Marcha ao retrocesso

Revogação de Roe v. Wade ameaçaria sistema de precedentes e liberdades individuais

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4 de maio de 2022, 11h41

Caso a Suprema Corte dos EUA anule o precedente estabelecido em Roe v. Wade, não será apenas direito ao aborto que correrá risco, mas sim todo o sistema de precedentes que garante as liberdades individuais no país.

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Suprema Corte dos EUA tende a revogar direito ao aborto

A revista Politico divulgou, na noite desta segunda-feira (2/5), a primeira versão do voto do ministro Samuel Alito, relator de um caso antiaborto do estado de Mississippi. O documento indica que a Suprema Corte irá anular o entendimento firmado em Roe v. Wade, em 1973, que legalizou o aborto em todo o país até a "viabilidade do feto", que ocorre por volta da 23ª semana de gestação.

"Indica" porque a decisão final só será divulgada no decorrer de junho — e a possibilidade de algum ministro mudar seu voto existe. Mas isso não deverá ocorrer. Na conferência dos ministros para discutir o caso, em dezembro de 2021, cinco ministros conservadores anunciaram que vão votar a favor da revogação do precedente: Alito, Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney (os três últimos nomeados pelo ex-presidente Donald Trump).

Os votos dos três ministros liberais — Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan — ainda não são conhecidos, mas provavelmente serão a favor de manter o precedente. O voto do presidente da corte, ministro John Roberts, também não é conhecido. Sabe-se, no entanto, que ele tem um "problema" com revogação de precedentes.

Se confirmada essa decisão da Suprema Corte, haverá a perda de acesso ao abortamento legal e seguro por milhares de mulheres em diversos estados nos quais a matéria ainda não foi legislada, aponta a advogada Mayra Cotta, fundadora da Bastet Compliance de Gênero e da Veredas — Estratégias em Direitos Humanos.

Dessa maneira, o debate sobre o aborto teria que ser enfrentado politicamente mais uma vez, como ocorreu na década de 1960, diz. Nesse cenário, caberia ao Legislativo autorizar ou não a prática — e, se sim, suas condições.

"Esse parece ser um dos mais duros golpes contra a luta pelos direitos reprodutivos das mulheres", avalia a criminalista Maíra Fernandes, que é colunista da ConJur. Afinal, a revogação da decisão de Roe v. Wade permitiria que cada estado decidisse sobre a proibição ou não da interrupção da gravidez. Hoje, estados não podem vedar o aborto. Podem apenas limitá-lo (mas sem suprimi-lo) entre o terceiro e o sexto mês de gestação e criminalizá-lo após o sétimo.

A criminalização do aborto não impede a prática, mas gera riscos à saúde e à vida de quem deseja interromper a gravidez. "Leva as mulheres à clandestinidade, ao risco, aumenta a mortalidade materna, causa um grave problema de saúde pública", ressalta Maíra.

E isso tem um impacto maior para mulheres pobres e negras, diz, pois as que tiverem melhores condições financeiras poderão viajar para estados em que a interrupção da gravidez seja permitida e fazer o procedimento. Portanto, os EUA passariam a ter um cenário semelhante ao brasileiro, "em que é possível dizer que o aborto só é proibido para quem não pode pagar por ele", na visão da advogada.

Além disso, a revogação do entendimento poderia gerar um efeito cascata em outros países que autorizaram a interrupção da gestação, analisa a criminalista. "É um dos mais importantes precedentes do mundo, pois fundamenta os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nos conceitos de privacidade e liberdade e porque trabalha a ideia de que o aborto só pode ser proibido quando há viabilidade fetal extrauterina."

Ela lembra que o julgamento de Roe v. Wade, em 1973 se inseriu em um contexto de reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres no Ocidente. Depois da Suprema Corte dos EUA, decisões similares foram proferidas, por exemplo, pela Corte Constitucional Austríaca, em 1974, e, em 1975, pelo Conselho Constitucional Francês, pela Corte Constitucional Italiana, e pela Corte Constitucional Alemã.

O aborto só não é considerado crime no Brasil se não houver outra forma de salvar a vida da gestante (artigo 128, I, Código Penal), se a gravidez resultar de estupro (artigo 128, II, Código Penal), ou se o feto for anencéfalo (conforme decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54).

Na ADPF 442, o Psol e o Anis — Instituto de Bioética pedem que o Supremo declare que o aborto feito nas 12 primeiras semanas de gestação não é crime. A ação, movida em 2017 e que tem a ministra Rosa Weber como relatora, ainda não foi apreciada pela Corte.

Contudo, a 1ª Turma do STF, em 2016, entendeu que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto — e, portanto, não é crime. Dessa maneira, o colegiado absolveu duas pessoas acusadas de atuar em uma clínica de aborto.

Reprodução
Legenda

Interpretação constitucional
A revogação do precedente firmado em Roe v. Wade, nos termos da minuta do voto do ministro Samuel Alito, pode atingir não apenas o direito ao aborto, mas todo o sistema de liberdades individuais.

A derrubada do precedente, segundo Alito, se justifica porque o direito ao aborto não é previsto pela Constituição dos EUA, mesmo implicitamente, nem está enraizado na história e na tradição da nação.

A 14ª Emenda à Constituição dos EUA estabelece que "nenhum estado fará ou aplicará qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem qualquer estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis". Para Alito, tal emenda não engloba o direito à interrupção voluntária da gravidez.

O ministro também sustenta que a fundamentação de Roe v. Wade é frágil e não é apoiada por outros precedentes do tribunal, especialmente Planned Parenthhoood of Southeastern Pa. v. Casey, de 1992. No caso, a Suprema Corte apontou que as pessoas têm liberdade para fazer "escolhas íntimas e pessoais" que sejam "essenciais para a dignidade pessoal e autonomia". Assim, os magistrados reafirmaram o entendimento de 1973, reforçando a ideia central de que um estado não pode proibir o aborto enquanto não for detectada a viabilidade fetal extrauterina.

O magistrado ainda refutou o uso, pelo governo Joe Biden, de precedentes como Lawrence v. Texas (no qual a corte assegurou a homossexuais o direito de ter relações sexuais consensuais) e Obergefell v. Hodges (no qual o tribunal permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo) na defesa do direito à interrupção voluntária da gestação.

Na visão de Alito, "as tentativas de justificar o aborto por meio de apelos a concepção mais ampla de autonomia e à definição de um 'conceito de existência' são exageradas". O ministro sustentou que, seguindo tais critérios, seria possível reconhecer que há um direito fundamental ao uso de drogas e à prostituição.

Embora faça a ressalva de que a decisão diz respeito apenas ao direito constitucional ao aborto, Alito mencionou que nenhum dos direitos fundamentados em uma interpretação extensiva da autonomia está "profundamente enraizado" na história.

O presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, manifestou preocupação quanto à possível revogação de Roe v. Wade. Ele citou que o direito ao aborto, bem como diversos outros direitos assegurados pela Suprema Corte, se baseia na Nona Emenda à Constituição, que tem a seguinte redação: "A enumeração na Constituição, de certos direitos, não deve ser interpretada para negar ou menosprezar outros retidos pelo povo."

"Isso [a revogação de Roe v. Wade] significaria que todas as outras decisões relacionadas à noção de privacidade [privacy] poderiam ser questionadas", disse o presidente. "Se o que está escrito [na minuta] permanecer, irá muito além da preocupação de haver ou não o direito de escolha. Irá atingir outros direitos básicos… com quem você se casa, se você decide ou não conceber um filho, se você pode ou não fazer um aborto, uma série de outras decisões".

A advogada Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, aponta que a revogação de Roe v. Wade pode colocar em risco outras decisões baseadas no direito à privacy. Tal conceito, nos EUA, não é semelhante ao de privacidade no Brasil e estabelece que tudo o que diz respeito à vida privada e à intimidade não pode sofrer interferência do Estado salvo por um motivo muito relevante.

Além de Roe v. Wade, a Suprema Corte, em diversas outras decisões, usou a privacy para assegurar outros direitos fundamentais, cita Estela. Entre eles, o direito à contracepção, aos casamentos interracial e homossexual e ensino de outras línguas que não o inglês, a proibição da esterilização forçada e a não criminalização da homossexualidade e da posse de pornografia.

A Constituição dos EUA não menciona expressamente o direito à privacy. Porém, a Suprema Corte, em uma sequência de decisões que remonta até 1891, foi estabelecendo que tal garantia está assegurada pela primeira seção da 14ª Emenda.

Samuel Alito, na minuta de seu voto, argumenta que não existe direito pressuposto na Constituição, destaca a advogada. Na opinião do ministro, o direito deve estar expressamente previsto na norma ou poder ser extraído da tradição histórica do país — o que, na visão dele, não ocorre com o aborto.

Alito segue a corrente do "originalismo", apregoada pelos conservadores, segundo a qual as normas da Constituição devem ser interpretadas à luz do contexto em que foram concebidas e com base no que pensavam a respeito os constituintes originários. O que, na prática, emperra interpretações que tentem atualizar essas normas via Suprema Corte.

Tal doutrina é contraposta pela da "Constituição viva", advogada por progressistas. De acordo com essa teoria, a Constituição deve ser interpretada à luz do tempo e das circunstâncias do momento. Afinal, a norma foi promulgada em 1789, em um contexto social muito diferente do atual.

Caso o voto de Alito seja proferido da forma como foi divulgado, o originalismo ganharia força, avalia Estela Aranha.

"Esse voto é importante para consolidar um conceito. Alito, que é originalista, começa a remeter muito a essa corrente, adotada pela extrema-direita, que acredita que a Constituição deve ser interpretada a partir da forma como ela foi criada, e que não acredita no desenvolvimento da interpretação. O ministro também não acredita que precedentes sejam importantes — para ele, é preciso sempre resgatar o significado original da Constituição. E vendo a sua leitura, percebe-se que ele está mirando implicitamente a revogação de precedentes do tribunal."

Se Roe v. Wade for revogado, a porta para a derrubada de outros precedentes da corte seria aberta, analisa a advogada. E direitos civis estariam em risco, especialmente os relacionados a questões de liberdade sexual e de gênero.

Nesse sentido, Maíra Fernandes ressalta que Alito, ao criticar o caso Planned Parenthhoood of Southeastern Pa. v. Casey, destacou que as mais importantes decisões da Suprema Corte foram revisões de precedentes. O ministro citou o julgamento Brown v. Board of Education (1954), quando foi declarada a inconstitucionalidade da separação entre alunos brancos e negros nas escolas públicas do país.

"A referência de Alito a uma das mais famosas decisões judiciais com relação ao racismo nos Estados Unidos, todavia, não aparenta ser por motivos puramente técnicos, servindo como meio de equiparar essa histórica vitória do movimento negro com uma futura revogação da autorização ao aborto", aponta.

"Da mesma forma, em nota de rodapé, ele faz alusão ao argumento absurdo, suscitado por um dos amici curiae do caso, de que alguns dos apoiadores do aborto seriam a favor da eugenia e que a decisão de Roe v Wade teria tido um efeito demográfico porque haveria mais abortos de fetos negros. Um argumento racista que não deveria ter sido sequer mencionado em um parecer como esse", critica a advogada, lembrando que as mulheres negras são as mais prejudicadas com a proibição da interrupção voluntária da gravidez.

Italy in US/Flickr
Vazamento de voto do ministro Samuel Alito indica mudança da corte sobre o aborto 

Luz no fim do túnel
O procurador da Fazenda Nacional João Carlos Souto, autor do livro Suprema Corte dos Estados Unidos principais decisões (Atlas), avalia que a divulgação da minuta do voto do ministro Samuel Alito não representa a revogação do direito ao aborto.

Primeiro porque se trata de um esboço. E o processo decisório na Suprema Corte dos EUA é bem diferente do sistema adotado no Brasil. Lá, costuma haver a discussão e construção conjunta do voto do tribunal.

"Quando a Suprema Corte decide 'receber' o writ of certiorari (que mais se aproxima do recurso extraordinário vigente no Brasil), não há sorteio de relator ou algo que o valha. O presidente da corte, lá denominado de chief justice, pode simplesmente avocar para si o direito de elaborar o voto, se ele estiver entre a maioria. Aquele responsável pela elaboração do voto o faz circular entre os pares, de modo a receber sugestões. É nesse estágio que se encontrava o voto do juiz Alito, que o elaborava desde fevereiro. Muito provavelmente o voto iria naquela direção, mas poderia ter alterações substanciais", explica Souto, que também é professor de Direito Constitucional.

Segundo, porque a revogação do precedente Roe v. Wade não significaria a proibição pura e simples do aborto na forma como foi decidido em 1973. Ao contrário do Brasil, nos EUA, os estados têm autonomia para legislar sobre Direito Civil, Direito Penal e Processual Penal. Assim, cada unidade da federação pode regulamentar a interrupção da gravidez da forma que preferir, ressalta Souto.

"É evidente que vários estados conservadores o farão de imediato, aliás, já caminham nesse sentido explorando brechas legais, como ocorre com o estado do Texas desde 2021", afirma.

Vazamento levanta questões
O vazamento da minuta do voto do ministro Samuel Alito levantou questionamentos sobre quem o fez e com que objetivos. Diferentemente do que ocorre no Brasil em todas as instâncias (vide operação "lava jato", na qual denúncias e delações premiadas eram constantemente repassadas à imprensa), é raríssimo que decisões da Suprema Corte cheguem às mãos de jornalistas antes de serem proferidas.

Ironicamente, uma rara decisão vazada do tribunal foi a do próprio Roe v. Wade. Um escriturário adiantou a conclusão dos ministros a um jornalista da revista Time, que publicou a notícia horas antes do tribunal divulgá-la.

"Acredito que o vazamento em si é bastante relevante. Nunca aconteceu algo parecido. E me parece um forte indício de uma fratura institucional. O tensionamento político interno chegou a tal ponto que se tornou público. Os ultraconservadores dos EUA estão finalmente colhendo os frutos de uma estratégia de longo prazo, iniciada ainda nos anos 90, de ocupação de todos os espaços possíveis nas instituições formais de poder, colocando as pautas mais importantes à mobilização de extrema-direita no centro da política", analisa Mayra Cotta.

Mas quem vazou a minuta? Pode ter sido qualquer ministro, com o objetivo de pressionar os demais a votarem em uma direção ou outra — na manutenção do precedente, com a garantia do direito ao aborto, ou em sua revogação.

"Podem ter sido os ministros conservadores, para que 'conservadores' continuem como tal, com esse posicionamento, porque algum poderia mudar de lado. Podem ter sido os liberais, ditos progressistas, porque sabedores que o resultado seria catastrófico, teriam o interesse de que a sociedade tomasse conhecimento de antemão para, assim, pressionar no sentido contrário", opina João Carlos Souto.

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