Opinião

Imbróglio em torno do indulto ao deputado Daniel Silveira 

Autor

  • Kiyoshi Harada

    é jurista presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (Ibedaft) e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

4 de maio de 2022, 6h03

Muita controvérsia vem sendo suscitada em torno da graça concedida pelo presidente da República no último dia 21 de abril ao deputado federal Daniel Silveira. 

Reprodução/Facebook
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No dia seguinte ao da condenação pelo Supremo Tribunal Federal do parlamentar acusado de crime contra a segurança nacional e obstrução do processo, a pena de oito anos e nove meses de prisão em regime inicial fechado; a multa de 100 salários mínimos; a perda do mandato; e a suspensão de direitos políticos pelo prazo em que durar o cumprimento da pena principal, o presidente Jair Bolsonaro com fulcro no artigo 84, XII da CF e no artigo 734 do CPP assinou o decreto concedendo a graça que é sinônimo de indulto e da anistia, sem aguardar o trânsito em julgado da decisão condenatória. 

Logo vieram as contestações lideradas por partidos políticos que ajuizaram ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra o Presidente contestando a validade do citado decreto, sob o fundamento de que o indulto decorreu por motivações que implicam desvio de finalidade, por favorecer um correligionário do presidente. 

A rede social ajudou, e muito, a lançar lenha na fogueira da confusão, alegando que o indulto só alcança a pena de prisão, restando fora de seu alcance as penas acessórias, ou que não poderia conceder a graça antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. Alguns, confundindo a graça com a reabilitação disseram que era preciso que o condenado tivesse cumprido uma parte da pena para ser indultado etc. 

Como a condenação não transitou em julgado, segundo veiculado na rede social,  o STF estaria prosseguindo em seus atos. Pergunta-se, prosseguindo em que atos se a Corte já exauriu a jurisdição fixando a pena privativa de liberdade e as penas acessórias? O que mais resta para julgar? 

Parece que ninguém está lendo o texto do Decreto e os textos legais pertinentes. Tudo que fazem é palpitar atirando pedras para tudo quanto é lado, aumentando o clima de confronto entre os Poderes. É preciso que  essa polêmica matéria seja tratada do ponto de vista estritamente técnico, sem paixões. É o que faremos. 

O indulto é prerrogativa privativa do presidente da República, isto é, somente ele pode conceder esse benefício constitucional (artigo 84, inciso XII da CF). 

O decreto de anistia, com solar clareza, indultou a pena de prisão e as penas acessórias de forma expressa. O presidente da República podia proceder dessa forma? A resposta é sim. Vejamos: 

Prescreve o artigo 734 do CPC:

"Art. 734. A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente”. 

Por tradição, a graça é concedida por provocação, principalmente, o conhecido indulto de Natal, hipótese em que se instaura o processo no Ministério da Justiça e da Segurança Pública em que o Conselho Penitenciário, depois de esgotar os procedimentos previstos no artigo 736 do CPP,  externa sua opinião a cerca do mérito do pedido. Esse relatório opinativo do Conselho Penitenciário é levado à apreciação do Presidente da República que concederá ou não o indulto requerido, na forma do artigo 737 do CPP. 

Por outro lado, prescreve o artigo 738 do CPC: 

"Art. 738. Concedida a graça e junta aos autos  cópia do decreto, o juiz declarará extinta a pena ou penas, ou ajustará a execução aos temos do decreto, no caso de redução ou comutação de pena". 

Nos termos do artigo 738 do CPP, juntada a cópia do decreto cabe ao juiz, no caso, ao STF decretar a extinção das penas aplicadas (principal e acessórias). 

Se o artigo 738 refere-se à pena ou penas é porque não se limita apenas a pena principal. A conclusão é óbvia, não comportando discussões ante a lapidar clareza do texto. A final não pode existir duas penas privativas de liberdade, por exemplo, uma pena de cinco anos de prisão e outra de 10 anos de reclusão para o mesmo acusado. 

No caso de indulto por iniciativa do presidente da República não cabe, evidentemente, a tramitação do processo respectivo com a atuação do Conselho Penitenciário. 

Dizer que houve desvio de finalidade porque atende ao interesse do Presidente da República de preservar um parlamentar colaborador de suas idéias e ações políticas não faz menor sentido, pois, ninguém espontaneamente iria usar de faculdade constitucional para beneficiar um inimigo político. 

As razões do indulto estão exauridas nos seis "considerandos" consignados no corpo do decreto sendo, na verdade, o suficiente o  último deles consistente no relevantíssimo  fato de que "a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão". Não houve, pois, a alegada quebra do princípio da impessoalidade previsto no artigo 37 da CF. 

De fato dispõe o artigo 53 da CF: 

"Art. 53. Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". 

Trata-se de imunidade material do parlamentar que desde a sua posse no cargo é inviolável civil e penalmente por suas palavras, opiniões ou votos, quaisquer que sejam, o que o coloca fora do alcance de eventual prisão que venha ser decretada por autoridade judiciária, salvo nos casos de flagrante delito de crime inafiançável. 

O que importa no caso é a convicção formada pelo presidente da República de que a prisão do deputado em pleno exercício de seu cargo violou a sua prerrogativa constitucional, para afastar a eiva de desvio de finalidade ou da quebra do princípio da impessoalidade. 

O indulto não é uma peculiaridade brasileira.

Nos Estados Unidos, Donald Trump fez uso até exagerado do indulto para soltar seus correligionários presos, para ajudá-lo em sua campanha de reeleição. 

O atual presidente americano, Joe Biden, igualmente, está fazendo uso dessa prerrogativa constitucional, para assegurar maior apoio no Congresso Nacional americano, sem que ninguém estivesse contestando esse poder discricionário conferido ao Chefe de Estado. 

É só aqui que há essa gritaria toda em torno da utilização de uma medida prevista na Constituição pela autoridade, igualmente, indicada no Texto Magno. Indulto ou graça é prerrogativa constitucional do Presidente da República e ao mesmo tempo, medida discricionária. O Chefe de Estado não pode ser obrigado a conceder o indulto, nem proibido de concedê-lo. 

Aqui tudo é motivo para judicializar a política o que é um grande mal, pois acaba contaminando o Judiciário que passa a proferir decisões políticas, um antepasso do ativismo judicial, afrontando o princípio da separação dos Poderes.  

Por conta dessas ADIs, o STF não pode determinar a extinção das penas decorrentes do indulto, sem antes resolver a questão da validade ou não desse indulto decretado pelo Chefe do Executivo e guerreado por partidos políticos. 

Lamentável que isso esteja ocorrendo, expondo essa situação de confronto entre os Poderes por tempo ilimitado, provocando atritos ruidosos em cascata que está atingido as instituições das Forças Armadas, onde os generais da reserva que presidem os clubes militares estão abertamente tomando posição a favor do presidente Bolsonaro em pronunciamentos, alguns deles, ofensivos à imagem aos Ministros componentes da mais Alta Corte da Justiça do País. 

Por conta dessas manifestações apocalípticas a deputada Carla Zambelli está apresentando, com apoio de seus pares, um Projeto Legislativo prevendo anistia para preservar os direitos políticos de Daniel Silveira. Só  que a proposta legislativa aproveita o embalo da confusão e anistia uma quantidade enorme de políticos condenados pelo STF, fato que certamente irá aumentar a temperatura entre os Poderes, desta vez, entre o Judiciário e o Legislativo fechando o ciclo de confrontos entre os três Poderes.

Autores

  • é jurista, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (Ibedaft) e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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