Opinião

Prescrição como causa impeditiva do ajuizamento da ação de improbidade

Autor

  • José Carlos Fernandes Junior

    é promotor de Justiça do MP-MG ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG pós-graduado em Divisão de Poderes Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MP-MG.

4 de maio de 2022, 18h03

Mesmo afastada toda a controvérsia que envolve o estabelecimento de uma definição suficientemente precisa e abrangente do instituto, creio ser possível afirmar que a consumação da prescrição, enquanto causa impeditiva de propositura da ação de improbidade administrativa, exige imprescindivelmente a conjugação de dois fatores:

1) inércia do legitimado para sua propositura;
2) decurso do prazo legal.

Lembremo-nos, pois, do conhecido brocardo romano "dormientibus non succurrit jus", em tradução livre "o direito não socorre a quem dorme".

Especificamente em relação aos legitimados, com a nova redação dada pela Lei 14.230/2021 ao artigo 17 da Lei 8.429/92, a propositura da ação de improbidade administrativa compete ao Ministério Público. No entanto, é sabido que em decisão prolatada no dia 17 de fevereiro de 2022, em sede de liminar, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.042/DF, o eminente ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu os efeitos de tal dispositivo, estando, portanto, restabelecida, ao menos por ora, a legitimidade para propor dita ação também da pessoa jurídica interessada, como previsto no texto da Lei 8.429, com a redação existente antes da edição da Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Mais diretamente, quando da elaboração deste artigo, estão legitimados para a propositura da ação de improbidade administrativa tanto o Ministério Público quanto a pessoa jurídica interessada.

Já quanto ao prazo prescricional para propositura da ação de improbidade administrativa, de pronto mostra-se forçoso o reconhecimento de que crítica era o que não faltava, seja na doutrina ou na jurisprudência, em relação ao texto do artigo 23 da Lei 8.429/92, agora revogado. Em seus três incisos até então vigentes, o artigo 23 da LIA dispunha prazos certos para a prescrição em determinadas hipóteses (incisos I e III) e fazia referência ao correspondente à infração disciplinar em outras (inciso II).

Prevendo regulação variável de acordo com o vínculo, transitório ou definitivo, existente entre o agente público e a administração pública, inclusive com hipótese de referência ao prazo prescricional previsto na legislação que trata das faltas disciplinares funcionais, sem esquecer, ainda, do silêncio em relação ao início do prazo prescricional em relação ao particular que tivesse participado, juntamente como agente público, da prática do ato de improbidade administrativa, não é difícil imaginar o esforço hermenêutico empregado para sua aplicação diante do caso concreto [1]. Daí, smj, parecer representar avanço o novo texto do caput do artigo 23 da Lei 8.429/92, trazido pela Lei 14.230/21, ao menos quando comparado com o texto anterior, agora revogado.

Segundo dispõe tal dispositivo, o prazo prescricional para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, doravante, é de oito anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. A instauração do inquérito civil ou do processo administrativo para apuração do ilícito é agora prevista como causa suspensiva do prazo prescricional, por até 180 dias, caso não sejam eles concluídos antes, restabelecendo-se sua contagem a partir do que vier a ocorrer primeiro, o transcurso dos 180 dias ou, então, a conclusão do inquérito civil ou do processo administrativo (§ 2º, artigo 23). A clareza e a objetividade do texto atual, neste particular, parece-nos infinitamente superior à redação anterior.

Naturalmente que, por força da segurança jurídica, tal alteração não repercute nas ações propostas regularmente quando ainda em vigência a sistemática anterior à introduzida pela Lei 14.230. A questão, no entanto, exige atenção quanto aos atos de improbidade administrativa cometidos antes da vigência da nova redação do caput do artigo 23 da LIA, trazida pela Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, e cuja ação de improbidade administrativa, por sua vez, tenha sido ou venha a ser proposta posteriormente à nova regulação. Qual prazo prescricional vigoraria?

Não foi prevista na norma regra de transição a respeito. Também não foi estabelecido um período de "vacatio legis" que possa ser interpretado como suficiente para que os legitimados adotassem as medidas necessárias para o ajuizamento da ação, antes da consumação da prescrição, nos moldes da novel lei. Pelo contrário, a Lei 14.230 passou a ter vigência imediata com sua publicação.

E se já não bastasse tudo isso, note-se que o novo dispositivo não trata propriamente de majoração ou redução do prazo prescricional previsto no dispositivo anterior, mas sim do estabelecimento de nova sistemática de aferição deste prazo. Veja que, a depender da situação concreta poderá implicar em majoração ou redução do transcurso do prazo para a consumação da prescrição, quando comparadas com as hipóteses previstas no dispositivo agora revogado.

Se por um lado, o novo texto aponta para o prazo de oito anos, enquanto o anterior referia-se a cinco anos ou aquele previsto na legislação correspondente à infração disciplinar, por outro a nova lei indica o início da contagem a partir da ocorrência do fato ou da cessação da permanência, enquanto que o texto anterior previa hipóteses variadas, a exemplo do término do mandato eletivo do agente.

Tome como exemplo o cometimento, por um prefeito, de determinado ato de improbidade administrativa no dia 10 de outubro de 2020, tendo seu mandato eletivo se encerrado no dia 31 de dezembro de 2020, não logrando sucesso na reeleição. Segundo a regra vigente à época, o início da contagem do prazo prescricional de cinco anos para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa seria o dia 1º de janeiro de 2021, findando-se cinco anos depois. Já com a nova sistemática, o primeiro dia incluído na contagem seria 11 de outubro de 2020, encerrando-se oito anos depois. Houve uma ampliação.

Mas note o que ocorre no exemplo de um governador de estado praticando determinado ato de improbidade administrativa em seu primeiro mandato, mais especificamente no dia 10 de outubro de 2013, tendo sido posteriormente reeleito, tendo seu segundo mandato eletivo consecutivo encerrado no dia 31 de dezembro de 2018. Segundo a regra vigente à época, a contagem do prazo prescricional de cinco anos para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa teria como primeiro dia exatamente o dia 1º de janeiro de 2019, findando-se cinco anos depois. Pela nova regra, o primeiro dia da contagem seria 11 de outubro de 2013, encerrando-se 8 anos depois. Houve uma redução.

Perceba que, nos dois exemplos, quando do advento da Lei 14.230 o prazo já fluía, embora ainda não consumada a prescrição, de acordo com a regulação vigente à época. Em ambos também ainda não havia sido proposta a respectiva ação de improbidade administrativa.

No entanto, enquanto no primeiro exemplo parece ter havido uma postergação do prazo final em comparação ao aferido de acordo com a regra antiga, no segundo exemplo teríamos uma antecipação da data da consumação da prescrição quando comparada com aquela estabelecida na sistemática da norma anterior.

Daí que a solução da dita celeuma deve, necessariamente, nortear-se em duas importantes balizas: segurança jurídica e irretroatividade da lei prejudicial ao agente. A primeira, garantindo-se prazo razoável aos legitimados, que ainda detinham tempo para o ajuizamento da ação de improbidade na vigência do texto agora revogado, de modo que possam adotar as medidas necessárias visando sua propositura antes da consumação da prescrição; a segunda, inadmitindo que a contagem do prazo para consumação da prescrição do prazo prescricional vá além daquele posto segundo a norma agora revogada.

Visando exatamente a preservação da segurança jurídica, renomados doutrinadores, dentre eles o saudoso Miguel Maria de Serpa Lopes [2], lecionam que, na hipótese de redução do prazo prescricional, haverá a aplicação do prazo previsto na lei anterior se o tempo que falta para a consumação da prescrição for inferior àquele estabelecido na lei nova; enquanto que será o prazo previsto na lei nova quando o tempo que falta para a consumação da prescrição pela lei anterior extrapolar o estabelecido pela nova lei, contando-se, então, do dia em que se iniciou a vigência da novel lei.

Efetivamente, o escopo é privilegiar a previsibilidade e preservar a segurança jurídica.

Naturalmente que, ante a natureza gravosa do Direito Administrativo Sancionador, a definição do prazo prescricional deve encontrar limite naquele estabelecido segundo a sistemática vigente à época da prática do ato de improbidade administrativa, já que se trata do exercício da pretensão punitiva do Estado, solução diferente acabaria por referendar a retroatividade da nova lei para prejudicar o agente que o praticou.

Acrescente-se a tudo isso, finalmente, a possibilidade de o ato de improbidade haver sido praticado antes da vigência da Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, mas cujo o lapso temporal ainda não havia começado fluir, considerando o texto vigente até então. Cito o exemplo de um ato de improbidade cometido por um prefeito no dia 20 de outubro de 2021, no exercício de seu mandato eletivo cujo encerramento é previsto para 31 de outubro de 2024. Quando do advento da Lei 14.230, o prazo prescricional para propositura da ação de improbidade administrativa sequer havia começado a fluir, conforme o que dispunha artigo 23 da LIA, vigente à na época.

Nesta linha de intelecção, em relação aos atos de improbidade administrativa cometidos antes do advento da Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, permite-se então concluir, preservando-se a segurança jurídica e a irretroatividade da lei prejudicial ao agente, que a contagem do prazo prescricional para ajuizamento da ação de improbidade administrativa:

1) proposta antes da vigência da Lei 14.230/2021, submete-se ao comando vigente quando da prática do ato de improbidade administrativa a que diz respeito seu objeto;
2) proposta após a vigência da Lei 14.230/2021 e cuja fruição temporal já havia se iniciado antes da novel lei, submete-se ao comando vigente quando da prática do ato de improbidade administrativa a que diz respeito seu objeto; e,
3) a proposta após a vigência da Lei 14.230/2021 e cuja fruição temporal ainda não havia se iniciado antes da vigência novel lei, submete-se ao comando desta, com marco inicial da contagem a partir da data em que teve início sua vigência, não podendo ultrapassar, no entanto, o prazo final estabelecido segundo a norma anterior, vigente na época do cometimento do ato de improbidade administrativa a que diz respeito seu objeto.

Diante dessas hipóteses, nada obstante pareçam bastante em si, vislumbra-se um potencial surgimento de problemas de cunho prático quando da subsunção dos fatos à norma: o primeiro deles, certamente, é a abertura para a criação de "lex tertia", quando a aplicação de duas ou mais leis gera uma nova norma, que servirá para regular determinado caso concreto: num país de extensão continental como o Brasil, marcado por desigualdades sociais e políticas, quantas não serão as situações díspares decorrentes? Uma multiplicidade de decisões judiciais com posicionamentos diferentes, gerando impactos e instabilidades nos processos dessa estirpe.

O segundo ponto crítico é a (in)constitucionalidade das diretrizes interpretativas que, no caso concreto, prejudicam o réu. Até que ponto é possível aproximar o Direito Administrativo Sancionador do Direito Penal sem que, com isso, vitupere-se o princípio da proporcionalidade sob a ótica da vedação da proteção deficiente e da proibição do excesso?

A terceira questão que emerge é o impacto dessa repercussão ao passivo de processos distribuídos por tribunais em todo o país. De acordo com o Relatório de Metas Nacionais do Poder Judiciário de 2020, publicado em maio de 2021, pelo Conselho Nacional de Justiça [3], o panorama nacional mostra que, de todo o passivo de processos distribuídos relacionados a ilícitos contra a Administração Pública e de ilícitos eleitorais, no total de 352.284, foram julgados 182.539. Desses, 65.088 relacionam-se à improbidade administrativa, representando o percentual de 36,58% dos julgados. Até a edição do relatório, o passivo de ações de improbidade administrativa acumula o montante de 177.921 — praticamente a mesma quantidade de todos os feitos apreciados. Certamente, muitas serão as repercussões práticas — haja vista que, para algumas ações, poderá ocorrer julgamento antecipado do mérito ante a prejudicial da prescrição, a depender da interpretação que venha a ser admitida diante do caso concreto.

Como se percebe, este artigo tem por escopo revelar, diante da edição da Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, as eventuais repercussões endo e extraprocessuais ante a instabilidade que a sucessão de leis no tempo — sem qualquer regulação que guarneça o operador do direito de segurança suficiente. É necessário ter em mente que há uma série de direitos fundamentais e normas cuja aplicabilidade incidirão no caso, razão porque é urgente o pronunciamento de nossa Corte Suprema quanto à intertemporalidade da norma no Direito Administrativo Sancionador.

Referência bibliográfica:
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Improbidade administrativa: prescrição e outros prazos extintivos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2019.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário Teórico e Prático da Lei de Introdução do Código Civil, Vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Jacinto Editora,1944.


[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Improbidade administrativa: prescrição e outros prazos extintivos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 105.

[2] LOPES, Miguel Maria de Serpa, Comentário Teórico e Prático da Lei de Introdução do Código Civil, Vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Jacinto Editora,1944, p.39

[3] Disponível aqui. Acesso em 14/4/2022. p. 20-21.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça do MP-MG, ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG, pós-graduado em Divisão de Poderes, Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MP-MG.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!