Opinião

Delegação de competência regulatória por meio de contrato de prestação de serviços

Autor

  • Daniel Garcia de Oliveira

    é advogado na área de infraestrutura da Spalding Sertori Advogados procurador do Estado de Goiás (Núcleo de Negócios Públicos da Assessoria do Gabinete do Procurador-Geral do Estado) MBA em PPPs e Concessões pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) em parceria com a London School of Economics (LSE) e especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

5 de maio de 2022, 13h04

A Lei federal 14.026/20, que reformou a Lei 11.445/07 e foi apelidada de novo marco legal do saneamento, caminha em vias de completar dois anos de existência e possui inovações pouco exploradas até hoje. Uma delas é a contratualização das agências reguladoras que atuarão nos contratos de concessão dos serviços de saneamento.

Antes, é preciso abrir um parênteses para destacar o protagonismo que o novo marco conferiu às agências reguladoras.

Em primeiro lugar (não de importância, mas de percepção), no plano federal, atribuindo à ANA (doravante, Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) relevantes competências normativas (expedição das chamadas "normas de referência"). Em segundo, nos demais níveis federativos, para as agências locais/regionais que regularão efetivamente os serviços, tanto sob a perspectiva técnica (observadas, preferencialmente, as normas de referência da ANA) quanto econômica, de modo a inclusive  definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos quanto a modicidade tarifária (artigo 22, IV, Lei 11.445/07).

A importância dessas últimas é tamanha que no âmbito dos serviços de saneamento básico, diferentemente de outros setores de infraestrutura (ex. transportes rodoviários), não se admite a concentração das competências de poder concedente e de regulação. Ou seja, quem concede não regula e vice-versa.

Especificamente no setor do saneamento, todos os contratos de prestação de serviços devem ser regulados por uma agência constituída sob a forma de autarquia dotada de independência decisória e autonomia administrativa, orçamentária e financeira (artigo 21 da Lei 11.445/07).

Com efeito, a questão levantada neste ensaio tem a ver com os municípios (titulares por excelência dos serviços de saneamento) que não possuem (nem pretendam instituir) na estrutura administrativa a sua "própria" agência reguladora, pois deverão, nos termos do novel artigo 21, §§ 1º e 1º-A, da Lei 11.445/07, delegar a regulação da prestação dos serviços a qualquer entidade reguladora (podendo ser inclusive de outros estados da Federação).

A maior novidade, contudo, é enunciada no §1º-B, primeira parte, do aludido artigo, também introduzido pela Lei 14.026/20. Dispõe ele que: "Selecionada a agência reguladora mediante contrato de prestação de serviços, ela não poderá ser alterada até o encerramento contratual, salvo se deixar de adotar as normas de referência da ANA ou se estabelecido de acordo com o prestador de serviços".

Uma leitura apressada do dispositivo parece dar margem para interpretação no sentido que as delegações às agências reguladoras serão instrumentalizadas, doravante, por meio de contratos de prestação de serviços em que figurarão como parte contratante o titular do poder concedente e contratada a agência reguladora.

Entretanto, essa compreensão esbarra em um paradigma consagrado no Direito Administrativo: só se delegam atividades típicas de Estado por lei ou convênio; jamais por contrato.

Afinal, o contrato (mesmo o administrativo) pressupõe contraposição de interesses egoísticos e, em regra, equivalência de encargos e contraprestações (caráter bilateral e sinalagmático), ao passo que o convênio é o instrumento negocial que congrega esforços recíprocos e mútua colaboração em prol de objetivos institucionais comuns.

Para além de uma premissa teórico-dogmática, tal pressuposto está sedimentado em nosso ordenamento jurídico-normativo. É verdade que a Constituição da República apenas o pincela nos artigos 37, XXII, e 241, porém é no plano legal que o emprego do convênio como instrumento negocial de delegação de competências estatais típicas entre entes federados (Administração-Administração) se consagra, remontando-se ao art. 10, § 1º, "b" e "c", do Decreto-lei 200/67.

Mais exemplos não faltam: Código de Trânsito Brasileiro (artigo 23, III, 25 e 25-A); Lei 9.427/96 (artigo 3º, IV, e 20) (ANEEL); Lei 10.233/01 (artigos 12, I; 24, caput, I, parágrafo único, I; 25, IV; 26, VII e §5º) (ANTT e Antaq). Também vale enfatizar a Lei 11.250/05, que regulamenta o inciso III do §4º do artigo 153 da Constituição Federal e dispõe sobre a delegação mediante convênios, da União para Municípios, da capacidade tributária ativa do imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR) (lançar, cobrar e fiscalizar o imposto).

Dentro desse panorama e a partir de uma perspectiva lógico-sistemática, a melhor interpretação é no sentido de que o vínculo entre o poder concedente dos serviços de saneamento e a "agência reguladora selecionada" continuará a ser formalizado, mesmo sob égide do Novo Marco Legal, por meio de convênios.

Não há dúvidas da enorme influência que a escolha da agência reguladora exerce para o sucesso ou fracasso da licitação da concessão dos serviços de saneamento, isto é, para a atratividade (ou repulsa) dos agentes econômicos interessados na adjudicação do objeto.

Isso porque quanto mais acreditada é uma agência (no sentido de independente, autônoma e politicamente apartidária), maior a chance de acirramento da concorrência dos agentes de mercado e a consequente obtenção de condições vantajosas para o poder concedente (e, em última análise, aos usuários dos serviços).

Daí por que o novo marco ter inovado ao dispor que, uma vez selecionada a agência reguladora, não poderá ser alterada até o encerramento contratual, salvo se deixar de adotar as normas de referência da ANA ou se estabelecido de acordo com o prestador de serviços.

Essa aderência, contudo, por mais louvável, não se justifica a todo e qualquer custo, sobretudo quando há espaço interpretativo para a preservação da metodologia jurídico-científica, como ora se defende.

O contrato de prestação de serviços aludido no artigo 23, §1º-B, da Lei 11.445/07 refere-se, na verdade, ao próprio contrato de serviços de saneamento (de concessão, por excelência, na linha do art. 10), no qual a agência reguladora figurará como interveniente-anuente. A parte final do dispositivo ("ou se estabelecido de acordo com o prestador de serviços") corrobora essa interpretação, tendo em vista que a substituição da agência reguladora dar-se-á, além do descumprimento das normas de referência da ANA, quando acordado consensualmente com o concessionário (= prestador de serviços).

Em resumo: o contrato de concessão interligar-se-á ao convênio entre concedente e agência reguladora, formando um arranjo em prol da delegação (tanto dos serviços quanto das competências regulatórias). E para garantir o objetivo buscado pela lei (aderência da agência à concessão), bastará sincronizar o prazo de vigência do convênio ao do contrato de concessão regulado.

 Apesar dos inegáveis avanços da Lei 14.026/20, a redação do §1º-B do artigo 23 da Lei 11.445, por aquela incluído, ressente-se de atecnia, tanto para um sentido (de que a delegação das funções regulatórias passou a ser instrumentalizada não mais por convênio, mas por um "contrato de prestação de serviços") quanto para outro (de que a seleção da agência reguladora materializar-se-á dentro do "contrato de prestação de serviços", entendido como tal o próprio contrato de concessão).

Todavia, o último sentido, ora defendido, quando atrelado ao convênio de delegação, é o que concilia premissas teórico-dogmáticas e ainda proporciona mais facilidades do ponto de vista pragmático, considerando a maior burocracia inerente a uma contratação (no sentido estrito) administrativa direta por dispensa ou inexigibilidade quando comparada à celebração de um convênio.

Autores

  • é advogado na área de infraestrutura da Spalding Sertori Advogados, procurador do Estado de Goiás (Núcleo de Negócios Públicos da Assessoria do Gabinete do Procurador-Geral do Estado), MBA em PPPs e Concessões pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) em parceria com a London School of Economics (LSE) e especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

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