendo ainda um aumento do lapso temporal de incidência dessas regras, qual seja a data de sua promulgação, 05/04/2022, para os processos que até então não tenham transitado em julgado.

A incidência desse artigo 3º vai além, estendendo a vedação de aplicação de quaisquer sanções decorrentes da não aplicação da cota mínima de recursos (30%) para a campanha de mulheres, negros e negras.

Neste aspecto, o Poder Legislativo realizou claramente uma modulação de efeitos, a qual foi aplicada após o julgamento da ADI 5.617/DF somente sobre a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento dos artigos que permitiam o desvio de finalidade dos recursos de incentivo[8]. A mudança do percentual mínimo para candidaturas de mulheres, que saltou dos 5% a 15% previstos em lei para o mínimo de 30%, se deu, portanto, às vésperas das eleições de 2018. Dessa forma, também, compreendo que as sanções seriam descabidas, ao menos sobre os valores que ultrapassassem a cota legal até então praticada.

No que diz respeito aos repasses pelas cotas raciais, tendo em vista que estas valerão efetivamente somente para as eleições deste ano de 2022, acredito que a regra se torna praticamente vazia de efeitos.

A partir desse panorama, não há como compreender como anistia as regras impostas pelos artigo 2º e 3 da EC 117/2022, ressaltando que a suspensão das punições, na forma prevista, deve ser interpretada de forma restritiva somente quanto à destinação do repasse de recursos de incentivo e da cota mínima para financiamento de candidaturas de mulheres, negros e negras.

As alterações anteriores à EC 117/2022 acarretaram não só em uma mudança de interpretação de regras eleitorais, como ampliaram as possibilidades para aplicação de sanções sobre direitos políticos fundamentais e, como tal, devem ser acompanhadas de um regime de transição, conforme prescreve o artigo 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[9].

Nesse sentido, ainda, importante pontuar que se parte do princípio de que, como quaisquer outras sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral às agremiações partidárias, as punições advindas da irregularidade na aplicação de recursos devem igualmente ser compreendidas como manifestação do jus puniendi estatal. Nessa qualidade, ensejam a observância das regras mínimas do devido processo legal, com destaque neste caso para a segurança jurídica, anterioridade e não retroatividade, dentro do que cunhamos como um regime de direito sancionador eleitoral[10],[11].

Dessa forma, a imposição por via judicial de indiscutíveis avanços, ante a omissão na sua ampliação e efetivação pelo Poder Legislativo, sem observar garantias mínimas, cobra seu preço. É preciso levar a sério as políticas de ação afirmativa em prol da participação da mulher, negros e negras na política, mas também é preciso levar a sério as regras que sustentam o Estado de Direito e o equilíbrio entre as instituições, valores fundamentais para o sustento e o avanço da própria democracia[12].


[1] Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados: […] V – na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei nº 13.877, de 2019) (Lei dos Partidos Políticos – Lei  9096/1995)

[2] Art. 9º Nas eleições que se seguirem à publicação desta Lei, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 . (Vide ADIN Nº 5.617)

[3] Art. 6 […] § 1º Os critérios a serem fixados pela direção executiva nacional do partido devem prever a obrigação de aplicação do total recebido do FEFC de acordo com os seguintes percentuais (STF: ADI nº 5.617/DF, DJE de 3.10.2018, e ADPF-MC nº 738/DF, DJE de 29.10.2020; e TSE: Consulta nº 0600252-18, DJE de 15.8.2018, e Consulta nº 0600306-47, DJE de 5.10.2020): (Redação dada pela Resolução nº 23.664/2021) I – para as candidaturas femininas o percentual corresponderá a proporção dessas candidaturas em relação a soma das candidaturas masculinas e femininas do partido, não podendo ser inferior a 30% (trinta por cento); (Incluído pela Resolução nº 23.664/2021) […] (Resolução 23.605/2019)

[5] Art. 2º Aos partidos políticos que não tenham utilizado os recursos destinados aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres ou cujos valores destinados a essa finalidade não tenham sido reconhecidos pela Justiça Eleitoral é assegurada a utilização desses valores nas eleições subsequentes, vedada a condenação pela Justiça Eleitoral nos processos de prestação de contas de exercícios financeiros anteriores que ainda não tenham transitado em julgado até a data de promulgação desta Emenda Constitucional.

[6] CUNHA, A. G. da; BASTOS JUNIOR, L. M. P. O Fomento à Participação Política feminina e o Controle do Jus Puniendi Estatal: a Lei n. 13.831/2019 sob a perspectiva do direito eleitoral sancionador. Resenha Eleitoral, Florianopolis, SC, v. 23, n. 1, p. 187–212, 2017. DOI: 10.53323/resenhaeleitoral.  v23 i1.115. Disponível em: https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/115  Acesso em: 11 abr. 2022.

[7] Art. 3º Não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional.

[8] “O Tribunal, por maioria, modulou os efeitos temporais da decisão para, exclusivamente em relação à declaração de inconstitucionalidade por arrastamento do § 5o-A e do § 7o do art. 44 da Lei 9.096, acrescidos pela Lei 13.165, assegurar que, sem que haja a redução de 30% do montante do fundo alocado a cada partido para as candidaturas femininas, os recursos financeiros de anos anteriores acumulados nas contas específicas de que cuidam esses dispositivos sejam adicionalmente transferidos para as contas individuais das candidatas no financiamento de suas campanhas eleitorais no pleito geral de 2018, nos termos do voto do Relator […] Plenário, 3.10.2018. (grifei)

[9] “A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.”

[10] Ibdem 7, p. 204-205

[11] CUNHA, Amanda Guimarães da. BASTOS JR, Luiz Magno Pinto. Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. 186 p.

[12] Ibdem 7, p. 209

Autores

  • é especialista em direito eleitoral e em ciências penais, membro-pesquisadora do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e professora de Direitos Humanos da Academia da Polícia Civil de Santa Catarina.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!