Escritos de Mulher

Anulação de precedente nos EUA ameaça direitos reprodutivos conquistados

Autor

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

4 de maio de 2022, 14h08

Na última segunda-feira (2/5), o portal de notícias estadunidense Politico [1] reportou o que parece ser um dos mais duros golpes contra a luta pelos direitos reprodutivos das mulheres.

Spacca
Inesperadamente, vazou à imprensa, antes do julgamento, o voto de um Justice da Suprema Corte dos EUA — no caso, a opinion de Samuel A. Alito Jr. que, especula-se, será seguida pela maioria conservadora da corte, pela superação do precedente fixado em Roe v. Wade. A veracidade do documento já foi confirmada pela corte.

Segundo o The New York Times, o precedente, "que estabeleceu o direito constitucional ao aborto em um caso de 1973, tem sido uma peça central do Direito americano desde então. Nas palavras da corte, foi o entendimento adotado em Roe v. Wade que sedimentou o direito básico das mulheres ao aborto legal" [2].

O voto vazado reflete a opinião do Justice Alito em ação que questiona a constitucionalidade de uma lei do estado do Mississipi, a Mississipi Gestational Act, que proíbe a interrupção da gravidez após 15 semanas de gestação, salvo por emergência médica ou por severa anormalidade fetal.

Alito propõe a revisão de todo o entendimento já consolidado na jurisprudência americana, especialmente em Roe v. Wade e em casos que o seguiram, sobre direitos sexuais e reprodutivos.

Portanto, a se confirmar que o documento expressa sua posição majoritária, a Suprema Corte revogará seu próprio precedente, que vigora há meio século, permitindo que os estados criminalizem a prática do aborto em qualquer hipótese.

Como era de se esperar, o episódio galvanizou o debate público sobre o tema. Por meio dos canais da Casa Branca, o presidente Joe Biden divulgou nota reafirmando sua defesa do precedente Roe v. Wade, arguindo, para tanto, que o direito à escolha das mulheres é fundamental, e que essa é a lei nos Estados Unidos há quase 50 anos, de modo que deve ser preservada em nome da justiça e da estabilidade.

Para o debate, vale relembrar os fundamentos desse julgamento histórico, que garantiu o direito das mulheres ao aborto e influenciou as cortes constitucionais de diversos países sobre a matéria.

O caso Roe v. Wade
A Suprema Corte Americana julgou o caso Roe v. Wade (410 U.S. 113) em 1973, quando, por sete votos a dois, declarou inconstitucional uma lei do Texas que criminalizava o aborto.

A emblemática ação foi proposta por uma gestante (nome fictício "Jane Roe") contra Henry Wade, procurador do distrito de Dallas Country, Texas, argumentando que a lei texana feria o direito fundamental da mulher à privacidade. O estado do Texas, por sua vez, contra-argumentou que a lei protegia a vida do feto, igualmente resguardada pela Constituição.

Em sua decisão, o Justice Harry Blackmun discorreu sobre o histórico do aborto e enfatizou que a restrição criminal à sua prática era algo relativamente novo, que derivava das reformas estatutárias ocorridas na metade final do século 19. Destacou a longa influência do sistema da common law, segundo o qual só haveria a prática de aborto quando fossem reconhecidos movimentos do feto no útero, normalmente, entre a 16ª e a 18ª semanas de gravidez.

Também ressaltou que, embora não previsto explicitamente na Constituição, o direito à privacidade existia sob a Constituição e já tendo sido reconhecido antes pela própria corte e concluiu:

"Estas decisões tornam claro que apenas direitos pessoais que podem ser considerados ‘fundamentais’ ou ‘implícitos no conceito de liberdade imposta’ são incluídos nessa garantia de privacidade. Elas também tornam claro que o direito (à privacidade) é relacionado a atividades como: casamento; procriação; relacionamentos familiares; e criação e educação infantil."

O Justice associou o direito à privacidade a outra garantia expressa na Constituição: o direito à liberdade, estabelecido pela 14ª Emenda, reconhecendo, também, a autodeterminação da mulher como direito fundamental derivado da privacidade.

"Este direito à privacidade, fundado no conceito de liberdade pessoal da 14ª Emenda ou nas restrições à atuação do Estado … é amplo o suficiente para incluir a decisão da mulher de interromper ou não a gravidez. O prejuízo que o Estado imporia à gestante ao negar por completo esta escolha é claro."

Disse, ainda, que "a Constituição não define 'pessoa'" e que, sobre a polêmica discussão acerca de quando se inicia a vida, "quando as pessoas treinadas nas respectivas disciplinas da Medicina, Filosofia e Teologia não conseguem alcançar qualquer consenso, o Judiciário, neste ponto, no desenvolvimento do conhecimento humano, não está numa posição de especular como respondê-la".

Decidiu, então, que a vida pré-natal não seria constitucionalmente protegida, mas que haveria um interesse legítimo do Estado em protegê-la a partir do momento em que houvesse viabilidade fetal extrauterina, a contar, portanto, do sexto mês de gestação.

Por fim, a Suprema Corte entendeu que o aborto é permitido sem restrição alguma até o fim do primeiro trimestre de gestação. Os estados podem, contudo, regular e limitar sua prática entre o terceiro e o sexto mês, desde que mantida a permissão concedida pela corte. Somente a partir do terceiro trimestre é possível proibir e criminalizar o aborto, com exceção de emergências médicas.

A decisão da Suprema Corte, todavia, não pôs um fim à guerra do aborto, travada principalmente, entre religiosos e os movimentos feministas[3]. Para Ronald Dworkin, os Estados Unidos são o país mais fundamentalista e, ao mesmo tempo, o lugar onde os movimentos feministas são mais poderosos. O confronto é inevitável, não sendo raros os episódios de invasões a clínicas de aborto, bem como passeatas, campanhas e todo tipo de manifestação, de ambos os lados.

Tão logo decidido o Roe vs. Wade, os grupos "provida" iniciaram suas articulações. Eles contaram com o apoio dos presidentes Reagan e Bush, que "impuseram às nomeações judiciais os critérios ideológicos mais rigorosos jamais vistos nos Estados Unidos, e não apenas para as nomeações à Suprema Corte, mas para todos os tribunais inferiores" [4]. Com isso, chegaram àquela corte diversas ações contestando a regulamentação do aborto pelos estados.

A estratégia, contudo, não surtiu o efeito esperado. Em 1992, a Corte reapreciou a questão no caso Planned Parenthood vs. Casey, e manteve a decisão de Roe vs. Wade, entendendo que ela não impedia o estatuto da Pensilvânia, que não proibia a interrupção voluntária da gravidez, apenas a regulava. Dos nove Justices, dois reafirmaram, veementemente, sua posição pela constitucionalidade do aborto, manifestada em 1973, e três novos membros — nomeados pelos presidentes Reagan e Bush —, contrariando todas as expectativas, anunciaram igualmente seu apoio ao caso Roe vs. Wade.

Por outro lado, não tardariam a surgir ações impugnando leis estaduais que se inseriam em uma espécie de "zona cinzenta" entre limitações autorizadas e proibições veladas ao direito de abortar.

Por exemplo, diversos estados passaram a requerer a notificação ou o consentimento dos pais quando menores pretendessem abortar. Em inúmeras decisões, no entanto, a corte limitou a imposição de tais requerimentos pelos estados, e.g., em Hodgson v. Minnesota, 497 U.S. 417, 1990.

Outra questão disse respeito à participação paterna na decisão da gestante. Roe v. Wade, expressamente, não afastava a validade das regulamentações que reconheciam o direito dos pais de participarem da decisão pelo aborto em determinadas circunstâncias. Entretanto, três anos depois, a Suprema Corte decidiu que os estados não poderiam exigir que a mulher obtivesse o consentimento paterno para a interrupção da gravidez (Caso Planned Parenthood of Central Mo. V. Danforth, 428 U.S., at 67-71, 1976).

Há, também, quem entenda que a Suprema Corte a limitou, sobremaneira, em julgamentos posteriores. Entre os alvos de crítica há o caso Maher vs. Roe [5], que entendeu não estar o Estado obrigado a auxiliar financeiramente as interrupções voluntárias de gravidez, ainda que preste apoio financeiro às gestantes nos procedimentos de parto e Harris vs. McRae [6], que decidiu pela constitucionalidade da Emenda Hyde, proibindo a utilização de fundos federais para subsidiar o aborto até mesmo nos casos de indicação médica.

Ao decidir que o aborto não deve ser patrocinado pelo Estado e que este não tem a obrigação de disponibilizar a intervenção em hospitais públicos ou de apoiar financeiramente as mulheres que queiram interromper a gravidez, a Corte transformou o que era um direito em algo inviável para muitas mulheres que, sem recursos para arcar com os procedimentos médicos, restarão impossibilitadas de abortar. Tal realidade porém, pode estar relacionada ao sistema econômico norte-americano, calcado na intervenção mínima do Estado sobre a esfera privada e no entendimento que "os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos são apenas os direitos de defesa contra o Estado, que não conferem ao cidadão a possibilidade de reclamar prestações positivas em seu favor" [7].

As ofensivas às ideias expressas em Roe v. Wade ganharam força durante a administração Donald Trump. Como menciona João Ozorio de Melo no Conjur (aqui[8]), entre janeiro e fevereiro de 2021, 43 estados dos EUA introduziram 384 projetos de lei contra o aborto e outros métodos contraceptivos em suas Assembleias Legislativas, segundo o Guttmacher Institute.

Destaca-se que, mesmo com um precedente de 49 anos da Suprema Corte, os parlamentares e governadores republicanos aprovaram tais leis para forçar instituições democratas-liberais, como a ACLU (American Civil Liberties Union) e a Planned Parenthood, a entrar na Justiça contra elas.

A manobra conhecida como "efeito Trump" contou com a nomeação de 245 juízes federais, sendo três para a Suprema Corte. Em vários estados, os tribunais de recursos, que tinham maioria liberal, passaram a ter maioria conservadora.

Mas em nenhum julgamento, até o momento, a Suprema Corte modificou o teor da decisão proferida em 1973; apenas adaptou-a aos casos concretos. Isso é o que está em jogo, em 2022.

O parecer do Justice Samuel Alito
O parecer de Alito pela revisão do entendimento fixado nos casos Roe v. Wade e Casey argumenta, em síntese, que: (1) a Constituição não confere o direito ao aborto; (2) o stare decisis não pode ser arguido em razão da fragilidade de fundamentação do caso Roe; (3) a XIV Emenda da Constituição Americana, ao falar de proteção da liberdade do indivíduo em face dos Estados, não contempla o direito ao aborto; (4) tal direito não estaria enraizado na história e tradição da nação; (5) e não é apoiado por outros precedentes.

É um parecer extremamente crítico à decisão que, ao longo de meio século, assentou as premissas sobre as quais o Direito americano regulou o aborto, bem como ao precedente fixado em Planned Parenthhoood v. Casey (1992), que reiterou a possibilidade de interrupção da gestação.

O parecer revela o conservadorismo de Alito. Por exemplo, ele reputa frágil a fundamentação constitucional do caso Casey, afirmando, em raciocínio inusitado, que os critérios jurídicos que conduziram à descriminalização do aborto também levariam, por decorrência lógica, ao reconhecimento de um direito fundamental ao uso de drogas e à prostituição. É a ideia da "ladeira escorregadia", que se vê em várias fundamentações contra aborto. Um completo non sense. Segundo Alito, tais supostos direitos não possuiriam raízes na história dos EUA.

Mas, em Roe v. Wade, a Suprema Corte discorreu profundamente sobre o histórico do aborto no país, enfatizando que a restrição criminal à prática era algo relativamente novo, bem como destacou a influência da common law, segundo a qual só haveria a prática de aborto quando fossem reconhecidos movimentos do feto dentro do útero, em geral, após a 16ª e a 18ª semanas de gravidez.

O Justice Alito também incorreu em infeliz comparação ao assimilar a superação de Roe v. Wade à decisão da Corte no caso Brown v. Board of Education (1954) — que declarou inconstitucional a divisão racial entre estudantes em escolas públicas dos EUA.

A referência de Alito a uma das mais famosas decisões judiciais com relação ao racismo nos Estados Unidos não aparenta ser por motivos puramente técnicos, servindo como meio de equiparar essa histórica vitória do movimento negro a uma futura revogação da autorização ao aborto. Da mesma forma, em nota de rodapé, a opinion faz alusão ao argumento absurdo, suscitado por um dos amici curiae do caso, de que possibilitar a interrupção da gestação seria uma política de eugenia, pois a decisão de Roe v Wade teria um efeito demográfico, pois haveria mais abortos de fetos negros. Um argumento racista que não deveria ter sido sequer mencionado em um parecer como esse.

Tal argumentação demonstra, ademais, desconhecimento sobre os impactos da criminalização do aborto. Como se sabe, são as mulheres negras e pobres as mais prejudicadas com a proibição — seja nos Estados Unidos, ou no Brasil.

No fim, é isso que está em jogo. Por trás dos argumentos articulados pelo Justice Samuel Alito e, ao que tudo indica, seguidos pelos magistrados conservadores que compõem a Suprema Corte, há uma forte reação sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Caso confirmada a decisão, o Direito americano em matéria de aborto retornará ao estágio anterior a 1973, ceifando garantias conquistadas pelo movimento feminista, o que afetará, especialmente, mulheres pobres periféricas, às quais restarão menos opções e sobre quem sói recair a seletividade do sistema penal.

Portanto, não há qualquer relação entre a eventual superação de Roe v. Wade e o que se decidiu em Brown v. Board of Education. Lá, o tribunal consagrou a luta pelos direitos civis protagonizada pelo movimento negro. Agora, o que se pretende é ceifar direitos, derrotar movimentos e restabelecer uma política que só causará mais marginalização.

A lição que esse episódio passa ao resto do mundo é a de que é necessário permanecer vigilante pelos direitos conquistados. Afinal, o caso Roe v. Wade foi julgado em um contexto global de reconhecimento dos direitos das mulheres, sendo seguido por decisões semelhantes proferidas por cortes constitucionais de outras nações, especialmente na Europa.

A luta pelos direitos das mulheres é internacional e cada conquista, onde quer que seja, deve vir acompanhada de mais resistência.

Por enquanto, nos resta lutar e esperar que a decisão anunciada pela imprensa não se concretize, e que a Suprema Corte Americana não retroceda o Direito aos anos 1970.


[3] Sobre a relação entre religião e aborto nos Estados Unidos confira-se DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. pp. 48/69. O feminismo é tratado pelo filósofo americano às fls. 70/84.

[4] DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. SP: Ed. Martins Fontes, 2003, p. 9.

[5] 432 U.S. 464 (1977)

[6] 448 U.S. 297 (1980).

[7] SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004., 2005, p. 10.

Autores

  • Brave

    é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC-Rio e da FGV-Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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